O Superior Tribunal de Justiça estabeleceu marco jurisprudencial definitivo sobre os limites da ação popular em questões tributárias.

No julgamento do Recurso Especial nº 2.167.861/SE, a Segunda Turma decidiu unanimemente pela inadequação da via eleita quando se pretende discutir interesses individuais homogêneos de caráter tributário. Essa decisão reformou acórdão do Tribunal de Justiça de Sergipe que havia permitido tal utilização.
A decisão pela inadequação, sob relatoria do Ministro Francisco Falcão, consolida entendimento que vinha sendo construído na jurisprudência superior acerca da delimitação funcional dos instrumentos de controle jurisdicional da administração pública.
O caso concreto envolvia questionamento de majoração de alíquota de ICMS sobre energia elétrica utilizada como insumo industrial, demonstrando a relevância prática da tese fixada.
Contornos fáticos da controvérsia
O processo teve origem em março de 2019, quando cidadão ajuizou ação popular contra o Estado de Sergipe. O objetivo foi o de “impugnar o cálculo do ICMS incidente sobre energia elétrica, utilizada como insumo na indústria, com base em alíquota majorada por lei estadual, sob justificativa de desrespeito ao princípio da anterioridade anual”, conforme registra o relatório ministerial.
A questão temporal mostrava-se relevante, posto que a lei estadual fora publicada apenas em 6 de janeiro de 2019, pretendendo-se sua aplicação no mesmo exercício financeiro.
O autor popular incluiu entre os pedidos “a restituição dos valores pagos a maior pelos contribuintes”, revelando a natureza essencialmente restitutória da pretensão.
O juízo de primeira instância reconheceu a inadequação da via eleita, extinguindo o processo sem resolução do mérito.
Todavia, o Tribunal de Justiça sergipano reformou a sentença mediante acórdão. Segundo transcrição constante dos autos, a fundamentação utilizou o entendimento de que “seria possível o ajuizamento de ação popular para discutir matéria tributária”, invocando precedente do Supremo Tribunal Federal no RE 576.155/DF.
Ação popular
O Ministro Francisco Falcão iniciou seu voto estabelecendo os contornos dogmáticos da ação popular, lembrando que, nos termos do art. 1º da Lei 4.717/1965, “a ação popular será proposta por qualquer cidadão para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público, de forma abrangente”.
Contudo, o relator aprofundou a análise funcional do instituto, esclarecendo que "a ação popular constitui instrumento viabilizador do controle de condutas ilegítimas do Poder Público, não se prestando, de outra parte, à mera tutela patrimonial dos cofres estatais, à contraposição pura e simples do escorreito exercício da atividade administrativa, tampouco à defesa de interesses exclusivos do cidadão figurante no polo ativo".
Ora, esta passagem revela compreensão sofisticada sobre a teleologia constitucional da ação popular
Isto porque, o instituto configura “direito fundamental cujo exercício, embora empreendido a título individual, tem por objetivo a tutela de bens jurídicos transindividuais”, conforme precedente da Primeira Turma no REsp 1.608.161/RS, sob relatoria da Ministra Regina Helena Costa.
Microssistema processual coletivo
Ademais, elemento central da fundamentação reside no reconhecimento jurisprudencial de que a ação popular integra o microssistema processual da tutela coletiva.
Nessa linha, o voto registra que "o Superior Tribunal de Justiça entende que a lei da ação popular tem aplicação estendida às ações civis públicas diante das funções assemelhadas a que se destinam a proteção do patrimônio público no sentido lato, bem como por ambas pertencerem ao microssistema processual da tutela coletiva".
Perceba, essa construção teórica permite a comunicação entre os diversos institutos de controle coletivo, possibilitando a aplicação analógica de princípios e vedações. Nesse contexto, o Ministro Falcão invocou precedente da Primeira Seção nos Embargos de Divergência no REsp 1.428.611/SE, onde se estabeleceu que “é inviável o ajuizamento de ação civil pública pelo Ministério Público para discutir a relação jurídico-tributária”.
Nessa linha, o fundamento dessa vedação encontra-se no parágrafo único do art. 1º da Lei 7.347/1985, que expressamente exclui as pretensões tributárias do âmbito da ação civil pública.
Ora, conforme registra o acórdão paradigma, “a referida vedação direcionada ao tema impede a utilização da ação coletiva para tutelar direito individual homogêneo disponível, e que pode ser defendido individualmente em demandas autônomas”.
E o STF?
Ora, a decisão do STJ encontra sólido respaldo no Tema 645 da repercussão geral do Supremo Tribunal Federal.
Isto porque, no ARE 694.294, sob relatoria do Ministro Luiz Fux, a Suprema Corte estabeleceu que “o Ministério Público não possui legitimidade ativa para, em ação civil pública, ajuizar pretensão tributária em defesa dos contribuintes, buscando questionar a constitucionalidade ou legalidade do tributo”.
Analogia
O relator procedeu ao raciocínio analógico que fundamenta a decisão:
"Na linha da jurisprudência desta Corte Superior e do Pretório Excelso, é possível estender a interpretação para a ação popular, que faz parte do microssistema das ações coletivas, no sentido de que não cabe o ajuizamento da ação para discutir interesses individuais homogêneos de caráter tributário".
Assim, o método analógico justifica-se pela identidade de razão jurídica entre as situações.
Se o Ministério Público, titular de prerrogativas constitucionais específicas para a defesa de interesses transindividuais, não pode utilizar a ação civil pública para questionar tributos, com maior razão o cidadão comum não poderia fazê-lo mediante ação popular.
Ora, o elemento central da inadequação reside na constatação de que “a cobrança da exação, instituída por lei, não pode ser considerada uma ofensa ao patrimônio público da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, das autarquias ou das sociedades de economia mista, ultrapassando, assim, os limites previstos no art. 1º da Lei 4.717/1965”.
Assim, quando o ente público cobra tributo com base em lei regularmente editada, está exercendo competência constitucional que, em tese, visa ao incremento de receitas públicas, não à sua diminuição.
Ademais, mesmo quando posteriormente se reconheça a inconstitucionalidade ou ilegalidade da exação, o ato administrativo de cobrança não configura, por si só, conduta lesiva no sentido tradicionalmente abrangido pela ação popular.
Isto é, evidencia-se “a inadequação da via processual eleita pelo autor popular” quando se pretende questionar aspectos relacionados à instituição e cobrança de tributos, matérias que possuem instrumentos processuais específicos e tecnicamente adequados.
Logo, o julgamento do REsp 2.167.861/SE preserva a finalidade constitucional da ação popular enquanto instrumento de defesa de interesses verdadeiramente transindividuais, evitando sua utilização imprópria para questões de natureza essencialmente individual disponível.
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