O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em decisão unânime, determinou a instauração de Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra dois desembargadores do Tribunal de Justiça de Goiás. O caso ganhou repercussão após os magistrados proferirem declarações controversas durante o julgamento de um caso de assédio sexual.
O que, de fato, aconteceu?
Durante julgamento de caso envolvendo assédio sexual, dois desembargadores proferiram falas questionando a postura da suposta vítima e denúncias relativas a esse tipo de crime.
O primeiro desembargador pontuou que atualmente há uma “caça aos homens” impedindo relações entre homens e mulheres. Também disse que, por namorar um estudante de Direito, a suposta vítima poderia estar planejando ação penal contra o denunciado.
“Essa caça às bruxas, caça aos homens. Daqui a pouco não vai ter nenhum encontro. Como você vai ter relacionamento com uma mulher, se não tiver um ‘ataque’? Vamos colocar ‘ataque’ entre aspas.”
Depois, insinuou que a denunciante seria “sonsa”.
“Uma outra pergunta também que eu faço, essa moça aí, ela mesma falou que é ‘sonsa’, ela mesma usou essa expressão, que não está compreendendo a coisa. Se ela não foi muito sonsa nesse…? No século que a gente está. É outra dúvida“.
O segundo desembargador, na mesma oportunidade, afirmou ser “cético” em denúncias de assédio sexual e racismo. Acresceu que vê certo “modismo” nesses tipos de acusações.
“Eu, particularmente, tenho uma preocupação muito séria com o tal do assédio moral – como gênero sexual, como espécie do gênero – e racismo. Então, esses dois temas viraram modismos. Não é à toa, não é brincadeira, que estão sendo usados e explorados com muita frequência.”
Agora, vamos entender o que decidiu o CNJ em relação a este PAD.
Primeiro, qual a base constitucional da competência do CNJ para julgar algo sobre o caso?
De início, a Constituição Federal estabelece expressamente a competência disciplinar do CNJ em seu art. 103-B, §4º:
"Art. 103-B. [...] § 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: [...] III - receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais;"
Ou seja, o CNJ tem função correicional perante todos os membros do Poder Judiciário do país.
E o que entendeu o CNJ até então?
Vamos analisar a decisão do caso concreto.
Veja, o que diz o Código de Ética da Magistratura Nacional que estabelece expressamente quanto aos deveres éticos:
"Art. 15. A integridade de conduta do magistrado fora do âmbito estrito da atividade jurisdicional contribui para uma fundada confiança dos cidadãos na judicatura. Art. 16. O magistrado deve comportar-se na vida privada de modo a dignificar a função, cônscio de que o exercício da atividade jurisdicional impõe restrições e exigências pessoais distintas das acometidas aos cidadãos em geral."
Em outras palavras, há um estabelecimento de um princípio fundamental ao determinar que a integridade de conduta do magistrado, mesmo quando exercida fora do ambiente estritamente jurisdicional, possui relevância jurídica na medida em que contribui para a construção e manutenção da confiança que os cidadãos depositam no Poder Judiciário.
No caso concreto, o caso estava sendo julgado pelos desembargadores e estavam portanto em exercício.
Por outro lado, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN – (LC nº 35/79) dispõe em seu art. 35:
"Art. 35 - São deveres do magistrado: [...] VIII - manter conduta irrepreensível na vida pública e particular;"
Perceba, ao utilizar o termo “irrepreensível”, o dispositivo estabelece um padrão maximamente exigente de comportamento, indicando que não basta ao magistrado manter uma conduta apenas regular ou satisfatória – ela deve ser exemplar, acima de qualquer reprovação.
A escolha lexical do legislador não foi casual: ao optar pelo termo “irrepreensível”, estabeleceu-se um padrão que não admite graduações ou relativizações, exigindo do magistrado uma constante vigilância sobre seus atos e palavras.
Lado outro, em caso de violação dos deveres funcionais, o art. 42 da LOMAN prevê:
"Art. 42 - São penas disciplinares: I - advertência; II - censura; III - remoção compulsória; IV - disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço; V - aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço; VI - demissão."
Por fim, a decisão do Min. Mauro Cambell destacou a aplicação da Resolução CNJ 492/23 estabelece a obrigatoriedade da perspectiva de gênero em todas as esferas de julgamento no país, determinando que os magistrados devem ter conhecimento justamente para evitar comportamento discriminatório:
“Entre as iniciativas mais recentes, está a determinação, expressa na Resolução CNJ n. 492/2023, da obrigatoriedade para que os magistrados e as magistradas do país tenham capacitação em relação aos princípios do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, cujo objetivo é evitar que procedimentos e decisões judiciais incorram em atos discriminatórios e assim garantir efetivo acesso à justiça para mulheres e meninas”. https://www.cnj.jus.br/cnj-reforca-politica-e-abre-canais-de-escuta-para-combate-a-violencia-de-genero/
Ok, mas qual foram as manifestações que fundamentaram o PAD?
Os desembargadores proferiram as seguintes declarações durante o julgamento:
Primeiro desembargador: "Essa caça às bruxas, caça aos homens. Daqui a pouco não vai ter nenhum encontro. Como você vai ter relacionamento com uma mulher, se não tiver um 'ataque'? Vamos colocar 'ataque' entre aspas."
Segundo desembargador: "Eu, particularmente, tenho uma preocupação muito séria com o tal do assédio moral - como gênero sexual, como espécie do gênero - e racismo. Então, esses dois temas viraram modismos."
Dessa forma, por necessitar de investigação contundente sobre o caso, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do CNJ e do STF, ressaltou a necessidade de combate ao machismo estrutural no Judiciário.
Inclusive, a conselheira Renata Gil, supervisora da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, também destacou a importância do treinamento continuado dos magistrados.
Face ao exposto, o CNJ determinou a abertura do PAD. Perceba, não se trata ainda de nenhuma punição, mas sim de uma investigação profunda que pode acarretar nas penas do art. 42 da LOMAN.
Saliente-se que a decisão unânime do CNJ demonstra o compromisso institucional com a dignidade da função jurisdicional e com o respeito aos direitos fundamentais.
Trata-se de tema relevante para concursos da magistratura e Ministério Público, especialmente quanto aos deveres funcionais dos magistrados e à competência disciplinar do CNJ.
Processo de referência: Reclamação Disciplinar 0001686-17.2024.2.00.0000
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