O julgamento mais importante do ano no STF: ADPF das Favelas

O julgamento mais importante do ano no STF: ADPF das Favelas

* Marcos Vinícius Manso Lopes Gomes. Defensor Público do estado de São Paulo. Professor de Direito Constitucional do Estratégia Carreiras Jurídicas.

Entenda o caso

A ADPF n. 635, também denominada “ADPF das Favelas”, discute medidas para reduzir a letalidade policial nas operações em comunidades do estado do Rio de Janeiro. Em que pese a Suprema Corte não ter reconhecido um estado de coisas inconstitucionais na segurança pública do estado, homologou parcialmente, em um processo estrutural, por meio de uma decisão “per curiam”, um plano do Estado do Rio de Janeiro para reduzir letalidade policial, retomar áreas ocupadas por organizações criminosas e permitir investigação pela polícia federal sobre crimes e violações de direitos humanos1.

Conforme exposto pelo ministro relator, “o objetivo desta Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental é a promoção do cumprimento de decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos mediante elaboração de um plano para a redução da letalidade policial”2.

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Processo Estrutural

Medidas para

Os processos estruturais são aqueles que necessitam de uma solução múltipla, plural e complexa para a adequada solução do litígio. Requerem uma atuação democrática e participativa para a efetiva observância de direitos fundamentais, implementação justa e apropriada de políticas públicas e para a reestruturação política e social – no caso em tela uma política de segurança pública.

Assim, o cumprimento de uma decisão estrutural poderá se protrair no tempo, por meio de decisões em cascatas em que, de preferência, se construam por meio da negociação, do diálogo e escuta dos grupos sociais e vulneráveis eventualmente envolvidos, concretizando-se o princípio democrático. Em tais aspectos, poderá até mesmo existir uma relativização da coisa julgada e do princípio da adstrição  para que se possam implementar as medidas necessárias ao caso concreto ao longo do tempo.

Assim, a sentença/decisão estrutural irá afirmar ou não a existência de uma situação de desconformidade e irá definir os objetivos a alcançar. A natureza dessa decisão será mais principiológica do que uma conduta com todos os termos definidos, em que pese a possibilidade de já serem definidos meios, graus, monitoramentos e tempos para serem atingidas as finalidades. Entrementes, pode haver a definição dos meios, do tempo e de eventuais diretrizes para alcançar os resultados até mesmo em inúmeras decisões futuras, sempre com as adaptações necessárias ao caso concreto.

Decisão “per curiam”

De maneira histórica e inédita, proferiu-se voto conjunto, refletindo uma posição consensual entre os ministros da Suprema Corte. Esse voto conjunto é simbólico, demonstrando o compromisso do STF com os direitos humanos e a segurança pública.

Conforme exposto pelo ministro Barroso, trata-se de uma construção conjunta dentro do possível. Para isso, ministros cederam em pontos importantes para alcançar um consenso. Apenas de forma exemplificativa, vejamos algumas mudanças adotadas pelo relator em relação a seu posicionamento anterior: a) o Poder Judiciário não poderá determinar qual ato investigativo a polícia deverá adotar; b) ausência de necessidade de maior detalhamento nos mandados de busca e apreensão; c) o prazo para instalação de câmeras corporais será de 180 dias, não precisando ser utilizada pela Polícia Civil em atividades investigativas; d) a Defensoria Pública terá menos poderes, pois o acompanhamento da decisão do STF seria feito por um Conselho no qual a Defensoria participaria da coordenação junto com o Ministério Público, sendo certo que, agora, quem comandará o acompanhamento da decisão do STF será o CNJ, excluindo-se a Defensoria Pública da coordenação desse acompanhamento.

Ausência de um estado de coisas inconstitucionais

Em apertada síntese, o Estado de Coisas Inconstitucional, que teve origem na Corte Constitucional da Colômbia, refere-se a uma grave e permanente violação de direitos fundamentais, diante de uma comprovada omissão do Poder Público e com a necessidade de solução múltipla e plurilateral. Vejamos o seguinte precedente da Suprema Corte:

STF - ADPF n. 347 MC/DF – Ementa: CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”.

No caso em tela, em que pese o diagnóstico da gravidade da situação, não se reconheceu um estado de coisas inconstitucional na segurança pública do estado do Rio de Janeiro.

Pontuou-se expressiva redução da letalidade policial ao longo do processo por meio de medidas anteriormente adotadas. Reconheceu-se falhas administrativas, omissões do estado e violação de direitos humanos. Porém, existe um compromisso do estado do Rio de Janeiro para cessar as violações dos direitos humanos, sem que seja necessário reconhecer um estado de coisas inconstitucionais. Vejamos trecho da decisão:

“A Corte também entende que não é prematura a declaração de cessação de um estado de coisas inconstitucional na política de segurança pública, porque a execução das complexas medidas necessárias para afastá-lo estão em curso de efetiva institucionalização. Reconhecer o compromisso significativo para superar o estado de coisas inconstitucional é, no entender da Corte, uma forma de expressar a confiança de que as medidas estruturais ainda necessárias serão, de fato, tomadas. Por isso, a Corte entende que deve ser afastada a declaração de estado de coisas inconstitucional e que se deve reconhecer o compromisso significativo do Estado do Rio de Janeiro.”3.

Entrementes, acreditamos que na decisão, nesse ponto, restou acentuada um caráter mais político do que jurídico, notadamente porque culminaram configurados todos os requisitos para o reconhecimento de um estado de coisas inconstitucionais, e também porque o asfalto e a favela gritam diante de tamanha ineficiência ou omissão do estado, bem como diante do verdadeiro caos na segurança pública do referido estado, com consequente violação de inúmeros direitos humanos.

Medidas a serem adotadas

Após a homologação do acordo, vejamos algumas medidas determinadas pelo Supremo Tribunal Federal, almejando uma política de segurança cidadã e a redução da letalidade policial4:

a) COMUNICAÇÃO IMEDIATA AO MINISTÉRIO PÚBLICO: o Ministério Público estadual deverá ser imediatamente comunicado das ocorrências, para que, se entender cabível, determine o comparecimento de um Promotor de Justiça ao local dos fatos. Essa comunicação deverá ser regulamentada entre a Procuradoria Geral de Justiça e a Secretaria de Segurança Pública.

b) ATUAÇÃO DO DELEGADO DE POLÍCIA: o Delegado de Polícia responsável deverá dirigir-se, imediatamente ao local da ocorrência, apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; e, desde logo, identificar e qualificar as testemunhas presenciais do fato.

c) ATUAÇÃO DA POLÍCIA TÉCNICA: a Superintendência da Polícia Técnico-Científica enviará, imediatamente, uma equipe especializada para comparecer ao local devidamente preservado, para a realização das necessárias perícias, liberação do local e remoção de cadáveres. Os cadáveres serão sempre fotografados na posição em que forem encontrados, bem como, na medida do possível, todas as lesões externas e vestígios deixados no local do crime.

d) ATUAÇÃO DAS CORREGEDORIAS DAS POLÍCIAS: as Corregedorias da Polícia Civil e Militar deverão acompanhar as ocorrências que envolvam seus respectivos policiais, objetivando a coleta de dados e de informações visando instruir os respectivos procedimentos administrativos.

e) COLETA ADEQUADA DE DADOS EM CASO DE LETALIDADE POLICIAL: 1.2.2. Que o Ministério da Justiça e da Segurança Pública adote as providências cabíveis junto ao Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (SINESP) para que sejam abertos os campos necessários viabilizando a inserção, por parte de todos os entes federados, dos dados desagregados sobre as mortes decorrentes de intervenção policial.

f) CÂMERAS NAS FARDAS: o Estado do Rio de Janeiro, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, comprove a implantação das câmeras nas viaturas policiais da Polícia Militar e da Polícia Civil, quando não estiver em atividades investigativas, e nas fardas ou uniformes dos agentes da Polícia Civil nas hipóteses pertinentes, com a publicação da respectiva regulamentação, abrangendo somente os casos em que a Polícia Civil do Estado realiza diligências ostensivas ou operações policiais planejadas, afastada a obrigatoriedade de uso de equipamentos de geolocalização e gravação audiovisual em atividades e diligências investigatórias desempenhadas pela Polícia Civil, exclusivamente no exercício da função de polícia judiciária, em virtude do potencial comprometimento do caráter sigiloso e eficiência dessas atividades e da segurança de policiais e testemunhas.

g) FINANCIAMENTO DAS MEDIDAS AQUI DETERMINADAS: 2.2. em complemento à aplicação de recursos do orçamento estadual, fica autorizado o recebimento de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública pelo Estado do Rio de Janeiro por meio de convênio, contrato de repasse ou instrumento congênere para viabilizar o cumprimento da presente decisão, ainda que distinto seja o prazo de preservação das imagens em relação à regulamentação do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, até o encerramento dos contratos vigentes na data deste julgamento.

h) APRESENTAÇÃO DE PLANOS PARA A SEGURANÇA PÚBLICA: os repasses somente serão realizados com a apresentação e aprovação de planos associados aos programas específicos de segurança pública, dos quais constarão a contrapartida do ente federativo, segundo critérios e condições definidos, quando exigidos em ato do Ministério da Justiça e Segurança Pública e deverão ser fiscalizados por órgão específico responsável pela gestão do fundo, sem prejuízo da fiscalização pelos respectivos Tribunais de Contas e do Ministério Público.

i) REOCUPAÇÃO TERRITORIAL DAS ÁREAS DOMINADAS POR ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS: determinar a elaboração de um plano de reocupação territorial de áreas sob domínio de organizações criminosas pelo Estado do Rio de Janeiro e pelos municípios interessados, observando os princípios do urbanismo social e com o escopo de viabilizar a presença do Poder Público de forma permanente, por meio da instalação de equipamentos públicos, políticas voltadas à juventude e a qualificação de serviços básicos, devendo o plano ter caráter operacional, com cronograma objetivo, contando com alocação obrigatória de recursos federais, estaduais e municipais, inclusive oriundos de emendas parlamentares impositivas.

j) PROPORCIONALIDADE DO USO DA FORÇA: 5. Em substituição ao parâmetro da excepcionalidade, aplicado durante a pandemia, determinar a observância da Lei 13.060, de 2014, declarada constitucional pelo STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.243/DF, e seu regulamento, cabendo às próprias forças de segurança avaliar e definir o grau de força adequado a cada contexto, com controle a posteriori, observando a proporcionalidade das ações e preferencialmente com planejamento prévio das operações.

Por fim, destacamos também medidas inerentes à REGRAS PARA A BUSCA DOMICILIAR, PRESENÇA DE AMBULÂNCIAS NAS OPERAÇÕES POLICIAIS, OPERAÇÕES PRÓXIMAS A ESCOLAS E HOSPITAIS e COMPARTILHAMENTO DE DADOS DE OPERAÇÕES COM MP.

Tais parâmetros serão devidamente acompanhados ao longo do tempo, aguardando-se o sucesso das medidas determinadas no processo estrutural. Assim, possibilita-se a devida análise posterior e almeja-se a garantia e promoção dos direitos humanos.


  1. Disponível em https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/adpf-das-favelas-stf-homologa-parcialmente-plano-do-estado-do-rio-de-janeiro-para-reduzir-letalidade-policial/. Acesso em 04 de abril de 2025. ↩︎
  2. Disponível em https://noticias-stf-wp-prd.s3.sa-east-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/wpallimport/uploads/2025/04/04093617/ADPF-635-Favelas-Voto-per-curiam.pdf. Acesso em 04 de abril de 2025. ↩︎
  3. Disponível em https://noticias-stf-wp-prd.s3.sa-east-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/wpallimport/uploads/2025/04/04093617/ADPF-635-Favelas-Voto-per-curiam.pdf. Acesso em 04 de abril de 2025. ↩︎
  4. Medidas retiradas do voto contido em https://noticias-stf-wp-prd.s3.sa-east-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/wpallimport/uploads/2025/04/04093617/ADPF-635-Favelas-Voto-per-curiam.pdf. Acesso em 04 de abril de 2025. ↩︎

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