Arquivamento de inquérito pelo MP: O juiz pode discordar? Análise Jurídica do Informativo 827 do STJ

Entenda se o juiz pode discordar do arquivamento de inquérito solicitado pelo Ministério Público, com base no Informativo 827 do STJ.

Arquivamento de inquérito

Imagine a seguinte situação: 

Suponha que um Desembargador é investigado por supostos crimes de injúria e difamação cometidos em janeiro de 2020. 

Em abril de 2024, o Ministério Público Federal, atuando perante o Superior Tribunal de Justiça, verifica que já transcorreu o prazo prescricional desses delitos e requer o arquivamento do inquérito. 

Este cenário nos leva a importantes questionamentos:

  1. O juiz está obrigado a acatar o pedido de arquivamento do Ministério Público em qualquer situação?
  2. Qual a diferença entre um arquivamento por falta de provas e um arquivamento por extinção da punibilidade?
  3. A investigação pode ser reaberta se surgirem novas provas após o arquivamento?
  4. Quais os efeitos jurídicos de cada tipo de arquivamento?

Para responder a estas questões, precisamos inicialmente analisar o artigo 18 do Código de Processo Penal, que estabelece:

Art. 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.

Este dispositivo legal tem gerado intensos debates na doutrina e jurisprudência. Vejamos a evolução do entendimento sobre o tema:

Entendimento da doutrina – Arquivamento de inquérito

A doutrina processual penal brasileira há muito discute os efeitos do arquivamento do inquérito. Aury Lopes Jr., em seu “Direito Processual Penal”, ensina que o arquivamento não faz coisa julgada material, mas sim coisa julgada formal, permitindo a reabertura das investigações quando surgirem novas provas.” 

No entanto, o autor faz uma importante ressalva: esta regra se aplica apenas aos casos de arquivamento por insuficiência probatória.

Por sua vez, Eugênio Pacelli argumenta que o arquivamento fundado em causa extintiva da punibilidade ou na atipicidade da conduta tem natureza de decisão definitiva de mérito, não se submetendo à regra do art. 18 do CPP.”

Guilherme de Souza Nucci complementa este entendimento afirmando que “quando o arquivamento se dá por extinção da punibilidade, forma-se coisa julgada material, impedindo nova persecução penal pelos mesmos fatos.”

Entendimento da jurisprudência

O Supremo Tribunal Federal, no paradigmático HC 84.253, relatado pelo Ministro Celso de Mello, estabeleceu:

"(...) se o Poder Judiciário, ao reconhecer consumada a prescrição penal, houver declarado extinta a punibilidade do indiciado/denunciado, esse ato decisório revestir-se-á da autoridade da coisa julgada em sentido material, inviabilizando, em consequência, o ulterior ajuizamento (ou prosseguimento) de ação penal contra aquele já beneficiado por tal decisão."

Esta orientação foi seguida pelo Superior Tribunal de Justiça em diversos julgados, culminando com a decisão da Corte Especial no Inquérito 1.721/DF, que estabeleceu uma distinção fundamental:

Arquivamento por ausência de provas:

  • O pedido ministerial vincula o juiz
  • Não há análise de mérito
  • Aplica-se o art. 18 do CPP
  • A investigação pode ser reaberta mediante novas provas

Arquivamento por extinção da punibilidade ou atipicidade:

  • Exige análise judicial de mérito (o juiz pode não acolher)
  • Forma coisa julgada material
  • Não se aplica o art. 18 do CPP
  • O arquivamento é definitivo e vinculante

Assim, a Corte Especial do STJ, ao julgar o Inquérito 1.721/DF, fixou tese que representa um importante avanço na sistemática processual penal:

Arquivamento de inquérito

Informativo 827

“O requerimento ministerial de arquivamento de inquérito ou procedimento investigatório criminal fundamentado na extinção da punibilidade ou atipicidade da conduta exige do Judiciário uma análise meritória do caso, com aptidão para formação da coisa julgada material com seu inerente efeito preclusivo, não se aplicando as disposições do art. 18 do Código de Processo Penal.”
(Inq 1.721-DF, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Corte Especial, por unanimidade, julgado em 2/10/2024 – info 827).

A fundamentação do STJ também se baseou na doutrina processual penal, especialmente na lição de Fauzi Hassan Choukr, que explica que a prescrição e a decadência representam uma impossibilidade intransponível de reabertura da investigação, pois o Estado não pode exercer seu poder coercitivo para além do limite temporal expressamente previsto. 

Logo, o tribunal compreendeu que estas limitações temporais integram a própria essência do tipo penal, estabelecendo uma certeza quanto ao limite temporal da persecução penal. Nessa linha, essa compreensão foi determinante para estabelecer que, nestes casos, a decisão judicial deve ter caráter definitivo e preclusivo.

Por fim, a Corte também considerou em sua fundamentação a necessidade de garantir segurança jurídica ao investigado. Entendeu que, nos casos de arquivamento por extinção da punibilidade ou atipicidade, não seria razoável manter o investigado sob a permanente ameaça de reabertura das investigações, uma vez que o próprio ordenamento jurídico estabeleceu limites temporais para o exercício do poder punitivo estatal. 

Por último, o STJ considerou que a análise meritória pelo Poder Judiciário, nos casos de arquivamento por extinção da punibilidade ou atipicidade, serve como importante mecanismo de controle da atuação ministerial, garantindo que estas hipóteses excepcionais de arquivamento definitivo sejam devidamente verificadas pelo órgão julgador. 

Respondendo os questionamentos:

1. O juiz está obrigado a acatar o pedido de arquivamento do Ministério Público em qualquer situação?

  • Não.

Conforme estabeleceu o STJ, a vinculação do juiz ao pedido de arquivamento depende do fundamento utilizado pelo Ministério Público. 

Existem duas situações distintas:

Quando o pedido se fundamenta na ausência de provas (base empírica), o juiz está vinculado ao requerimento ministerial. Isto ocorre porque, sendo o Ministério Público o titular da ação penal pública, cabe a ele avaliar se existem elementos suficientes para a propositura da ação penal. Esta vinculação decorre do sistema acusatório adotado pela Constituição Federal e da própria titularidade da ação penal.

Por outro lado, quando o pedido de arquivamento se baseia na extinção da punibilidade (como a prescrição) ou na atipicidade da conduta, o juiz não apenas pode, mas deve realizar uma análise meritória do caso. Nestas situações, o magistrado precisa verificar se efetivamente estão presentes os requisitos legais para o reconhecimento da causa extintiva da punibilidade ou da atipicidade alegada.

2. Qual a diferença entre um arquivamento por falta de provas e um arquivamento por extinção da punibilidade?

A diferença é substancial e impacta diretamente os efeitos da decisão. O arquivamento por falta de provas tem natureza precária e provisória. Ocorre quando o Ministério Público constata que, naquele momento, não existem elementos suficientes de materialidade ou autoria para oferecer a denúncia. É uma decisão que reconhece uma impossibilidade momentânea de prosseguir com a persecução penal.

Já o arquivamento por extinção da punibilidade ou atipicidade tem natureza definitiva. Neste caso, há um impedimento legal ao prosseguimento da investigação. Por exemplo, quando se reconhece a prescrição, o próprio Estado perde o poder de punir aquela conduta. 

3. A investigação pode ser reaberta se surgirem novas provas após o arquivamento?

A resposta depende do fundamento utilizado para o arquivamento:

Se o arquivamento foi determinado por falta de provas, aplica-se o artigo 18 do Código de Processo Penal. Neste caso, surgindo novas provas, a investigação pode ser reaberta. Esta possibilidade está, inclusive, sumulada pelo STF (Súmula 524): “Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada sem novas provas.”

Contudo, se o arquivamento foi baseado na extinção da punibilidade ou na atipicidade da conduta, a investigação não poderá ser reaberta em nenhuma hipótese, mesmo que surjam novas provas. Isto porque, conforme estabeleceu o STJ no Inquérito 1.721/DF, esta decisão faz coisa julgada material e tem efeito preclusivo.

Como o tema já caiu em provas: Arquivamento de inquérito

CESPE – 2010 – AGU – Procurador Federal

O arquivamento do inquérito policial não gera preclusão, sendo uma decisão tomada rebus sic stantibus; todavia, uma vez arquivado o inquérito a pedido do promotor de justiça, somente com novas provas pode ser iniciada a ação penal

Gabarito: Certo

FGV – 2024 – TJ-MS – Analista Judiciário – Área Fim

João, delegado de polícia, deflagrou inquérito policial para apurar um suposto crime de homicídio. Contudo, a autoridade policial não logrou obter qualquer indício quanto à autoria, dando ensejo, em observância às formalidades legais, ao arquivamento do procedimento investigatório. Após alguns meses, João tomou conhecimento de notícias de provas novas, que versavam sobre o autor do crime doloso contra a vida.

Nesse cenário, considerando as disposições do Código de Processo Penal e o entendimento dominante dos Tribunais Superiores, é correto afirmar que:

a) é possível o desarquivamento do inquérito policial, desde que haja novas provas. Por outro lado, a deflagração da ação penal pressupõe a existência de notícias de novas provas; 

b) é possível o desarquivamento do inquérito policial, desde que haja notícias de provas novas. Por outro lado, a deflagração da ação penal pressupõe a existência de novas provas;

c) não é possível o desarquivamento do inquérito policial, mas nada impede a deflagração da ação penal, desde que haja notícias de provas novas;

d) não é possível o desarquivamento do inquérito policial, mas nada impede a deflagração da ação penal, desde que haja novas provas;

e) é possível a deflagração da ação penal, desde que haja notícias de provas novas. Por outro lado, a prolação de sentença condenatória pressupõe a existência de provas novas.

Gabarito: Letra B

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