Prof. Gustavo Cordeiro
Imagine a situação: um homem aborda pessoalmente uma criança no parque e pede para ela tirar a roupa. Esta conduta se enquadra no art. 241-D do ECA? Se você respondeu “sim”, acabou de cair na pegadinha mais perigosa dos concursos jurídicos de 2025.
O Informativo 860 do STJ trouxe uma definição que vai aparecer em seu concurso público: a expressão “por qualquer meio de comunicação” do art. 241-D não abrange a comunicação oral direta e presencial.
Esta decisão da Quinta Turma, por unanimidade, criou uma distinção técnica que as bancas adoram explorar. Mais importante: trouxe outra pegadinha que a maioria dos candidatos erra – o crime só se aplica a crianças, não a adolescentes.
O que diz o art. 241-D do ECA: texto e contexto histórico
O dispositivo legal
O art. 241-D do ECA, inserido pela Lei 11.829/2008, tipifica: “Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso”.
Verbos típicos do caput:
- Aliciar: atrair com promessas ou engano
- Assediar: perseguir insistentemente
- Instigar: incitar, estimular
- Constranger: forçar, coagir
O contexto da CPI da pedofilia
A Lei 11.829/2008 nasceu no contexto da CPI da Pedofilia no Senado Federal, que identificou a necessidade urgente de atualizar a legislação para combater crimes sexuais praticados através da internet e outros meios eletrônicos.

A própria ementa da lei é eloquente: “aprimorar o combate à produção, venda e distribuição de pornografia infantil, bem como criminalizar a aquisição e a posse de tal material e outras condutas relacionadas à pedofilia na internet“.
Conhecer a origem legislativa é fundamental para compreender a interpretação do STJ: o crime foi criado especificamente para o ambiente virtual e tecnológico, não para condutas presenciais.
A interpretação do STJ: “meio de comunicação” como instrumento intermediário
A ratio decidendi da Quinta Turma
O STJ foi categórico: a expressão “por qualquer meio de comunicação” constitui elementar normativa do tipo penal, não uma circunstância acessória. Isso significa que integra a própria definição da conduta proibida.
A Corte definiu “meio de comunicação” como instrumento intermediário utilizado para estabelecer contato entre pessoas que não se encontram presencialmente no mesmo ambiente.
Exemplos de “meios de comunicação” (conduta típica)
Meios tecnológicos modernos:
- WhatsApp, Telegram, Instagram Direct
- Facebook Messenger, TikTok, Snapchat
- Salas de bate-papo (Discord, IRC)
- E-mails, SMS, ligações telefônicas
- Jogos online com chat (Roblox, Minecraft)
- Aplicativos de relacionamento
- Lives e transmissões ao vivo
Meios tradicionais:
- Cartas enviadas pelos correios
- Mensagens por pombos-correio
- Sinais de fumaça ou bandeiras
- Telegramas e fax
Exemplos de comunicação direta (conduta atípica para o 241-D)
Situações presenciais que NÃO configuram o crime:
- Abordar criança no parque e pedir para tirar a roupa
- Conversar diretamente com criança na escola
- Assediar criança em festa de família
- Constranger criança no elevador do prédio
- Aliciar criança na rua com promessas de doces
- Instigar criança durante brincadeira presencial
Por que são atípicas? Não há “meio” intermediando a comunicação – é contato direto, face a face.
A lógica jurídica: por que a distinção faz sentido
Fundamentos dogmáticos
O STJ baseou sua decisão em três pilares fundamentais:
1. Princípio da legalidade estrita (art. 5º, XXXIX, CF) – A interpretação de tipos penais deve observar limites semânticos rigorosos, vedando analogia in malam partem e interpretação extensiva que desborde do texto legal.
2. Princípio da taxatividade – A vagueza e indeterminação são incompatíveis com o Direito Penal democrático, pois comprometem a segurança jurídica e abrem espaço para arbítrio judicial.
3. Interpretação sistemática – Os arts. 241-A a 241-E do ECA, todos da Lei 11.829/2008, revelam preocupação específica com meios tecnológicos.
As características específicas do crime virtual
O legislador reconheceu que o aliciamento por meios de comunicação tem características únicas que justificam tratamento penal diferenciado:
- Maior alcance: Possibilidade de atingir número muito maior de vítimas simultaneamente
- Anonimato: Facilidade para ocultar a verdadeira identidade do agressor
- Barreira geográfica: Capacidade de transpor limites territoriais
- Falsa segurança: A vítima se sente mais “protegida” em casa, baixando a guarda
- Rastro digital: Criação de evidências eletrônicas que facilitam a investigação
Casos práticos: típicos vs. atípicos
Situação 1: típica (crime configurado)
Caso: João, 45 anos, cria perfil falso no Instagram se passando por adolescente de 16 anos. Através de mensagens diretas, alicia Maria, 10 anos, enviando fotos íntimas e pedindo que ela faça o mesmo.
Análise: Crime do art. 241-D configurado. Há meio de comunicação (Instagram), criança (10 anos), e finalidade libidinosa.
Situação 2: atípica para o 241-D
Caso: Pedro aborda pessoalmente Ana, 9 anos, no playground e sussurra no ouvido dela: “vem comigo que vou te dar doces se você tirar a roupinha”.
Análise: Atípico para o art. 241-D (comunicação direta, sem meio intermediário).
Situação 3: a pegadinha dos adolescentes
Caso: Carlos usa WhatsApp para aliciar Bruno, 16 anos, enviando vídeos pornográficos e tentando convencê-lo a se encontrarem para prática sexual.
Análise: Atípico para o art. 241-D. O crime só protege crianças (até 12 anos incompletos), não adolescentes.
Situação 4: limítrofe – videoconferência
Caso: Durante videochamada no Zoom, professor constrange aluna de 8 anos a mostrar partes íntimas.
Análise: Típico para o art. 241-D. A videoconferência é meio de comunicação tecnológico, mesmo que permita contato visual “direto”.
Outras condutas do art. 241-D: os incisos do parágrafo único
Inciso I: facilitar ou induzir acesso a material pornográfico
Condutas típicas:
- Enviar links de sites pornográficos para criança via WhatsApp
- Facilitar acesso de criança a revistas adultas através de terceiros
- Mostrar vídeos pornográficos para criança via Skype
- Enviar por e-mail material com sexo explícito
Exemplo prático: Marcos envia para Laura, 7 anos, link de site pornográfico via Telegram, dizendo “clica aqui que é um joguinho legal”. Crime configurado.
Inciso II: induzir exibição pornográfica
Condutas típicas:
- Convencer criança a se despir durante videochamada
- Solicitar fotos íntimas via aplicativos de mensagem
- Induzir criança a fazer poses sensuais para câmera
- Pedir para criança imitar cenas de filmes adultos
Exemplo prático: Ricardo usa Instagram para convencer Sofia, 9 anos, a enviar fotos sem roupa, prometendo “likes” e seguidores. Crime configurado.
Pegadinhas comuns que aparecem em concursos
Questão 1: adolescente vs. criança
Questão simulada: “Aliciar adolescente de 16 anos através de WhatsApp para praticar ato libidinoso configura crime do art. 241-D do ECA.”
Resposta: FALSO. O art. 241-D protege apenas crianças (até 12 anos incompletos). Adolescentes não são tutelados por este dispositivo.
Questão 2: comunicação presencial
Questão simulada: “Constranger criança presencialmente a mostrar partes íntimas configura crime do art. 241-D do ECA.”
Resposta: FALSO. Comunicação presencial não é “meio de comunicação” para fins do art. 241-D.
Questão 3: tentativa vs. crime consumado
Questão simulada: “O crime do art. 241-D se consuma apenas com a efetiva prática do ato libidinoso.”
Resposta: FALSO. O crime se consuma com o próprio aliciamento, independente da prática posterior do ato libidinoso.
Questão 4: concurso de crimes
Questão simulada: “Se o agente alicia criança virtualmente (art. 241-D) e posteriormente pratica estupro de vulnerável (art. 217-A), há apenas um crime.”
Resposta: FALSO. Há concurso material de crimes, pois protegem bens jurídicos distintos.
Quadro comparativo: 241-D vs. outros crimes sexuais
Aspecto | Art. 241-D ECA | Art. 217-A CP |
Meio | Comunicação intermediária | Qualquer meio |
Vítima | Apenas criança | Menor de 14 anos |
Consumação | Com o aliciamento | Com o ato sexual |
Finalidade | Ato libidinoso futuro | Ato sexual presente |
Pena | 1 a 3 anos | 8 a 15 anos |
Questão comentada estilo banca
(VUNESP - Adaptada) Analise as assertivas sobre o art. 241-D do ECA:
I. Configura crime aliciar criança por meio de WhatsApp para prática de ato libidinoso.
II. É típica a conduta de constranger adolescente presencialmente a mostrar partes íntimas.
III. O crime se consuma independentemente da efetiva prática do ato libidinoso.
IV. Videoconferência não constitui "meio de comunicação" para fins do dispositivo.
Estão corretas:
A) Apenas I e III
B) Apenas II e IV
C) Apenas I, II e III
D) Apenas I, III e IV
E) Todas as assertivas
Gabarito: A.
Explicação:
- I. CORRETA: WhatsApp é meio de comunicação e criança é vítima tutelada.
- II. INCORRETA: Adolescente não é tutelado pelo 241-D + comunicação presencial não é “meio de comunicação”.
- III. CORRETA: Crime formal – consuma-se com o aliciamento.
- IV. INCORRETA: Videoconferência é meio de comunicação tecnológico.
O STJ foi claro: meio de comunicação pressupõe distância física e instrumento intermediário. Conversa face a face não é crime do 241-D, mesmo que seja moralmente reprovável e configure outros delitos.
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