O concurso para professor no Departamento de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo gerou significativa controvérsia jurídica após a apresentação de “cartas de recomendação” por um dos candidatos, incluindo manifestações de ministros do Supremo Tribunal Federal.
Nessa linha, o caso suscita importante debate sobre os limites da avaliação de mérito em concursos públicos e a aplicação do princípio constitucional da impessoalidade em certames acadêmicos.
Concurso em que candidato deu “carteirada” com ajuda de ministros do STF pode ser anulado
Assim, a controvérsia gerou significativa repercussão nas redes sociais, conforme demonstra a análise sistemática dos comentários coletados1:
Categoria dos comentários | Quantidade | Percentual | Exemplos |
Críticas ao STF/Ministros | 89 | 42,1% | “Gilmar Mendes tá em todas!”, “STF precisa acabar nesse país”, “Eles se metem em tudo” |
Denúncias de Corrupção/Aparelhamento | 45 | 21,3% | “Aparelhamento das instituições”, “É só falcatruas”, “A casta se protege e se multiplica” |
Questionamentos sobre Meritocracia | 28 | 13,2% | “Meritocracia não é com eles”, “Famoso QI – quem indica”, “Brasil sendo Brasil” |
Apoio à Anulação/Procedimentos | 24 | 11,4% | “Deve ser anulado”, “Parabéns à candidata que recorreu”, “Justíssimo” |
Defesa do Candidato | 8 | 3,8% | “Candidato foi aprovado com nota máxima”, “Apenas cartas referenciais dos ex-chefes” |
Ceticismo sobre Consequências | 17 | 8,0% | “Não vai dar em nada”, “Pode deixar que vai ser mantido”, “Duvido que anulem” |
Delineamento fático da controvérsia
Narra-se que um candidato filho de ministro do Superior Tribunal de Justiça, sagrou-se vencedor do concurso público para ingresso na carreira docente da Faculdade de Direito da USP.
Em seu memorial, dedicou 24 das 152 páginas para anexar correspondências de autoridades do Judiciário brasileiro, incluindo os ministros do STF Gilmar Mendes, Edson Fachin, André Mendonça e Dias Toffoli, além do procurador-geral da República Paulo Gonet e dois ministros do STJ.
Nessa linha, entre as manifestações apresentadas, destaca-se a carta do ministro Edson Fachin, que registrou não haver “palavras suficientes para expressar o potencial ganho que a Faculdade de Direito da USP teria com o ingresso do Professor Rafael Fonseca em seus quadros”.
Tais documentos foram incluídos no memorial do candidato como elementos complementares à sua formação e experiência profissional.
Após questionamentos sobre a regularidade do certame, o professor Elival da Silva Ramos elaborou parecer técnico-jurídico solicitando a anulação do concurso e convocação de novo edital.
A congregação da Faculdade de Direito da USP iniciou análise do caso, com decisão prevista para o final de junho de 2025.
Aspectos normativos do edital: conformidade e lacunas regulamentares
Princípios fundamentais estabelecidos

De início, o edital do concurso estabelece, de forma cristalina, que "o concurso será regido pelos princípios constitucionais, notadamente o da impessoalidade, bem como pelo disposto no Estatuto e no Regimento Geral da Universidade de São Paulo".
Nessa linha, esta disposição reveste-se de particular importância jurídica, pois invoca expressamente o princípio constitucional da impessoalidade como norteador do certame, conforme previsto no art. 37, caput, da Constituição Federal.
Estrutura normativa do memorial acadêmico
Quanto a possibilidade de apresentação de memoriais, o parágrafo primeiro do item 1 do edital estabelece critérios específicos, determinando que o memorial deve ter “a forma de breve narrativa da trajetória acadêmica do candidato, com destaque para as cinco produções que julgar mais relevantes, acompanhado de elementos integrantes de seu currículo, apresentados esquematicamente como itens, conforme a subdivisão temática constante dos incisos do parágrafo 1º do art. 136 do Regimento Geral da USP”.
Perceba, esta disposição editalícia revela-se central para compreendermos a controvérsia.
O edital do concurso estabelece que o memorial deve limitar-se à “narrativa da trajetória acadêmica” e aos “elementos integrantes do currículo”.
Quais são os critérios de avaliação estabelecidos?
O item 7 do edital especifica os critérios para julgamento do memorial, estabelecendo que a comissão apreciará: produção científica, literária, filosófica ou artística; atividade didática universitária; atividades relacionadas à prestação de serviços à comunidade; atividades profissionais ou outras; e diplomas e outras dignidades universitárias.
Argumentos favoráveis à anulação do certame
1) Violação ao princípio da impessoalidade
Os defensores da anulação fundamentam-se primordialmente na alegada violação ao princípio constitucional da impessoalidade.
Esta corrente interpretativa sustenta que concursos públicos devem pautar-se exclusivamente por critérios objetivos de mérito, vedando-se qualquer forma de influência externa que possa comprometer a isonomia entre os candidatos.
Para compreendermos melhor este argumento, devemos lembrar que o princípio da impessoalidade possui dupla dimensão no direito administrativo brasileiro.
Primeiro, veda tratamentos discriminatórios entre administrados em situações equivalentes.
Segundo, impede que considerações de natureza pessoal influenciem decisões administrativas que deveriam basear-se exclusivamente em critérios técnicos objetivos.
Conforme registrado no parecer do professor Elival Ramos, as cartas de recomendação “constituem autênticas recomendações à Comissão Julgadora em relação ao resultado final do concurso”, configurando interferência incompatível com a natureza dos memoriais acadêmicos.
O documento enfatiza que tais peças deveriam “limitar-se à descrição objetiva de títulos e atividades indicativas do mérito dos candidatos”.
2) Ausência de previsão editalícia
Outro argumento central reside na constatação de que o edital do concurso não previu, entre os documentos a serem apresentados, cartas de recomendação ou manifestações de apoio por terceiros.
A rigorosa observância às regras editalícias constitui princípio basilar dos concursos públicos, desenvolvido pela jurisprudência para assegurar que todos os candidatos concorram em condições rigorosamente idênticas.
Este princípio encontra fundamento na teoria dos atos administrativos normativos.
Quando a administração pública edita um edital de concurso, estabelece um verdadeiro “contrato de adesão” com os candidatos, definindo unilateralmente as regras do certame.
Uma vez publicado, o edital vincula não apenas os candidatos, mas também a própria administração, que não pode alterá-lo ou flexibilizá-lo durante o processo seletivo.
3) Potencial constrangimento da banca examinadora
Ademais, os críticos do procedimento argumentam que a apresentação de cartas subscritas por autoridades do mais alto escalão do Judiciário brasileiro poderia gerar constrangimento velado nos membros da banca examinadora. O peso institucional dos signatários das correspondências, segundo essa interpretação, criaria ambiente de pressão psicológica incompatível com a necessária independência dos avaliadores.
Este argumento baseia-se na compreensão de que a imparcialidade não exige apenas ausência de vícios subjetivos nos julgadores, mas também eliminação de circunstâncias objetivas que possam comprometer sua capacidade de julgamento independente.
Mesmo que os membros da banca sejam professores experientes e tecnicamente qualificados, a presença de manifestações de autoridades superiores pode criar, ainda que involuntariamente, ambiente de influência inadequada.
Argumentos contrários à anulação do certame
1) Natureza acadêmica dos memoriais
Por outro lado, os defensores da validade do concurso argumentam que memoriais acadêmicos tradicionalmente contemplam avaliações qualitativas da produção intelectual e da contribuição científica dos candidatos. Nessa perspectiva, manifestações de reconhecidas autoridades na área jurídica constituiriam legítima forma de demonstrar o impacto e a relevância do trabalho desenvolvido pelo candidato.
Para compreendermos este argumento, devemos considerar que a avaliação acadêmica possui especificidades que a distinguem de outros tipos de seleção pública.
Ora, enquanto concursos administrativos tradicionais podem basear-se integralmente em critérios objetivos e quantificáveis, a avaliação da excelência intelectual frequentemente demanda consideração de elementos qualitativos que transcendem meras contagens de publicações ou títulos.
Segundo essa corrente interpretativa, cartas de recomendação integram práticas consolidadas no meio acadêmico internacional, especialmente em universidades de prestígio, constituindo instrumento válido para avaliação da excelência intelectual e da contribuição científica dos postulantes.
2) Diferenciação entre recomendação e influência indevida
Defensores da legalidade do procedimento sustentam haver distinção fundamental entre cartas de recomendação baseadas em mérito acadêmico e tentativas de influência indevida.
Nessa linha, as manifestações apresentadas, segundo essa interpretação, limitaram-se a atestar a qualidade da produção intelectual e a capacidade técnica do candidato, sem configurar pressão ou interferência no processo decisório.
Este argumento encontra respaldo na análise do conteúdo das cartas apresentadas. Uma leitura cuidadosa das manifestações revela que elas focaram aspectos técnicos da trajetória profissional do candidato, como sua experiência em órgãos públicos e contribuições acadêmicas, ao invés de constituírem pedidos explícitos de favorecimento.
3) Autonomia da banca examinadora
Por fim, outro argumento favorável à manutenção do resultado sustenta que comissões julgadoras de concursos acadêmicos possuem autonomia e capacidade técnica para distinguir entre elementos relevantes e irrelevantes para a avaliação. Professores universitários, na qualidade de acadêmicos experientes, deteriam discernimento suficiente para avaliar candidatos com base exclusivamente em critérios técnicos, independentemente de manifestações externas.
Nessa perspectiva, pressupor que as cartas de recomendação influenciariam os membros da banca implicaria questionamento da competência e integridade dos próprios avaliadores. Todos os membros da comissão julgadora são professores titulares com reconhecida experiência acadêmica. Logo, presume-se que possuam maturidade intelectual para separar elementos substanciais de aspectos meramente ornamentais na avaliação.
4) Precedentes acadêmicos nacionais e internacionais
Lado outro, defensores da validade alegam existir precedentes de utilização de cartas de recomendação em processos seletivos acadêmicos, tanto no Brasil quanto no exterior.
Nessa linha, Universidades de prestígio internacional rotineiramente consideram manifestações de apoio como elementos complementares na avaliação de candidatos, especialmente em processos de seleção para posições de alta responsabilidade acadêmica.
Segundo essa argumentação, a vedação absoluta a tais práticas representaria retrocesso nas metodologias de avaliação acadêmica, privando as instituições de instrumentos tradicionalmente utilizados para identificar candidatos de excelência.
Bom, o que será decidido? Não sabemos, mas revela-se um caso interessante a ser discutido.
- Observações metodológicas: a análise considerou 211 comentários distintos, excluindo-se emojis isolados e comentários duplicados. A categorização baseou-se no conteúdo principal de cada manifestação. ↩︎
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