Introdução: o direito à saúde em rota de colisão com a política criminal
Em novembro de 2025, o Superior Tribunal de Justiça voltou a se manifestar sobre um dos temas mais sensíveis do direito penal contemporâneo: a criminalização do cultivo de cannabis para fins medicinais. No julgamento do AgRg no HC 1.017.622-SC, a Quinta Turma, por unanimidade, reafirmou a possibilidade de concessão de salvo-conduto para pacientes que necessitam cultivar maconha para tratamento de saúde, desde que comprovada a finalidade terapêutica por documentação idônea.
A decisão não representa uma novidade absoluta — a Terceira Seção já havia uniformizado o entendimento em 2023 —, mas consolida uma linha jurisprudencial extremamente relevante para candidatos a concursos das carreiras jurídicas. Por quê? Porque o caso envolve a tensão clássica entre o poder punitivo estatal e direitos fundamentais (saúde, dignidade humana), além de exigir conhecimento técnico sobre institutos processuais como o salvo-conduto, a interpretação teleológica da Lei de Drogas e a aplicação do princípio da adequação social.
Para Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e Delegacia, o tema é estratégico: pode aparecer em questões de direito penal material (tipicidade, excludentes de ilicitude), direito processual penal (habeas corpus, salvo-conduto) e até direitos humanos (direito à saúde, vedação ao tratamento desumano). Vamos destrinchar essa decisão de forma objetiva e estratégica.
O que é salvo-conduto e por que ele foi utilizado?
O salvo-conduto é uma ordem judicial preventiva, concedida por meio de habeas corpus, que protege o paciente de constrangimento ilegal futuro à sua liberdade de locomoção. Diferentemente do HC liberatório (que cessa constrangimento atual) ou preventivo (que evita prisão iminente), o salvo-conduto é uma garantia antecipada de que determinada conduta não resultará em persecução penal.
No caso concreto, o paciente portador de enfermidade grave necessitava cultivar cannabis para produzir extrato medicinal prescrito por médico. A ausência de regulamentação específica pela ANVISA e pelo Ministério da Saúde deixava essas pessoas em situação de insegurança jurídica: formalmente, o cultivo configura o tipo penal do art. 33, § 1º, II, da Lei 11.343/2006 (cultivar plantas destinadas à preparação de drogas).
Diante disso, o STJ utilizou o salvo-conduto para afastar a incidência do tipo penal, reconhecendo que, naquelas circunstâncias específicas (finalidade medicinal comprovada, prescrição médica, autorização da ANVISA para importação de medicamentos à base de canabidiol), a conduta não possui tipicidade material ou está acobertada pelo exercício regular de direito.
Fundamento legal: o art. 2º, parágrafo único, da Lei de Drogas
A decisão do STJ se ancora no art. 2º, parágrafo único, da Lei 11.343/2006, que assim dispõe:
"Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas."
Esse dispositivo é a válvula de escape legislativa que permite a utilização medicinal de substâncias psicotrópicas, incluindo a cannabis. O STJ interpretou essa norma de forma teleológica e sistemática, compreendendo que, enquanto não houver regulamentação específica do Poder Executivo Federal, o Judiciário pode autorizar o cultivo doméstico quando preenchidos os requisitos de segurança e necessidade terapêutica.
Quadro comparativo: cultivo comum vs. cultivo medicinal
| Aspecto | Cultivo comum (Art. 33, § 1º, II) | Cultivo medicinal (art. 2º, parágrafo único) |
| Finalidade | Produção de droga para consumo recreativo ou tráfico | Produção de extrato para tratamento de saúde |
| Prescrição médica | Inexistente | Necessária e comprovada |
| Documentação | Sem autorização legal | Laudo médico, receita, eventual autorização ANVISA |
| Consequência penal | Tipicidade configurada | Atipicidade material ou exercício regular de direito |
| Proteção judicial | Não se aplica | Possível concessão de salvo-conduto |
O precedente vinculante: EDcl no AgRg no RHC 165.266-CE
A decisão do AgRg no HC 1.017.622-SC se baseia em precedente importante da Terceira Seção do STJ, que uniformizou o entendimento sobre o tema. No julgamento dos EDcl no AgRg no RHC 165.266-CE, decidiu-se pela possibilidade de concessão de salvo-conduto para:
- Importação de sementes de cannabis;
- Cultivo doméstico da planta;
- Produção de extrato medicinal para uso próprio.
A Corte estabeleceu os seguintes requisitos cumulativos:
- Documentação idônea que comprove a necessidade terapêutica (laudos médicos, receitas, autorizações da ANVISA para importação de medicamentos derivados de canabidiol);
- Finalidade exclusivamente medicinal e para uso próprio;
- Cultivo no local de residência do paciente, sob controle;
- Pendência de regulamentação pelo Poder Executivo Federal.
O STJ, portanto, não está autorizando o cultivo indiscriminado de maconha, mas reconhecendo que, em situações excepcionais e documentadas, a proteção ao direito à saúde e à dignidade humana deve prevalecer sobre a incidência automática do tipo penal.
Questão processual: sobrestamento de HC e o art. 980 do CPC

Um ponto processual relevante na decisão foi o reconhecimento de negativa de prestação jurisdicional pelo Tribunal de origem, que havia sobrestado (suspenso) o habeas corpus em razão de incidente de assunção de competência instaurado na Corte estadual.
O STJ considerou essa decisão manifestamente ilegal, pois o art. 980 do Código de Processo Civil, que trata do incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), excetua expressamente o habeas corpus. Ou seja: mesmo que haja IRDR ou incidente de assunção de competência pendente, o HC deve ser julgado imediatamente, pois se trata de garantia constitucional à liberdade de locomoção que não comporta dilações indevidas.
⚠️ Atenção para concursos: esse entendimento reforça o caráter prioritário do habeas corpus no sistema processual brasileiro. Questões sobre exceções ao sobrestamento de processos (IRDR, IAC, recursos repetitivos) são comuns em provas de processo penal e constitucional.
Questão de concurso comentada
(Banca simulada - estilo CESPE/CEBRASPE)
João, diagnosticado com epilepsia refratária, obteve prescrição médica para uso de extrato de cannabis com alto teor de canabidiol (CBD). Diante da dificuldade de importação e do alto custo do medicamento, João impetrou habeas corpus com pedido de salvo-conduto para cultivar cannabis sativa em sua residência, exclusivamente para fins medicinais. O pedido foi instruído com laudo médico detalhado, receita médica e autorização prévia da ANVISA para importação de medicamento à base de CBD.
Diante desse cenário e considerando a jurisprudência do STJ, assinale a alternativa correta:
a) O pedido deve ser indeferido, pois o cultivo de cannabis sativa configura crime previsto no art. 33, § 1º, II, da Lei 11.343/2006, sendo vedada qualquer exceção enquanto não houver regulamentação específica.
b) O habeas corpus é inadequado para a pretensão de João, pois o salvo-conduto só pode ser concedido em caso de constrangimento atual à liberdade de locomoção, não se aplicando a situações futuras.
c) O pedido deve ser deferido, uma vez que, comprovada a necessidade terapêutica por documentação idônea, é possível a concessão de salvo-conduto para cultivo doméstico de cannabis sativa até que haja regulamentação pelo Poder Executivo Federal, com fundamento no art. 2º, parágrafo único, da Lei de Drogas.
d) A concessão de salvo-conduto depende de prévia autorização judicial do juízo criminal, não podendo ser deferida diretamente em habeas corpus, sob pena de violação ao princípio da reserva de jurisdição.
e) O sobrestamento do habeas corpus é medida adequada caso haja incidente de assunção de competência pendente no Tribunal sobre o tema, devendo-se aguardar a definição da tese jurídica aplicável.
Gabarito: C
Por que a alternativa C está correta?
A alternativa C está em perfeita consonância com o entendimento consolidado pela Terceira Seção do STJ e reafirmado no AgRg no HC 1.017.622-SC. Quando há comprovação idônea da necessidade terapêutica (laudo médico, receita, autorização ANVISA), o Judiciário pode conceder salvo-conduto para o cultivo doméstico de cannabis, fundamentado no art. 2º, parágrafo único, da Lei 11.343/2006, que prevê a possibilidade de cultivo para fins medicinais, até que sobrevenha regulamentação específica do Poder Executivo.
Por que as demais estão incorretas?
Alternativa A: Está incorreta porque ignora o art. 2º, parágrafo único, da Lei de Drogas, que expressamente autoriza o plantio para fins medicinais. Além disso, desconsidera o entendimento jurisprudencial consolidado no STJ.
Alternativa B: Está incorreta porque o salvo-conduto é justamente uma modalidade de habeas corpus preventivo, destinada a evitar constrangimento ilegal futuro. Não se exige constrangimento atual.
Alternativa D: Está incorreta porque o salvo-conduto é concedido por meio de habeas corpus, que pode ser impetrado diretamente no Tribunal competente. Não há necessidade de prévia autorização do juízo criminal de primeiro grau.
Alternativa E: Está incorreta porque o art. 980 do CPC excepciona expressamente o habeas corpus da regra de sobrestamento em razão de IRDR ou incidente de assunção de competência, conforme reconhecido pelo STJ no caso analisado.
O que você precisa memorizar para a prova
Salvo-conduto para cannabis medicinal: é possível, desde que comprovada necessidade terapêutica por documentação idônea (laudo, receita, autorização ANVISA).
Fundamento legal: art. 2º, parágrafo único, da Lei 11.343/2006 (autoriza plantio para fins medicinais).
Precedente do STJ: EDcl no AgRg no RHC 165.266-CE (Terceira Seção) — uniformizou o tema.
Requisitos cumulativos: (1) documentação médica idônea; (2) finalidade medicinal e uso próprio; (3) cultivo doméstico; (4) pendência de regulamentação.
Questão processual: HC não pode ser sobrestado por IRDR ou incidente de assunção de competência (art. 980, CPC).
Natureza jurídica: o salvo-conduto é uma modalidade de habeas corpus preventivo, que evita constrangimento ilegal futuro.
Conclusão: direito à saúde como limite ao poder punitivo
A decisão do STJ no AgRg no HC 1.017.622-SC representa mais um capítulo do reconhecimento de que o direito penal não pode ser aplicado de forma automática, descolado da realidade social e das necessidades humanas fundamentais. A cannabis medicinal é uma realidade científica incontestável: milhares de pacientes dependem dessa substância para tratamento de epilepsia refratária, dores crônicas, sintomas de quimioterapia, entre outras condições graves.
Ao conceder salvo-conduto para o cultivo doméstico, o STJ não está “liberando a maconha” — está, na verdade, equilibrando valores constitucionais: de um lado, a política criminal de combate às drogas; de outro, o direito à saúde, à dignidade humana e à vida. Enquanto o Poder Executivo não regulamenta o tema (obrigação prevista no art. 2º, parágrafo único, da Lei 11.343/2006), cabe ao Judiciário suprir essa lacuna, protegendo os mais vulneráveis.
Para candidatos a concursos, a mensagem é clara: dominar o tema vai além de decorar artigos de lei. É preciso compreender a ratio decidendi das decisões, saber articular direito material com direito processual, e, sobretudo, ter sensibilidade para perceber que o direito existe para proteger pessoas reais, com problemas reais.
Quer saber quais serão os próximos concursos?
Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!