Prof. Gustavo Cordeiro
Introdução: quando a defesa se confunde com ofensa
Imagine a seguinte situação: um advogado apresenta reclamação disciplinar contra um desembargador ao CNJ. Em sua resposta, o magistrado menciona que o advogado poderia ter cometido o crime de calúnia. Indignado, o advogado interpõe queixa-crime afirmando que, ao levantar essa hipótese, o próprio desembargador o caluniou.
Esse cenário aparentemente paradoxal foi examinado pela Corte Especial do STJ na queixa-crime nº 15/DF, julgada em 15 de outubro de 2025. A decisão é um verdadeiro divisor de águas para compreender a distinção entre animus caluniandi (intenção de ofender) e animus defendendi (intenção de se defender) — conceito essencial para provas de Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e Delegado de Polícia.
Se você está se preparando para concursos jurídicos de alto nível, precisa entender quando uma manifestação defensiva pode ou não configurar crime contra a honra. Este artigo vai dissecar a decisão do STJ e demonstrar como esse tema pode aparecer na sua prova.
O caso concreto: defesa ou calúnia?
Os fatos
O desembargador de um Tribunal Regional do Trabalho era relator de processo administrativo disciplinar contra outro magistrado trabalhista. O advogado deste magistrado protocolou reclamação disciplinar ao CNJ alegando que o desembargador-relator teria divulgado indevidamente documento sigiloso à imprensa.

Em sua resposta ao CNJ, o desembargador mencionou que o advogado poderia ter praticado o crime de calúnia previsto no art. 138 do Código Penal, ao fazer tal alegação sem fundamento.
Sentindo-se ofendido, o advogado interpretou essa menção como uma imputação criminosa e ajuizou queixa-crime contra o desembargador, acusando-o de calúnia.
A tese da defesa
O desembargador sustentou que sua manifestação não configurou calúnia, pois:
- Não houve imputação direta de crime ao advogado
- A menção foi meramente hipotética, no contexto de defesa
- Não havia intenção de ofender, mas apenas de se defender
- A manifestação foi feita em procedimento sigiloso, sem repercussão pública
A decisão do STJ: animus defendendi prevalece
O voto do relator Ministro Raul Araújo
O ministro Raul Araújo, relator do caso, construiu sua fundamentação sobre dois pilares essenciais para compreender os crimes contra a honra:
1. Necessidade do animus caluniandi
Para configurar o crime de calúnia (art. 138, CP), não basta a imputação objetiva de crime falso. É indispensável o elemento subjetivo específico: o animus caluniandi, ou seja, a vontade livre e consciente de ofender a honra objetiva da vítima.
2. Prevalência do animus defendendi
Quando alguém se manifesta em contexto de autodefesa, levantando hipóteses jurídicas para refutar acusações, age com animus defendendi — a intenção legítima de se defender, e não de ofender.
Fundamentos da absolvição
O relator destacou os seguintes elementos para absolver o desembargador:
Ausência de imputação direta: O magistrado não afirmou categoricamente que o advogado cometeu calúnia, mas apenas levantou essa possibilidade jurídica como argumento defensivo.
Contexto de defesa: A manifestação foi feita em resposta a acusação disciplinar, dentro do exercício constitucional do direito de defesa.
Ambiente sigiloso: O procedimento no CNJ era sigiloso, sem qualquer publicidade que pudesse afetar a honra objetiva do advogado perante terceiros.
Atipicidade material: Sem ofensa efetiva à honra objetiva da vítima, não se configura o crime de calúnia.
A Corte Especial, por unanimidade, acompanhou o entendimento do relator e julgou improcedente a queixa-crime, reconhecendo a atipicidade da conduta e absolvendo o desembargador.
Conceitos fundamentais para concursos
Calúnia (art. 138, CP)
Definição: Imputar falsamente a alguém fato definido como crime.
Elementos do tipo:
- Objetivo: imputação falsa de fato criminoso determinado
- Subjetivo: dolo + animus caluniandi (intenção específica de ofender)
Bem jurídico protegido: Honra objetiva (reputação perante terceiros)
Animus caluniandi vs. animus defendendi
| Animus caluniandi | Animus defendendi |
| Intenção de ofender a honra | Intenção de exercer direito de defesa |
| Busca denegrir a reputação alheia | Busca refutar acusações recebidas |
| Elemento subjetivo do crime | Excludente de tipicidade |
| Contexto de ataque | Contexto de autodefesa |
| Configura crime contra a honra | Exclui o crime contra a honra |
Outros animus relevantes
🔶 Animus narrandi: intenção de narrar fatos (contexto jornalístico ou processual) — pode afastar a tipicidade quando presente o interesse público e a moderação.
🔸 Animus corrigendi: intenção de corrigir ou criticar — especialmente relevante em relações hierárquicas ou de trabalho.
🔶 Animus criticandi: intenção de criticar (manifestação de opinião) — protegida pela liberdade de expressão, desde que não extrapole os limites da razoabilidade.
Questão simulada de concurso público
(Magistratura Estadual - 2026) Durante processo administrativo disciplinar, o servidor acusado apresentou defesa alegando que a testemunha que o incriminou teria cometido o crime de falso testemunho. A testemunha, sentindo-se ofendida, ofereceu queixa-crime contra o servidor por calúnia. Considerando a jurisprudência do STJ, assinale a alternativa correta:
A) A conduta do servidor configura calúnia, pois houve imputação de crime à testemunha, ainda que no contexto de defesa.
B) A conduta é atípica, pois o servidor agiu com animus defendendi, levantando hipótese jurídica em contexto de autodefesa.
C) Configura-se o crime de calúnia na modalidade culposa, por imprudência na escolha das palavras utilizadas na defesa.
D) A conduta configura difamação, e não calúnia, pois foi praticada em procedimento sigiloso.
E) O servidor deve ser absolvido com base no princípio da insignificância, dado o contexto administrativo da manifestação.
GABARITO: B
Explicação:
Alternativa B (CORRETA): Conforme decidido pela Corte Especial do STJ na queixa-crime nº 15/DF (2025), quando alguém levanta hipótese jurídica em contexto de autodefesa, age com animus defendendi (intenção de se defender), e não com animus caluniandi (intenção de ofender). Isso exclui a tipicidade da conduta, pois falta o elemento subjetivo específico do crime de calúnia. A manifestação defensiva que levanta possibilidade de crime por parte do acusador não configura, por si só, imputação criminosa caluniosa.
Alternativa A (INCORRETA): Ignora a necessidade do elemento subjetivo específico (animus caluniandi) e o contexto em que a manifestação foi proferida. O exercício do direito de defesa afasta a tipicidade quando não há intenção de ofender.
Alternativa C (INCORRETA): O crime de calúnia exige dolo, não admitindo modalidade culposa. Além disso, não houve imprudência, mas exercício regular de direito de defesa.
Alternativa D (INCORRETA): A questão não envolve difamação (imputação de fato ofensivo à reputação), mas alegação de prática criminosa. O sigilosidade reforça a atipicidade, mas não altera a classificação do crime hipoteticamente praticado.
Alternativa E (INCORRETA): O fundamento correto não é o princípio da insignificância, mas a ausência do elemento subjetivo do tipo (animus caluniandi), configurando atipicidade da conduta. O princípio da insignificância aplica-se quando há tipicidade formal, mas a lesão ao bem jurídico é ínfima — não é o caso aqui.
Pontos de atenção para sua prova
✓ Memorize
- Calúnia exige animus caluniandi (intenção específica de ofender a honra objetiva)
- Animus defendendi afasta a tipicidade por ausência de elemento subjetivo
- Contexto defensivo + hipótese jurídica ≠ imputação criminosa direta
- Sigilosidade do procedimento reforça a ausência de lesão à honra objetiva
- Atipicidade material: sem ofensa efetiva à honra objetiva, não há crime
Fechamento estratégico: o que levar para a prova
A decisão da Corte Especial do STJ representa uma orientação fundamental para resolver casos limítrofes envolvendo crimes contra a honra: quando há dúvida entre ofender e defender, o contexto defensivo prevalece.
Para sua prova, grave esta fórmula:
Manifestação em contexto de defesa + Hipótese jurídica (não afirmação categórica) + Ambiente sigiloso = ATIPICIDADE por ausência de animus caluniandi
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