É válida ordem de apreensão do passaporte de devedor que vendeu tudo e fugiu do país – RHC 196.004 (STJ)

É válida ordem de apreensão do passaporte de devedor que vendeu tudo e fugiu do país – RHC 196.004 (STJ)

Introdução

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio de sua Terceira Turma, proferiu uma decisão significativa no Recurso em Habeas Corpus (RHC) 196.004/PI, julgado em 04 de junho de 2024.

Apreensão

A decisão, relatada pela Ministra Nancy Andrighi, aborda a legalidade e a constitucionalidade da apreensão e retenção do passaporte de um devedor que vendeu seus bens e deixou o país às vésperas do trânsito em julgado de uma sentença condenatória civil.

Este caso coloca em evidência o delicado equilíbrio entre a efetividade da tutela jurisdicional e a proteção dos direitos fundamentais do devedor.

Além disso, a decisão do STJ representa um marco importante na evolução da jurisprudência sobre medidas executivas atípicas. Esse tema tem ganhado relevância desde a introdução do art. 139, IV, no Código de Processo Civil de 2015.

Perceba: a complexidade do caso reside não apenas na natureza da medida adotada – a apreensão do passaporte – mas também nas circunstâncias específicas que levaram à sua aplicação.

Nesse sentido, o comportamento do devedor, que aparentemente buscou frustrar a execução através da venda de bens e saída do país, levanta questões importantes sobre os limites do poder coercitivo do Judiciário e a necessidade de mecanismos eficazes para garantir o cumprimento das decisões judiciais.

Vamos te explicar cuidadosamente.

Contexto fático

O caso em análise envolve um devedor que, após ser condenado em uma ação ressarcitória, adotou uma série de medidas que foram interpretadas pelo Judiciário como tentativas de frustrar a execução da sentença.

Os fatos centrais do caso, conforme detalhados na decisão do STJ, são os seguintes:

  1. O devedor recebeu condenação em uma ação ressarcitória relacionada a um negócio imobiliário mal-sucedido.
  2. Às vésperas do trânsito em julgado da sentença condenatória, o devedor vendeu sua residência e a maior parte de seus bens.
  3. Um dia antes do trânsito em julgado, o devedor deixou o país com toda sua família, sem informar seu novo endereço ao juízo da execução.
  4. Tentativas de localizar bens do devedor através de meios típicos de execução (SISBAJUD, RENAJUD, INFOJUD) foram infrutíferas.
  5. Diante desse cenário, o juízo de primeira instância determinou a apreensão e retenção do passaporte do devedor como medida coercitiva para o pagamento da dívida.

Desse modo, estes fatos criaram um contexto peculiar que desafiou os limites tradicionais da execução civil.

A aparente tentativa do devedor de se colocar fora do alcance da jurisdição brasileira, combinada com a alienação de seus bens, levantou questões sobre a necessidade de medidas mais assertivas para garantir a efetividade da tutela jurisdicional.

O comportamento do devedor, conforme descrito na decisão, parece ter sido o fator determinante para a adoção da medida atípica.

Com efeito, a venda de bens e a saída do país em datas tão próximas ao trânsito em julgado da sentença foram interpretadas como indícios fortes de uma tentativa deliberada de frustrar a execução, justificando, na visão do Judiciário, a adoção de medidas mais severas.

Questões jurídicas

O caso em tela suscita diversas questões jurídicas complexas, que se entrelaçam no debate sobre a legalidade e a constitucionalidade das medidas executivas atípicas. As principais questões abordadas na decisão do STJ são:

1)A legalidade e constitucionalidade da apreensão de passaporte como medida executiva atípica:

Esta questão central envolve a interpretação do art. 139, IV, do CPC/2015, que confere ao juiz o poder de determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial. A extensão desse poder e seus limites constitucionais, especialmente em face do direito fundamental de ir e vir, são o cerne do debate.

2) O esgotamento dos meios típicos de execução como requisito para a adoção de medidas atípicas:

Conforme entendimento do STJ, deve-se utilizar os meios tradicionais de execução antes de recorrer a medidas atípicas. Ademais, envolve a análise da subsidiariedade das medidas atípicas e a definição do que constitui “esgotamento” dos meios típicos.

3) A proporcionalidade e razoabilidade da medida face ao comportamento do devedor:

Deve-se considerar o comportamento do devedor e a eficácia potencial da medida para atingir o objetivo da execução.

4) A relação entre medidas executivas atípicas e o princípio da menor onerosidade da execução previsto no art. 805 do CPC/2015.

5) Os limites do poder coercitivo do Judiciário em execuções de natureza civil: até que ponto o Judiciário pode restringir direitos fundamentais do devedor para garantir a satisfação de um crédito de natureza civil?

Análise da decisão

Fundamentos legais

A decisão do STJ no RHC 196.004/PI fundamenta-se primariamente no art. 139, IV, do Código de Processo Civil de 2015, que dispõe:

"O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: [...] IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária."

Este dispositivo, introduzido pelo novo CPC, representou uma mudança significativa na sistemática processual brasileira, conferindo ao juiz poderes mais amplos para garantir a efetividade das decisões judiciais.

A norma abriu caminho para a adoção de medidas executivas atípicas, ou seja, aquelas não expressamente previstas em lei, mas as quais o juiz pode determinar para assegurar o cumprimento da ordem judicial.

Além deste fundamento principal, a decisão também se baseia em outros dispositivos e princípios do ordenamento jurídico brasileiro:

  1. O princípio da efetividade da tutela jurisdicional, derivado do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, que garante o acesso à justiça.
  2. O art. 797 do CPC/2015, que estabelece que o juiz pode, em qualquer momento do processo, ordenar medidas necessárias para a efetivação da tutela provisória.
  3. O art. 8º do CPC/2015, que determina que o juiz deve atender aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana.

Lado outro, a decisão também se apoia na jurisprudência do próprio STJ e do STF, que vem gradualmente delineando os contornos e limites da aplicação de medidas executivas atípicas.

A Ministra Nancy Andrighi cita precedentes que reconhecem a possibilidade de apreensão de passaporte em casos excepcionais, quando evidenciada a tentativa de blindagem patrimonial através da saída do país.

Nesse sentido, é importante notar que a decisão busca equilibrar estes fundamentos legais com os direitos fundamentais do devedor, em especial o direito de ir e vir, previsto no art. 5º, XV, da Constituição Federal. A análise deste equilíbrio é central na fundamentação da decisão.

Requisitos para adoção de medidas atípicas

A decisão do STJ estabelece critérios rigorosos para a adoção de medidas executivas atípicas, em particular a apreensão de passaporte.

Ademais, a Ministra Nancy Andrighi enfatiza que tais medidas são excepcionais e devem observar os seguintes requisitos:

  1. Exaurimento dos meios típicos de satisfação do crédito: este requisito exige que o credor tenha esgotado as tentativas de execução pelos meios convencionais previstos em lei. No caso em análise, houve buscas via SISBAJUD (sistema de bloqueio de ativos financeiros), RENAJUD (restrições de veículos) e INFOJUD (informações fiscais), todas sem sucesso.
  2. Adequação da medida: a medida atípica deve ser adequada para atingir o fim almejado, qual seja, a satisfação do crédito. No caso, a apreensão do passaporte visa impedir que o devedor continue fora do alcance da jurisdição brasileira. Dessa forma, facilita-se a localização de bens e o cumprimento da obrigação.
  3. Necessidade da medida: deve-se demonstrar que não há outro meio menos gravoso capaz de atingir o mesmo resultado. No caso em tela, o comportamento do devedor, que se evadiu do país após vender seus bens, justificaria a necessidade da medida.
  4. Razoabilidade e proporcionalidade: a medida deve ser proporcional à dívida e às circunstâncias do caso. A decisão considera que, dada a magnitude da dívida e o comportamento evasivo do devedor, a apreensão do passaporte seria uma medida proporcional.
  5. Fundamentação robusta: o juiz deve apresentar fundamentação detalhada que justifique a excepcionalidade da medida, demonstrando como os requisitos acima foram preenchidos no caso concreto.

Excepcionalidade

A decisão ressalta que estes requisitos devem passar por uma análise caso a caso. Isto é, não seria possível estabelecer uma regra geral para a aplicação de medidas atípicas. O STJ enfatiza a necessidade de uma análise cuidadosa das circunstâncias específicas de cada situação para justificar a adoção de medidas tão excepcionais.

Ao estabelecer estes critérios, o STJ busca criar um framework para a aplicação de medidas executivas atípicas, equilibrando a necessidade de efetividade na execução com a proteção dos direitos fundamentais do devedor.

Em outras palavras, esta abordagem visa evitar o uso indiscriminado de medidas coercitivas atípicas, reservando-as para situações verdadeiramente excepcionais.

Análise do caso concreto

Em seguida, na análise do caso concreto, o STJ considerou uma série de fatores que, em conjunto, justificaram a medida excepcional de apreensão do passaporte do devedor.

Fatores

  1. Esgotamento dos meios típicos de execução: a decisão destaca que foram realizadas tentativas de localizar bens do devedor através dos sistemas SISBAJUD, RENAJUD e INFOJUD, todas sem sucesso. Este ponto é crucial para demonstrar que os meios convencionais de execução foram devidamente esgotados antes da adoção da medida atípica.
  2. Cronologia dos eventos: o STJ deu especial atenção à sequência temporal dos acontecimentos. O devedor vendeu seus bens e deixou o país um dia antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Interpretou-se esta proximidade temporal como um forte indício de que o devedor agiu deliberadamente para frustrar a execução.
  3. Não informação do novo endereço: o fato de o devedor não ter informado seu novo endereço ao juízo da execução foi considerado como mais um elemento indicativo de sua intenção de se esquivar da obrigação.
  4. Saída do país com toda a família: a decisão destacou que o devedor não apenas deixou o país, mas o fez acompanhado de toda sua família. Isso foi interpretado como um indício de que a mudança não era temporária. Ou seja, havia uma tentativa de se estabelecer permanentemente fora do alcance da jurisdição brasileira.
  5. Magnitude da dívida: o valor substancial da dívida foi considerado na análise da proporcionalidade da medida. A decisão sugere que, quanto maior o valor em questão, mais justificável se torna a adoção de medidas excepcionais para garantir seu pagamento.
  6. Aparente capacidade financeira do devedor: a decisão menciona que o devedor possuía uma construtora e vários veículos, incluindo um de luxo, antes de deixar o país. Interpretou-se isso como um indicativo de que o devedor teria condições de pagar a dívida. Assim, reforçou-se a percepção de que sua conduta visava frustrar a execução.

Conclusão do STJ

Ao analisar estes fatores em conjunto, o STJ concluiu que havia evidências suficientes da intenção do devedor em frustrar a ordem judicial de pagamento. A Ministra Nancy Andrighi enfatizou que, neste contexto específico, a medida de retenção e bloqueio do passaporte se mostrava adequada e proporcional.

A decisão ressalta que a excepcionalidade da situação justifica a medida atípica. Isto é, o comportamento do devedor, ao aparentemente se desfazer de seus bens e deixar o país às vésperas do trânsito em julgado da sentença, foi considerado como uma tentativa clara de se colocar fora do alcance da justiça brasileira.

Como o tema já caiu em provas

CESPE / CEBRASPE Órgão: TJ-ES Prova: CESPE / CEBRASPE - 2023 - TJ-ES - Analista Judiciário - Especialidade: Comissário de Justiça da Infância e Juventude

Conforme o entendimento do STJ, julgue o item que se segue. 

Decisão que determina a apreensão de passaporte do devedor, enquanto modalidade de medida executiva atípica, pode ser impugnada por meio de habeas corpus. (Certo)

Conclusão

Por fim, a decisão do STJ no RHC 196.004/PI representa um marco significativo na jurisprudência sobre medidas executivas atípicas no Brasil. Ao validar a apreensão de passaporte em um caso de aparente evasão deliberada, o tribunal sinaliza uma postura mais assertiva na busca pela efetividade das decisões judiciais em matéria civil.

Os principais pontos da decisão incluem:

  • Fundamentação no art. 139, IV, do CPC/2015, que amplia os poderes do juiz na execução.
  • Estabelecimento de critérios rigorosos para adoção de medidas atípicas: esgotamento dos meios típicos, adequação, necessidade, proporcionalidade e fundamentação robusta.
  • Análise detalhada do caso concreto, considerando o comportamento evasivo do devedor.
  • Reconhecimento da excepcionalidade da medida, reservando-a para casos de clara intenção de frustrar a execução.

Portanto, esta decisão reflete uma tendência do Judiciário de buscar mecanismos mais eficazes contra devedores recalcitrantes, especialmente aqueles que adotam comportamentos evasivos sofisticados.

Ao mesmo tempo, levanta questões importantes sobre os limites do poder coercitivo do Estado em matéria civil e o equilíbrio entre a efetividade da tutela jurisdicional e a proteção dos direitos fundamentais.

As implicações são significativas para o processo civil, potencialmente aumentando a efetividade das execuções, mas também suscitando debates sobre proporcionalidade e potencial violação de direitos fundamentais.

O desafio para o futuro será encontrar um equilíbrio adequado, exigindo uma análise cuidadosa caso a caso e uma fundamentação robusta para justificar medidas tão excepcionais.


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