ANPP e homofobia: a proibição da proteção deficiente aos grupos vulneráveis

ANPP e homofobia: a proibição da proteção deficiente aos grupos vulneráveis

No julgamento do AREsp 2.607.962 o STJ afirmou o não cabimento do ANPP para os casos de homofobia.

Vamos a um análise jurídica do caso.

ANPP

O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) foi introduzido em nosso ordenamento pela Lei 13.964/19, o Pacote Anticrime, muito embora já houvesse a previsão do instituto na Resolução 181, do CNMP, de 2017. Com a regulamentação do benefício no artigo 28-A, do CPP superou-se a discussão sobre a constitucionalidade da medida, agora prevista em lei federal.  

O instituto alargou o espaço de consenso no âmbito do processo penal para abranger, doravante, as infrações penais que tenham pena mínima inferior a quatro anos, desde que não praticadas com o atributo da violência ou grave ameaça.

O acordo não constitui direito público subjetivo do investigado. O membro do Ministério Público (MP) tem, em verdade, discricionariedade regrada. Isso significa afirmar a sua liberdade para propor o acordo dentro das balizas legais. Vale o registro de que o oferecimento do benefício deve ser suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

Ele é ofertado pelo MP ao investigado, devidamente assistido por advogado, mediante cumprimento de determinadas condições, como alternativa à persecução penal, sujeitando-se a homologação pelo Poder Judiciário, nos termos do artigo 28-A, §4º.

O magistrado deve designar audiência para verificar a voluntariedade e a legalidade do acordo. Além disso, pode-se recusar a sua homologação, se a proposta não atender aos requisitos legais, ou se considerar as condições inadequadas, insuficientes ou abusivas.

No caso narrado, o magistrado de primeira instância recusou e o Tribunal de Justiça goiano ratificou a homologação do acordo. A conduta está em absoluta conformidade com a legislação de regência, que autoriza a aludida providência pelo Poder Judiciário.

Assim, do ponto de vista procedimental, a medida não encontra qualquer tipo de objeção, não merecendo censura.

Mérito

Passaremos agora à avaliação quanto ao mérito da providência.

O próprio legislador, seguindo a tendência da Lei 11.340/06 (art. 41) e do STJ (Súmula 536), que vedou o oferecimento da transação penal e da suspensão condicional do processo aos crimes sujeitos à Lei Maria da Penha, proibiu expressamente o oferecimento do ANPP aos casos envolvendo violência doméstica ou familiar, e aos crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, conforme art. 28-A, §2º, IV.

No julgamento do HC 222.599, o STF vedou o oferecimento do acordo aos crimes de racismo, sob o argumento da sua incompatibilidade com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em termos de combate à discriminação racial.

Agora, o STJ impôs mais uma limitação ao benefício, ao afirmar o seu não cabimento aos casos de homofobia.

Argumento

O argumento se baseia na decisão proferida pelo STF na ADO 26. A Ação reconheceu a mora do legislativo diante do mandado de criminalização que determina a punição de discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI) e equiparou a prática da homofobia e da transfobia ao crime de racismo, mediante interpretação conforme.

ANPP

A Corte Suprema pontuou que as condutas em questão (homofobia e transfobia) traduzem expressão do racismo em sua dimensão social, que tem por escopo perpetuar as relações de dominação estabelecidas pelos grupos majoritários em detrimento dos vulneráveis, mediante inferiorização e estigmatização, o que ocasiona exclusão do sistema geral de proteção do direito.

Com isso passamos a contar com três limitações ao oferecimento do ANPP, sendo uma legal e outras duas de ordem jurisprudencial. Todas elas estão ligadas a grupos vulneráveis (vulnerabilidade no sentido de maior suscetibilidade a ofensas):

a) casos envolvendo violência doméstica ou familiar, e crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino;

b) racismo; e

c) homofobia e transfobia.

Parece-nos adequada a medida adotada pelo STJ, que utilizou a ratio decidendi da decisão proferida na aludida ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO 26).

Proteção do Estado

Os direitos fundamentais geram ao Estado deveres de proteção, impondo que ele atue no sentido de implementar uma tutela adequada do bem jurídico protegido. Isso, muitas das vezes, se faz mediante estruturação de uma legislação penal e processual penal mais rigorosa.

Assim, devemos analisar o cumprimento dos deveres de proteção a partir do princípio da proporcionalidade, sob os vieses da proibição de excessos e da proibição da proteção deficiente.

Costumamos estudar a proporcionalidade apenas sob o prisma da proibição de excessos, já que o Estado interfere nas liberdades individuais e por essa razão precisa ser contido.

Mas é necessário analisá-lo também sob a lente da proibição da proteção deficiente: a medida adotada deve ser capaz de dissuadir novas violações. E vejam, a proteção contra a discriminação é um comando constitucional, que obriga o Estado a atuar pela via do direito penal, verdadeiro mandado de criminalização.

E aqui está o ponto: adotar a solução negociada nessas infrações penais pode levar a uma proteção deficiente desses grupos vulneráveis, impedindo que alcancemos uma sociedade verdadeiramente justa e solidária, conforme artigo 3º, I, da CF.  


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