Prof. Gustavo Cordeiro
Introdução: por que esse tema exige sua atenção agora
Imagine a seguinte situação: um servidor público comete ato de improbidade administrativa enquanto está na ativa. Anos depois, já aposentado, a condenação transita em julgado, com aplicação da pena de perda da função pública. E agora? É possível converter essa penalidade em cassação de aposentadoria?
Essa questão dividiu os Tribunais Superiores por anos. O STJ, em julgamento paradigmático da Primeira Seção (EREsp 1.496.347/ES), havia firmado entendimento pela impossibilidade dessa conversão, com fundamento na legalidade estrita. O raciocínio era simples: a Lei de Improbidade Administrativa (LIA) não prevê expressamente a cassação de aposentadoria como sanção, logo, o Judiciário não poderia aplicá-la.
Ocorre que o Supremo Tribunal Federal passou a reformar sistematicamente as decisões do STJ nesse sentido, consolidando entendimento diametralmente oposto. Em outubro de 2025, a Primeira Seção do STJ reconheceu essa mudança de paradigma e alinhou sua jurisprudência à orientação da Corte Constitucional.
O tema tem altíssima probabilidade de cobrança em provas de Magistratura, Ministério Público, Defensoria e Delegado, especialmente em questões que exijam conhecimento atualizado sobre improbidade administrativa e suas consequências sancionatórias.
O entendimento anterior do STJ: legalidade estrita como barreira
Para compreender a virada jurisprudencial, é preciso revisitar o fundamento central que levou o STJ a negar a possibilidade de cassação de aposentadoria em sede de improbidade.
No julgamento dos EREsp 1.496.347/ES, a Primeira Seção do STJ firmou a tese de que as sanções por improbidade administrativa estão taxativamente previstas no art. 12 da Lei 8.429/1992 e que a cassação de aposentadoria não figura entre elas. Pelo princípio da legalidade estrita aplicável ao direito sancionador, o Judiciário não poderia criar penalidade não prevista em lei.
A lógica era coerente com a tradição do direito administrativo sancionador brasileiro, que exige tipicidade e previsão legal expressa para qualquer punição. A aposentadoria, uma vez concedida, representaria direito adquirido do servidor, não sendo possível sua desconstituição por analogia ou interpretação extensiva das sanções legais.
A guinada do STF: teoria do fato consumado às avessas
O Supremo Tribunal Federal, contudo, passou a adotar orientação diversa, reformando decisões do STJ tanto em sede de recurso extraordinário quanto em reclamações constitucionais.
RE 1.456.118/SP: Nesse julgado, a Suprema Corte afirmou expressamente a possibilidade de conversão da pena de perda de cargo público em cassação de aposentadoria na fase de cumprimento de sentença de ação por improbidade administrativa. O recurso foi interposto contra acórdão da Segunda Turma do STJ (AgInt no AREsp 1.773.833/SP, julgado em 20/6/2023).
Reclamação 67.300/DF: O Ministro Gilmar Mendes, ao relatar essa reclamação proposta no curso de execução de sentença em ação de improbidade, sintetizou o entendimento do Plenário do STF: mesmo considerando as Emendas Constitucionais 3/1993, 20/1998 e 41/2003, o texto constitucional não revogou a penalidade de cassação de aposentadoria, especialmente no tocante ao regime de previdência do art. 40 da Constituição Federal.
O raciocínio do STF parte de uma premissa teleológica e sistemática: se o ato ilícito fosse conhecido à época de sua prática e fosse aplicada a pena de demissão, o servidor perderia o cargo e sequer teria direito à aposentadoria. Permitir que a aposentação funcione como escudo protetivo contra a responsabilização por improbidade seria premiar o ímprobo que conseguiu se aposentar antes do trânsito em julgado da condenação.
Em agosto de 2024, o Ministro Alexandre de Moraes, em decisão monocrática, deu provimento a recurso extraordinário com agravo para reformar acórdão que seguia a orientação do STJ firmada nos EREsp 1.496.347/ES, reafirmando a possibilidade de cassação.
O alinhamento do STJ: reconhecimento da autoridade do STF
Diante da jurisprudência consolidada do Supremo, a Primeira Seção do STJ, em julgamento de outubro de 2025 (Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues), reconheceu que seu entendimento anterior não mais poderia prevalecer.

O acórdão embargado, ao concluir que “a cassação da aposentadoria é plenamente cabível nas ações em que se imputa ao réu a prática de atos de improbidade administrativa, como consectário lógico da pena de perda da função pública”, passou a espelhar a atual jurisprudência do STF.
Trata-se de um exemplo didático de como o sistema de precedentes brasileiro funciona na prática: o STJ, embora seja o guardião da legislação federal, curvou-se à interpretação constitucional dada pelo STF sobre a matéria.
A Lei 14.230/2021 alterou esse cenário?
A reforma da Lei de Improbidade Administrativa promovida pela Lei 14.230/2021 trouxe importantes modificações no regime sancionatório, especialmente quanto à exigência de dolo específico para configuração dos atos ímprobos.
No caso concreto analisado pelo STJ em outubro de 2025, a condenação na origem baseou-se no art. 9º da LIA (enriquecimento ilícito), tendo sido reconhecida a presença de dolo e de enriquecimento decorrente de furto de armas de fogo praticado por agente da Polícia Civil do Distrito Federal.
O STJ destacou que a superveniência da Lei 14.230/2021 não alterou a tipicidade da conduta, uma vez que já havia sido comprovado o dolo no caso concreto.
Quanto ao § 1º do art. 12 da LIA, na redação dada pela Lei 14.230/2021, o dispositivo inovou apenas no tocante ao vínculo a ser afetado pela pena de perda da função, estabelecendo que ela se restringe ao cargo “de mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração”.
Esse dispositivo, contudo, não afasta a possibilidade de conversão em cassação de aposentadoria, pois a aposentadoria deriva justamente do cargo ocupado à época da prática do ato ímprobo.
Quadro comparativo: antes e depois da virada jurisprudencial
| Aspecto | Entendimento anterior (STJ) | Entendimento atual (STF/STJ) |
| Fundamento | Legalidade estrita | Interpretação teleológica e sistemática |
| Possibilidade de cassação | Não | Sim |
| Base legal | Art. 12 da LIA (rol taxativo) | Art. 40 da CF + interpretação do art. 12 da LIA |
| Momento da conversão | Não admitida | Fase de cumprimento de sentença |
| Precedente paradigmático | EREsp 1.496.347/ES | RE 1.456.118/SP e Rcl 67.300/DF |
Questão inédita comentada
Enunciado:
João, servidor público estadual, foi condenado por ato de improbidade administrativa previsto no art. 9º da Lei 8.429/1992, com aplicação da pena de perda da função pública. Durante o trâmite processual, João se aposentou. Na fase de cumprimento de sentença, o Ministério Público requereu a conversão da pena de perda da função em cassação de aposentadoria. Com base na jurisprudência atual dos Tribunais Superiores, assinale a alternativa correta:
(A) O pedido do Ministério Público deve ser indeferido, pois a cassação de aposentadoria não está prevista entre as sanções do art. 12 da LIA, sendo vedada a analogia in malam partem no direito sancionador.
(B) O pedido do Ministério Público deve ser deferido, pois o STF consolidou entendimento de que é possível a conversão da pena de perda de cargo público em cassação de aposentadoria na fase de cumprimento de sentença de ação por improbidade administrativa.
(C) O pedido do Ministério Público deve ser indeferido, pois a aposentadoria constitui direito adquirido, protegido pelo art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.
(D) O pedido do Ministério Público deve ser deferido apenas se houver previsão expressa na legislação estadual autorizando a cassação de aposentadoria.
(E) O pedido do Ministério Público deve ser indeferido, pois as Emendas Constitucionais 3/1993, 20/1998 e 41/2003 revogaram tacitamente a possibilidade de cassação de aposentadoria.
Gabarito: B
Comentários:
(B) CORRETA. Reflete o entendimento atual do STF, consolidado em julgados como o RE 1.456.118/SP e a Rcl 67.300/DF, segundo o qual é possível a conversão da pena de perda de cargo público em cassação de aposentadoria na fase de cumprimento de sentença. O STJ, em outubro de 2025, alinhou sua jurisprudência a essa orientação.
(A) INCORRETA. Embora reproduza o fundamento do antigo entendimento do STJ (EREsp 1.496.347/ES), essa orientação foi superada pela jurisprudência do STF, que passou a reformar sistematicamente decisões nesse sentido.
(C) INCORRETA. O STF afastou a tese de que a aposentadoria funcionaria como proteção absoluta contra a responsabilização por improbidade. A lógica adotada é que, se o ilícito fosse descoberto antes, o servidor seria demitido e sequer se aposentaria.
(D) INCORRETA. A possibilidade de cassação decorre de interpretação constitucional e legal realizada pelo STF, não dependendo de previsão em legislação estadual específica.
(E) INCORRETA. O STF expressamente afirmou, na Rcl 67.300/DF, que as referidas emendas constitucionais não revogaram a previsão de cassação de aposentadoria, especialmente no regime de previdência do art. 40 da CF.
Fechamento estratégico: o que memorizar para a prova
Para fixar o conteúdo de forma eficiente, tenha em mente os seguintes pontos-chave:
O entendimento atual é do STF, não mais do STJ. O antigo precedente dos EREsp 1.496.347/ES foi superado pela jurisprudência constitucional.
A conversão ocorre na fase de cumprimento de sentença. Não se trata de condenação direta à cassação, mas de conversão da pena de perda da função quando o servidor já se aposentou.
O fundamento é teleológico. Se o ilícito fosse conhecido antes, haveria demissão e o servidor não teria direito à aposentadoria. A aposentadoria não pode servir como escudo para o ímprobo.
A Lei 14.230/2021 não alterou esse panorama. A exigência de dolo específico e a restrição do § 1º do art. 12 da LIA não afastam a possibilidade de cassação quando comprovado o dolo e o enriquecimento ilícito.
As EC 3/93, 20/98 e 41/03 não revogaram a cassação de aposentadoria. O regime do art. 40 da CF permanece compatível com essa sanção.
Quer saber quais serão os próximos concursos?
Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!