Caipirinha “batizada” dopa turistas no RJ: como a violência imprópria no roubo pode ser cobrada em seu concurso público?

Caipirinha “batizada” dopa turistas no RJ: como a violência imprópria no roubo pode ser cobrada em seu concurso público?

Prof. Gustavo Cordeiro

Introdução

O caso dos turistas britânicos dopados e roubados no Rio de Janeiro, que repercutiu nacionalmente em agosto de 2025, trouxe à tona uma das figuras mais complexas e cobradas em concursos jurídicos: a violência imprópria no crime de roubo. O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro denunciou três mulheres por roubo com violência imprópria, furto qualificado por fraude eletrônica e associação criminosa.

Este episódio é um exemplo perfeito de como a dogmática penal se materializa na prática forense e, principalmente, como esse tema pode aparecer nas provas mais exigentes do país. A distinção entre violência própria e imprópria, os meios de execução do roubo e as peculiaridades da violência imprópria são assuntos recorrentes em questões de Magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública.

Os fatos e a subsunção típica

Narrativa fática

Na madrugada de 8 de agosto de 2025, dois universitários britânicos, Mihailo Petrovic e Diego Bravo, conheceram três mulheres em um bar na Lapa, região central do Rio de Janeiro. Após o convite para seguirem à orla de Ipanema, as suspeitas ofereceram caipirinhas adulteradas com substância que provoca sonolência e desorientação – o famoso golpe “Boa Noite, Cinderela”.

Com as vítimas em estado de inconsciência, o grupo conseguiu subtrair dois celulares e realizar transações bancárias no valor de 2.100 libras (aproximadamente R$ 15 mil dos R$ 110 mil tentados), utilizando-se do acesso às contas bancárias das vítimas. Todo o episódio foi registrado em vídeo por uma testemunha, que filmou as suspeitas fugindo de táxi enquanto as vítimas apresentavam sinais evidentes de alteração da consciência.

Subsunção aos tipos penais

Roubo com violência imprópria (art. 157, caput, CP)

O núcleo central da imputação reside no roubo com violência imprópria. Vejamos a estrutura típica:

Art. 157, caput, CP: "Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência."

Elementos configuradores no caso concreto:

  • Sujeito ativo: Amanda Couto Deloca, Mayara Ketelyn Américo da Silva e Raiane Campos de Oliveira
  • Sujeito passivo: os turistas britânicos Mihailo Petrovic e Diego Bravo
  • Objeto material: celulares e valores monetários (2.100 libras)
  • Meio executório: violência imprópria mediante administração de substância entorpecente
  • Finalidade: apropriação do bem alheio (“para si”)

A violência imprópria se caracterizou pela administração de substância psicoativa nas bebidas, reduzindo as vítimas à impossibilidade de resistência. Este é o elemento distintivo que eleva o crime de furto para roubo, conforme será detalhado adiante.

Furto qualificado por fraude eletrônica (art. 155, §4º-A, CP)

Art. 155, §4º-A: "A pena é de reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, se a subtração for praticada com abuso de cartão de crédito ou débito, ou outro meio de pagamento eletrônico."

As transações bancárias realizadas pelas acusadas, aproveitando-se do acesso aos dispositivos móveis das vítimas, configuram furto qualificado pela fraude eletrônica. Inclusive, é importante notar que o MP tipificou separadamente este crime, reconhecendo que as operações bancárias constituem conduta autônoma posterior ao roubo inicial.

Associação criminosa (art. 288, CP)

Art. 288: "Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes."

Logo, a atuação coordenada das três mulheres, com divisão de tarefas e histórico de crimes similares (especialmente Raiane, com mais de 20 anotações criminais), caracteriza perfeitamente a associação criminosa estável.

Roubo próprio vs. roubo impróprio: conceitos fundamentais

Roubo próprio

O roubo próprio é aquele em que a violência ou grave ameaça antecede ou é concomitante à subtração. A violência é empregada como meio para viabilizar a apropriação do bem.

Características essenciais:

  • Violência ou grave ameaça precede a subtração;
  • Nexo causal direto entre a violência e a obtenção do bem;
  • Dolo específico de apropriação desde o início da conduta violenta;

Modalidades de violência no roubo próprio:

a) Violência física:

  • Agredir a vítima com socos e pontapés para subtrair sua bolsa;
  • Empurrar violentamente uma pessoa idosa para tomar sua carteira;
  • Imobilizar a vítima com chaves de braço durante o assalto;
  • Derrubar e pisotear a vítima para pegar seus pertences;

b) Grave ameaça:

  • Apontar arma de fogo e exigir dinheiro (“passa a grana ou morre”);
  • Ameaçar com faca no pescoço (“me dá o celular se não te corto”);
  • Simular estar armado colocando objeto no bolso (“estou armado, coopera”);
  • Ameaçar familiar presente (“dá o dinheiro ou machuco seu filho”);

c) Violência imprópria:

  • Ministrar “boa noite cinderela” em bebida antes de subtrair valores;
  • Aplicar spray de éter no rosto da vítima em via pública;
  • Injetar anestésico para deixar a pessoa inconsciente;
  • Usar hipnose ou técnicas de sugestão para anular a resistência;
  • Administrar rohypnol dissolvido em refrigerante;
  • Borrifar clorofórmio em lenço aplicado no rosto da vítima;

Roubo impróprio (art. 157, §1º, CP)

Art. 157, §1º: "Na mesma pena incorre quem, logo depois de subtraída a coisa, emprega violência contra pessoa ou grave ameaça, a fim de assegurar a impunidade do crime ou a detenção da coisa para si ou para terceiro."

Assim, no roubo impróprio, a violência é posterior à subtração, sendo empregada para assegurar a impunidade ou manter a posse do bem subtraído.

Requisitos específicos:

  • Subtração anterior à violência;
  • Violência empregada logo depois da subtração;
  • Finalidade específica: assegurar impunidade ou detenção da coisa;
  • Elemento temporal: “logo depois” (não pode haver longo intervalo);

Exemplos práticos de roubo impróprio:

a) Para assegurar a impunidade:

  • Agente furta carteira e, ao ser perseguido por segurança, desfere socos para fugir;
  • Adolescente subtrai chocolate e agride funcionário que tentava detê-lo;
  • Pessoa pega produto em loja e empurra violentamente cliente que viu a ação;
  • Indivíduo furta bicicleta e ameaça transeunte que o reconheceu (“se me denunciar, te mato”);

b) Para assegurar a detenção da coisa:

  • Ladrão pega bolsa e, quando a vítima tenta recuperar, a agride para manter a posse;
  • Agente subtrai celular e, ao ser alcançado pelo proprietário, o ameaça com faca;
  • Pessoa furta mercadoria e, quando abordada pelo dono, desfere pontapés para não devolver;
  • Criminoso rouba carro e agride mecânico que tentava impedir sua saída;

c) Violência imediata após flagrante:

  • Empregado furta dinheiro do caixa e agride chefe que o surpreendeu;
  • Cliente subtrai perfume e empurra segurança que o flagrou;
  • Visitante pega objeto em casa alheia e ameaça o anfitrião que percebeu;

ATENÇÃO: Em todos esses casos, a violência deve ocorrer logo depois da subtração, sem grande intervalo temporal. Se houver demora significativa, configurará furto + lesão corporal ou ameaça em concurso material.

A impossibilidade de violência imprópria no roubo impróprio

Violência imprópria

ATENÇÃO CONCURSEIROS: Este é um dos pontos mais cobrados e que gera maior confusão!

No roubo próprio: A violência imprópria É ADMITIDA como meio executório (art. 157, caput, in fine: “reduzido à impossibilidade de resistência”).

No roubo impróprio: A violência imprópria NÃO É ADMITIDA, pois seria logicamente impossível empregar violência imprópria após a subtração para assegurar a impunidade. Como reduzir alguém à impossibilidade de resistência depois que o crime já foi consumado?

Exemplos práticos de não cabimento:

a) Violência imprópria posterior à subtração:

  • Agente subtrai carteira de pessoa embriagada e depois lhe aplica “boa noite cinderela” para não ser reconhecido = FURTO SIMPLES;
  • Criminoso pega bolsa de vítima adormecida e em seguida injeta sedativo para evitar identificação = FURTO SIMPLES;
  • Pessoa furta celular e posteriormente ministra rohypnol à vítima para garantir fuga = FURTO SIMPLES.

b) Comparação com violência física (que caracteriza roubo impróprio):

  • Agente furta e depois empurra a vítima que acordou = ROUBO IMPRÓPRIO (violência física);
  • Agente furta e depois ameaça a vítima que o viu = ROUBO IMPRÓPRIO (grave ameaça);
  • Agente furta e depois agride quem tentou detê-lo = ROUBO IMPRÓPRIO (violência física).

Essa distinção já foi cobrada no 88º Concurso do Ministério Público de São Paulo:

Aquele que, após haver realizado a subtração de bens, ministra narcótico na bebida do vigia local para dali sair com sucesso de posse de alguns dos objetos subtraídos, responde por:

(A) furto consumado.

(B) roubo impróprio.

(C) tentativa de furto.

(D) roubo impróprio tentado.

(E) estelionato.

Gabarito: A.

O gabarito é furto consumado porque a administração de narcótico ocorreu após a subtração já estar consumada, apenas para facilitar a fuga. No roubo impróprio, a violência posterior deve ser física (empurrões, socos, ameaças diretas) para assegurar a impunidade ou manter a posse do bem subtraído ou deve haver o emprego de grave ameaça à pessoa. A violência imprópria (que reduz à impossibilidade de resistência através de substâncias) não pode ser empregada depois da subtração. A violência imprópria só faz sentido antes da subtração (roubo próprio) como meio para viabilizar a apropriação. Quando a substância entorpecente é ministrada após o furto já consumado, mantém-se a tipificação original de furto simples, não se transformando em roubo.

A denúncia do MPRJ

O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ofereceu denúncia contra as três mulheres pelos crimes de roubo com violência imprópria, furto qualificado por fraude eletrônica e associação criminosa.

Pedido de indenização na denúncia

Um aspecto técnico relevante do caso é o pedido de indenização formulado pelo MP na própria denúncia, solicitando R$ 30 mil para cada vítima.

Base Legal: art. 387, IV, CPP

"O juiz, ao proferir sentença condenatória: (...) IV - fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido."

Requisitos para fixação (jurisprudência do STJ)

1. Pedido expresso na peça acusatória

  • Presente: MP formulou pedido específico na denúncia
  • Atenção: Pedido pelo assistente de acusação não supre a omissão do MP (AgRg nos EDcl no AREsp 1.797.301-SP)

2. Indicação do valor pretendido

  • Presente: R$ 30 mil por vítima
  • Jurisprudência: Admite-se dano material e moral (Tema 983, STJ)

3. Realização de instrução específica

  • Particularidade: Em casos de “dano in reipsa” (como violência doméstica), dispensa-se instrução (REsp 1.986.672-SC)
  • No caso concreto: Necessária instrução para quantificar danos materiais e morais

Violência imprópria: roubo vs. estupro de vulnerável

Uma comparação clássica em concursos é a distinção entre violência imprópria no roubo e no estupro de vulnerável. Vejamos:

No roubo (art. 157, caput, CP)

A violência imprópria é meio comissivo ativo – o agente emprega ativamente substâncias ou métodos para anular a resistência com o objetivo específico de subtrair o bem.

Características:

  • Instrumentalidade: violência como meio para o fim (subtração)
  • Atividade: agente atua para criar a impossibilidade de resistência
  • Finalidade específica: viabilizar a apropriação do bem

Exemplos detalhados:

  • Ministrar “boa noite cinderela” em bebida para depois subtrair carteira e joias
  • Aplicar spray de éter em estabelecimento comercial para roubar mercadorias
  • Injetar anestésico em vítima na rua para subtrair seus pertences
  • Usar hipnose em pessoa vulnerável para conseguir senhas bancárias
  • Colocar rohypnol em drink de turista para roubar passaporte e dinheiro
  • Borrifar clorofórmio durante assalto residencial para facilitar subtração

No estupro de vulnerável (art. 217-A, §1º, CP)

A violência imprópria pode ser tanto meio comissivo quanto aproveitamento de condição preexistente.

Modalidades:

a) Meio comissivo (similar ao roubo):

  • Ministrar “boa noite cinderela” em festa para depois praticar ato sexual
  • Embriagar propositalmente adolescente até a inconsciência total
  • Aplicar sedativo via injeção para anular resistência da vítima
  • Colocar droga em bebida de colega universitário em balada
  • Usar substância entorpecente em encontro para facilitar abuso

b) Aproveitamento de condição preexistente (exclusivo do estupro):

  • Abusar de pessoa internada em coma hospitalar
  • Aproveitar-se de vítima encontrada já alcoolizada na rua
  • Abusar de paciente sob efeito de medicação psiquiátrica pesada
  • Aproveitar pessoa em estado vegetativo em clínica
  • Abusar de vítima já desmaiada por problemas de saúde
  • Praticar ato sexual com pessoa em estado de choque após acidente

c) Condições médicas preexistentes:

  • Abusar de pessoa com deficiência mental severa
  • Aproveitar-se de vítima com demência senil avançada
  • Abusar de paciente com transtorno dissociativo
  • Praticar ato sexual com pessoa em crise epilética
  • Aproveitar estado de inconsciência por diabetes descompensada

Distinção fundamental para concursos

No roubo: Violência imprópria é sempre instrumental – visa especificamente facilitar a subtração.

No estupro de vulnerável: O agente pode tanto criar artificialmente a vulnerabilidade quanto aproveitar vulnerabilidade existente.

Questão comentada – violência imprópria no roubo

(FCC/Adaptada) João subtrai a carteira de Pedro enquanto este dorme em um banco de praça após ter ingerido bebida alcoólica por conta própria. Ao perceber que Pedro está acordando, João lhe ministra, via injeção, uma substância entorpecente para evitar ser reconhecido e conseguir fugir. Sobre a conduta de João, assinale a alternativa correta:

a) João praticou furto simples, pois o roubo impróprio não admite violência imprópria.

b) João praticou roubo próprio, pois empregou violência imprópria contra a vítima.

c) João praticou roubo impróprio, pois empregou violência imprópria logo após a subtração.

d) João praticou roubo próprio qualificado pelo emprego de substância entorpecente.

e) João praticou tentativa de roubo impróprio, pois a violência imprópria não se consumou.

Gabarito: A. João inicialmente praticou furto simples (Pedro já estava inconsciente por conta própria). A violência imprópria posterior (injeção da substância) não pode caracterizar roubo impróprio. No roubo impróprio, apenas se admite dois meios de execução: a violência física e a grave ameaça à pessoa, que devem ser imediatas para assegurar a fuga ou impunidade.

🟡🟡 Dica de ouro: Sempre que a violência imprópria for posterior à subtração, não haverá roubo de qualquer espécie.


Quer saber quais serão os próximos concursos?

Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!
0 Shares:
Você pode gostar também