“Você aqui de novo?”: o comentário da juíza e o debate sobre a prisão cautelar no processo penal brasileiro

“Você aqui de novo?”: o comentário da juíza e o debate sobre a prisão cautelar no processo penal brasileiro

Explicação do caso

Um vídeo de audiência de custódia realizada em Inhumas (GO) ganhou repercussão nacional após ser divulgado nas redes sociais. Na gravação, a juíza reconhece um dos presos apresentados por porte ilegal de arma de fogo e, em tom descontraído, afirma: “Você aqui de novo?! Ê, menino! Se você fosse meu filho… Me ajuda a te ajudar.”[1]

A fala, ainda que em tom de brincadeira, trouxe à tona uma reflexão sobre a função da audiência de custódia e, principalmente, sobre o papel das prisões cautelares no processo penal.

O preso mencionado já possuía antecedentes criminais por homicídio e tráfico de drogas, segundo informações da Polícia Militar, o que reforçou a leitura de que sua recorrente presença em juízo evidenciava possível reiteração delitiva.

A audiência de custódia, prevista em lei e regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça, deve ser realizada em até 24 horas após a prisão em flagrante. Nela, o magistrado analisa não apenas a legalidade da captura, mas também a necessidade da manutenção da prisão ou a possibilidade de substituição por medidas cautelares diversas.

O episódio, portanto, permite um estudo didático sobre os fundamentos da prisão em flagrante, suas fases e os critérios que podem justificar a decretação da prisão preventiva, sobretudo diante da reincidência ou habitualidade criminosa do preso.

Aspectos jurídicos relevantes

Prisão em flagrante

A prisão em flagrante não se esgota na captura do indivíduo. Ela se desenvolve em fases: captura, apresentação à autoridade policial, lavratura do auto de prisão em flagrante, comunicações necessárias (à família, ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria), e, finalmente, a remessa dos autos ao Judiciário, que deve, em até 24 horas, realizar a audiência de custódia.

Nessa audiência, o juiz pode tomar três caminhos (art. 310 do CPP):

  • relaxar a prisão ilegal;
  • converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, quando presentes os requisitos do art. 312 do CPP e insuficientes as medidas cautelares diversas;
  • conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

Conversão da prisão

A conversão em preventiva não pode ser feita de ofício, dependendo de requerimento do Ministério Público ou de representação da autoridade policial.

Além disso, exige o preenchimento cumulativo dos requisitos legais: fumus comissi delicti (indícios de autoria e materialidade), periculum libertatis (risco que a liberdade oferece), contemporaneidade, proporcionalidade e insuficiência das cautelares diversas da prisão.

prisão

O periculum libertatis pode se manifestar, dentre outros, na necessidade de preservar a ordem pública diante da reiteração delitiva, aspecto mencionado pela juíza em tom de brincadeira.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é firme ao reconhecer que:

A prisão preventiva pode ser decretada para garantia da ordem pública nos casos de reiteração delitiva, participação em organizações criminosas, gravidade concreta da conduta ou periculosidade social do agente.

Inquéritos policiais e processos em andamento, embora não possam agravar a pena-base, são elementos aptos a demonstrar eventual reiteração delitiva e justificar a preventiva.

Assim, o histórico do preso e as circunstâncias relatadas indicam que medidas cautelares em meio aberto, como monitoração eletrônica ou comparecimento periódico em juízo, seriam insuficientes para acautelar a ordem pública.

A decretação da prisão preventiva também encontra limites legais expressos no artigo 313 do Código de Processo Penal. Em regra, somente pode ser decretada nos casos de crime doloso cuja pena máxima seja superior a quatro anos, estando, portanto, excluídas as contravenções penais e os crimes culposos. Contudo, a lei prevê hipóteses excepcionais em que o critério da pena máxima se torna irrelevante: quando o agente é reincidente em crime doloso; quando não for possível a sua identificação civil; quando houver descumprimento de medida protetiva de urgência em casos de violência doméstica e familiar; ou, ainda, no caso de descumprimento de qualquer das medidas cautelares pessoais previstas no art. 319 do CPP. Essas hipóteses reforçam o caráter subsidiário e excepcional da prisão preventiva, que somente deve ser decretada quando estritamente necessária.

Conclusão

O episódio evidencia como um comentário trivial pode iluminar temas centrais do processo penal.

A fala da magistrada — “Você aqui de novo?” — traduz a realidade enfrentada pelo sistema de justiça: indivíduos que reiteradamente retornam às audiências em razão de novas prisões, revelando um ciclo de criminalidade que desafia a efetividade das medidas cautelares.

Do ponto de vista jurídico, o caso reafirma a função acautelatória da prisão preventiva. Longe de ser uma sanção antecipada, trata-se de medida destinada a proteger a sociedade, a instrução criminal e a aplicação da lei penal. No entanto, como medida de exceção, deve observar os requisitos estritos previstos em lei e ser devidamente fundamentada.

O tom descontraído da juíza, portanto, não diminui a seriedade do ato. Pelo contrário: oferece uma oportunidade de refletir sobre os limites e fundamentos da prisão cautelar no Estado Democrático de Direito.

Como isso vai cair na sua prova?

Questão objetiva simulada

Na audiência de custódia, o juiz:

a) Pode decretar prisão preventiva de ofício, desde que presentes os requisitos do art. 312 do CPP.

b) Deve obrigatoriamente conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

c) Pode relaxar a prisão ilegal, converter a prisão em flagrante em preventiva ou conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

d) Só pode determinar medidas cautelares diversas da prisão, sendo vedada a conversão em preventiva.

e) Pode aplicar qualquer medida cautelar de ofício, ainda que sem requerimento do MP ou representação da autoridade policial.

Gabarito: C.

Explicação: O art. 310 do CPP estabelece três alternativas ao juiz na audiência de custódia: relaxar a prisão ilegal, converter em preventiva (quando preenchidos os requisitos do art. 312 e mediante provocação) ou conceder liberdade provisória.


[1]MORAES, Vinicius. Juíza dá risada ao reencontrar preso em audiência de custódia e brinca: ‘Você aqui de novo?’; vídeo. G1 Goiás. Disponível em: <https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2025/09/09/juiza-da-risada-ao-reencontrar-preso-em-audiencia-de-custodia-e-brinca-voce-aqui-de-novo-video.ghtml>.


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