* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Decisão do CNJ
O Conselho Nacional de Justiça decidiu instaurar um Procedimento Administrativo Disciplinar – PAD contra duas magistradas (uma juíza e uma desembargadora) que proferiram decisões no caso de negativa de aborto legal a uma adolescente de 13 anos.
A juíza, que atua na vara da Infância e da Juventude de Goiânia, também foi afastada da jurisdição especial. Ela deve ser designada para atuar em vara diversa.
Entenda o caso
As decisões envolvendo as magistradas foram proferidas em 2024, e impossibilitaram o acesso da adolescente vítima de estupro ao aborto legal.
A menina decidiu realizar a interrupção da gravidez quando estava na 18ª semana de gestação, mas as decisões da juíza e da desembargadora impediram-na.
A magistrada de 1º grau até autorizou a interrupção da gravidez, mas impediu a realização de assistolia fetal, técnica necessária para o procedimento, com base em uma resolução do Conselho Federal de Medicina, que, à época, o STF já tinha suspendido.

A principal finalidade da assistolia fetal é interromper a atividade cardíaca do feto antes da retirada do útero. Evita-se, assim, que o feto nasça com sinais vitais. Ela ocorre por meio da injeção de um medicamento, geralmente cloreto de potássio, no coração do feto, utilizando um ultrassom para localizar o coração.
O procedimento de assistolia fetal causa muita polêmica, já que é visto, por alguns, como um meio cruel e fonte de dor no feto. Outros defendem que a assistolia fetal é uma forma segura de garantir uma interrupção da gravidez em casos específicos.
“Presunção absoluta de violência”
Ao permitir a interrupção da gestação "com proteção ao nascituro", sendo preservada a vida do feto, a juíza, na prática, apenas permitiu a antecipação do parto.
Após a decisão da juíza, o pai da menina buscou o Judiciário para que se adiasse o procedimento, e o feto tivesse mais chances de sobreviver. Ele alegou que os atos foram consensuais – embora o CP considere estupro de vulnerável qualquer ato sexual com menores de 14 anos.
A desembargadora, do Tribunal de Justiça de Justiça de Goiás, acatou o pedido do pai e proibiu a realização de qualquer procedimento, sob o fundamento de que não havia laudo médico comprovando risco à vida da menina gestante.
Houve recurso para o Superior Tribunal de Justiça, que autorizou a realização do procedimento.
A presidente do STJ à época, a ministra Maria Thereza de Assis Moura, destacou a clara situação de constrangimento a que foi submetida a menina, e apontou estar diante de um caso de “presunção absoluta de violência“, dada a prática de estupro de vulnerável.
“A situação que se apresenta impõe a imediata intervenção desta Corte para fazer cessar o constrangimento ilegal a que se encontra submetida a paciente...
Convém salientar, ainda, que a resolução do CFM - Conselho Federal de Medicina que proibia o procedimento de assistolia fetal está suspensa por decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes.”
Suspensão da Resolução CFM 2.378/2024
A Resolução em questão regulamenta o ato médico de assistolia fetal, para interrupção da gravidez, nos casos de aborto previsto em lei oriundos de estupro.
O art. 1ª, da Resolução, proíbe o médico da realização do procedimento de assistolia fetal, ato médico que ocasiona o feticídio, previamente aos procedimentos de interrupção da gravidez nos casos de aborto previsto em lei, ou seja, feto oriundo de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas.
O Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, suspendeu a resolução por meio de liminar concedida na ADPF 1.141.
Na avaliação do ministro, há indícios de abuso do poder regulamentar por parte do CFM ao limitar a realização de um procedimento médico reconhecido e recomendado pela OMS e previsto em lei.
No caso de gravidez resultante de estupro, além do consentimento da vítima e da realização do procedimento por médico, a legislação brasileira não estabelece expressamente quaisquer limitações circunstanciais, procedimentais ou temporais para a realização do chamado aborto legal.
Ficou reconhecida, portanto, a existência de indícios de abuso do poder regulamentar por parte do Conselho Federal de Medicina ao expedir a Resolução 2.378/2024, por meio da qual fixou condicionante aparentemente ultra legem para a realização do procedimento de assistolia fetal na hipótese de aborto decorrente de gravidez resultante de estupro.
Aborto no Brasil
Atualmente, no Brasil, permite-se o aborto em três hipóteses:

Para os casos de gravidez de risco e anencefalia, é necessária a comprovação da causa de justificação, seja através de um laudo médico, ou um exame de ultrassonografia com diagnóstico da anencefalia.
E para o caso de estupro não há necessidade de apresentação de Boletim de Ocorrência ou algum exame que comprove o crime. O relato da vítima à equipe médica é suficiente.
O código penal trata do aborto nos artigos 124 a 128. Vejamos.
CP
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena - detenção, de um a três anos.
...
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Portanto, o direito positivado prevê duas hipóteses permitidas de aborto: risco para a mãe e gravidez resultante de estupro. A terceira hipótese permissiva do aborto decorre de construção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, que, na ADPF 54, declarou inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta que os arts. 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal tipificam.
O STF, no ano de 2012, julgando a ADPF 54, acrescentou mais uma hipótese lícita de aborto: caso de gravidez envolvendo feto anencéfalo.
O dicionário Aurélio define a anencefalia como a “monstruosidade consistente na falta de cérebro“, mas em linguagem científica podemos conceituar anencefalia como uma malformação no feto que implica na ausência ou formação defeituosa dos hemisférios cerebrais, ou seja, não existe cérebro bem constituído no anencéfalo.
Em geral, a anencefalia impede a vida extrauterina do bebê, tornando a vida inviável.
O cerne da discussão na ADPF 54 foi sopesar o aparente conflito entre os interesses daqueles que desejam proteger todos os seres humanos, desde a concepção, independentemente da condição física ou viabilidade de sobrevivência, e aqueles que desejam proteger os interesses legítimos da mulher em ver respeitada sua dignidade, sua liberdade, sua autodeterminação, sua saúde e seus direitos sexuais e reprodutivos.
No final, ficou decidido que “A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher”.
Deveres funcionais dos magistrados
A Constituição Federal, em seu artigo 95, parágrafo único, e a LOMAN – Lei Orgânica da Magistratura Nacional, fixaram diretrizes para a atuação do magistrado.
O Código de Ética da Magistratura Nacional prevê, em seus diversos artigos, variados deveres voltados a resguardar a transparência, a integridade pessoal e profissional do juiz, a imparcialidade e a diligência e dedicação, que todo magistrado deve observar. Vejamos alguns desses artigos:
Art. 15. A integridade de conduta do magistrado fora do âmbito estrito da atividade jurisdicional contribui para uma fundada confiança dos cidadãos na judicatura.
Art. 16. O magistrado deve comportar-se na vida privada de modo a dignificar a função, cônscio de que o exercício da atividade jurisdicional impõe restrições e exigências pessoais distintas das acometidas aos cidadãos em geral.
...
Art. 20. Cumpre ao magistrado velar para que os atos processuais se celebrem com a máxima pontualidade e para que os processos a seu cargo sejam solucionados em um prazo razoável, reprimindo toda e qualquer iniciativa dilatória ou atentatória à boa-fé processual.
...
Art. 37. Ao magistrado é vedado procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções.
Já o Estatuto da Magistratura (LC nº 35/79), em seu art. 35, VIII, traz como dever do magistrado “manter conduta irrepreensível na vida pública e particular”.
As penas disciplinares decorrentes da quebra dos deveres da magistratura estão arroladas no artigo 42, do Estatuto da Magistratura. Vejamos:
Art. 42 - São penas disciplinares:
I - advertência;
II - censura;
III - remoção compulsória;
IV - disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço;
V - aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço;
VI - demissão.
Afastamento preventivo
Existe, também, a possibilidade de afastamento preventivo do magistrado.
O afastamento preventivo de um magistrado é medida que pode ser tomada quando a sua permanência no local de trabalho possa influenciar na apuração de uma irregularidade a ser apurada em sindicância ou Processo Administrativo Disciplinar.
Importante ressaltar que o objetivo do afastamento preventivo é possibilitar que a autoridade responsável pela apuração da irregularidade tenha mais liberdade e isenção nas suas atividades, principalmente na instrução probatória.
No afastamento preventivo do magistrado, mantém-se o recebimento do salário até a decisão final.
O art. 15, da Resolução CNJ nº 135, de 13 de julho de 2011, que dispõe sobre a uniformização de normas relativas ao procedimento administrativo disciplinar aplicável aos magistrados, é claro ao prescrever que:
O Tribunal, observada a maioria absoluta de seus membros ou do Órgão Especial, na oportunidade em que determinar a instauração do processo administrativo disciplinar, decidirá fundamentadamente sobre o afastamento do cargo do Magistrado até a decisão final, ou, conforme lhe parecer conveniente ou oportuno, por prazo determinado, assegurado o subsídio integral.
O afastamento do magistrado poderá ser decretado de forma cautelar pelo Tribunal antes da instauração do processo administrativo disciplinar, quando necessário ou conveniente a regular apuração da infração disciplinar. Assim, o magistrado fica impedido de utilizar o seu local de trabalho e usufruir de veículo oficial e outras prerrogativas inerentes ao exercício da função.
No caso da juíza de Goiás, ficou comprovado que ela autorizou apenas um “parto antecipado”, sem assistolia fetal — método que mantém o feto vivo, contrariando laudos técnicos e a vontade explícita da jovem, que manifestou 14 vezes o desejo de interromper a gravidez.
Classificou-se esse fato como “violência institucional” e “revitimização”. Isso porque a demora injustificada fez com que a gestação avançasse da 20ª para a 22ª semana, limitando as opções médicas.
O relatório assinado por Mauro Campbell, ministro do Superior Tribunal de Justiça, que também compõe o CNJ, foi direto:
“Há fortes indícios de que a magistrada teria prolongado desnecessariamente o seu andamento, ao que tudo indica, por convicções filosóficas ou religiosas que interferiram em seu juízo de valor”.
Já em relação à atuação da desembargadora, o relator apontou que ela ignorou os direitos da adolescente ao suspender, sem prazo definido, o procedimento de aborto autorizado em primeira instância, o que caracteriza “violência de gênero pela negação ou atraso do aborto seguro”.
Ótimo tema para provas da magistratura. Portanto, muita atenção!
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