Comodato não oneroso na Administração Pública – BYD cede carros “gratuitamente”

Comodato não oneroso na Administração Pública – BYD cede carros “gratuitamente”

Recentemente, diversos órgãos públicos brasileiros firmaram contratos de comodato não oneroso com a montadora BYD, recebendo veículos elétricos para uso institucional, conforme noticiado:

BYD “empresta” carros sem custo ao STJ

Comodato

Assim, entre os beneficiários estão o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Tribunal de Contas da União (TCU), a Presidência da República e a Câmara dos Deputados.

Entretanto, tais contratações, apesar de não envolverem desembolso financeiro direto, suscitam debates jurídicas sobre a formalização de parcerias entre o poder público e entidades privadas.

Nessa linha, nosso artigo propõe-se a analisar o instituto do comodato não oneroso como instrumento de contratação pública, seus limites constitucionais e legais, os potenciais riscos jurídicos e os mecanismos de compliance necessários para garantir a integridade dessas relações, tendo como pano de fundo o paradigma da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021).

Inclusive, há quem alerte para “contratações das organizações públicas e desafios de greenwashing”: Contratações das organizações públicas e desafios de greenwashing.

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Comodato na Administração Pública?

De início, é importante salientar que o comodato é um contrato típico do direito civil, definido pelo art. 579 do Código Civil como “o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis“.

Isto é, cabe destacar que o COMODATO é um instituto do direito privado. É o empréstimo a título gratuito de coisas não fungíveis (que não se consome) com a entrega ao comodatário.

Não são fungíveis, os imóveis e os móveis que não podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade. O contrato é unilateral, pois somente o comodatário é favorecido. A gratuidade é o que distingue o comodato da locação.

Cabe registrar que a Administração Pública celebra Contratos administrativos, assim entendidos aqueles celebrados pela Administração Pública e regidos pelo Direito Público, por exemplo aqueles regidos pela Lei nº 8.666/93 com incidência apenas subsidiária de normas de Direito Privado.

Pode também celebrar os denominados Contratos da administração que são aqueles que a Administração Pública celebra, mas o Direito Privado rege, por exemplo o COMODATO (Administração na condição de comodatária), o contrato de locação de imóvel de propriedade particular (Administração na condição de locatária).

Definição de comodato

Com relação ao comodato, assinale-se que se refere a uma das espécies de contratos previstos no Código Civil Brasileiro a partir do art. 579, que segundo conceito do doutrinador Ricardo Fiuza:

“Comodato (commodum datum, ou seja, dado, para cômodo ou proveito), empréstimo de uso, é contrato unilateral, essencialmente não oneroso, pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa móvel ou imóvel infungível, para que dela disponha em proveito, por período determinado ou não, devendo retorná-la ao comodante, quando findo o prazo do contrato ou ele tenha seu término.”  (Jones Figueiredo Alves, Novo Código Civil Comentado, Coordenação  Ricardo Fiuza Saraiva, 1ª. Ed., pág. 515)."

Trata-se de empréstimo gratuito de coisas móveis ou imóveis não fungíveis, para uso durante certo prazo e posterior devolução da coisa emprestada, findo o prazo do empréstimo. O comodato se completa com a tradição do objeto.

Classifica-se o comodato como um contrato bilateral gratuito, pelo qual o comodante cede um bem não fungível. Tal bem deverá ser devolvido da mesma forma em que foi emprestado em determinado lapso de tempo.

Além do mais, são requisitos do comodato a gratuidade, a não fungibilidade, a não consumibilidade do bem e a temporariedade.

O comodato, é, assim, um contrato com grande similaridade com o contrato de locação, com a diferença marcante quanto a onerosidade deste (locação) e a gratuidade daquele (comodato), é regido pela lei civil – arts. 579 a 585 do Código Civil Brasileiro, conforme acima transcrito.

Obrigações

Incumbe destacar que, embora o contrato de comodato seja a título gratuito, não desobriga o Comodatário de assumir obrigações específicas vinculadas à coisa, objeto do comodato, dentre elas, conservar a coisa recebida.

No caso, em comento, consta que o comodato foi feito com a Administração Pública faz com que os carros tenham os seguros custeados pelo próprio ente.

Tal obrigação encontra previsão no artigo 582 do Código Civil de 2002, que determina ao Comodatário a obrigação de conservar, como se sua própria fora, não podendo alugá-la, nem emprestá-la.  

Obrigado a conservar, como se sua própria fora, a coisa emprestada, tem o Comodatário o dever de zelo e de conservação do bom estado da coisa, atendida com idêntica diligência de quem atua como se dela fosse o proprietário. A obrigação atende o princípio que rege o próprio contrato, o da restitutio in integrum, dado que se obriga o favorecido a restituir a coisa no mesmo estado em que a recebeu.

Inclusive, há decisões dos Tribunais que “o comodato por prazo indeterminado pode ser encerrado unilateralmente mediante notificação do comodatário, configurando esbulho possessório a permanência indevida após o prazo estipulado”(TJSP; AC 1008976-75.2020.8.26.0002; São Paulo; Vigésima Terceira Câmara de Direito Privado; Relª Desª Maria Fernanda de Toledo Rodovalho; Julg. 21/02/2025).

Ora, será que isso seria aplicado no Comodato feito com a Administração Pública?

Prevalece que sim. Ou melhor, nesse caso, depende das cláusulas do contrato.

Em síntese, sendo o comodato um contrato gratuito, dispensa-se, em tese, o procedimento licitatório formal.

Contudo, a necessidade de isonomia e impessoalidade tem levado os órgãos públicos a adotarem chamamentos públicos para formalizar tais parcerias. Foi o que fez o STJ por meio do Edital de Chamamento Público nº 001/2024, aplicando-se de maneira subsidiária parâmetros imparciais da lei de licitações e contratos, também aos contratos de comodato.

Nesse sentido, por mais que o comodato seja um contrato “gratuito”, a necessidade pública em respeito aos princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência fez com que se abrisse a possibilidade de “outras empresas” também participarem. Entretanto, a única que ofertou gratuitamente foi a BYD.

Inovação e desenvolvimento sustentável

Ora, a nova Lei de Licitações estabelece em seu art. 11, IV, que um dos objetivos do processo licitatório é “incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável”. Este dispositivo confere legitimidade à busca por alternativas tecnológicas sustentáveis, como veículos elétricos, nas contratações públicas.

Assim, do ponto de vista ecológico e sustentável, demonstra-se favorável a solução de veículos elétricos gratuitamente nas contratações públicas.

Entretanto, parte da doutrina tem alertado quanto à análise de riscos e a “Due Diligence nas Contratações não Onerosas”.

Isto é, a Lei nº 14.133/2021 incorpora expressamente a gestão de riscos como elemento central das contratações públicas. Seu art. 169 estabelece que “as contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo”.

Esta obrigação aplica-se também às contratações não onerosas, como comodatos, especialmente considerando os riscos reputacionais e jurídicos envolvidos.

Em outras palavras, há parte da doutrina que alerta que essas contratações “gratuitas” não sejam um escudo para a prática de greenwashing.

Greenwashing é um termo que se refere à prática de empresas, instituições ou governos de promoverem uma imagem ambientalmente responsável sem realmente adotarem práticas sustentáveis. Em outras palavras, trata-se de um marketing enganoso, onde a organização faz parecer que suas ações ou produtos são ecologicamente corretos quando, na realidade, não são.

No fundo, o que parte da doutrina traduz é que também sejam consideradas nas contratações pública a verdade e consequência dos fatos, caso a BYD tenha praticado a ótica do trabalho escravo:

Trabalhadores resgatados em obra da BYD receberam valores dos contratos e retornaram para China, diz montadora

Nessa linha, há de definir mesmo no contrato de comodato “gratuito” práticas das contratações públicas para que não haja uma “imagem artificial” boa da empresa, caso haja a constatação que praticou o trabalho escravo.


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