Prof. Gustavo Cordeiro
Introdução: quando a confiança profissional se transforma em crime
Imagine a seguinte situação: uma paciente procura um dentista para tratamento odontológico. Durante o atendimento, o profissional pratica toques íntimos sob o pretexto de que fazem parte do procedimento clínico. A vítima, confiando na autoridade técnica do profissional de saúde, não reage imediatamente. Surge então a questão: estamos diante de importunação sexual (art. 215-A do CP) ou de violação sexual mediante fraude (art. 215 do CP)?
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou essa exata controvérsia em um caso emblemático ocorrido no Rio Grande do Sul. O Ministro Sebastião Reis Júnior restabeleceu a condenação de um dentista de Viamão/SP a nove anos e seis meses de prisão em regime fechado pelo crime previsto no artigo 215 do Código Penal, afastando a desclassificação para importunação sexual realizada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Esta decisão, publicada em agosto de 2024, é fundamental para concursos públicos porque demarca com precisão a fronteira entre dois tipos penais frequentemente confundidos nas provas, especialmente em questões que envolvem crimes contra a dignidade sexual. Mais do que isso: o julgado reforça a importância da compreensão do elemento fraude e da voluntariedade viciada nos crimes sexuais.
O caso concreto: a coragem das vítimas e a prova em vídeo
O caso do dentista chocou o Brasil pela gravidade das condutas e pela coragem das vítimas. Seis mulheres procuraram a polícia relatando abusos sofridos durante consultas odontológicas em Viamão, na Região Metropolitana de Porto Alegre, entre abril de 2022 e março de 2023.
Os relatos das vítimas
Uma das vítimas, jovem de 25 anos, foi atendida três vezes pelo dentista. Nas duas primeiras consultas, foi acompanhada, mas na terceira ficou sozinha no consultório. Seu relato é contundente: “Ele sentou, ele abriu o jaleco, pedia pra eu me aproximar mais, eu dizia que não, então ele se aproximou mais com a cadeira, e quando terminou o procedimento, vi que ele tinha ejaculado”.
Desde os primeiros atendimentos, a vítima notou comportamentos inadequados: carícias no rosto, olhares inapropriados, pedidos para se aproximar, toques no seio durante o procedimento. Na segunda consulta, sua própria filha, que a acompanhou, percebeu o braço do dentista sobre o seio da mãe e fez uma “proteção” com a mão.
A gravação que mudou tudo
Outra vítima, demonstrando extraordinária coragem, gravou em vídeo a segunda consulta com o dentista. As imagens foram fundamentais para a prisão em flagrante do dentista. Segundo seu relato: “No momento que ele está injetando a anestesia no dente, ele já está começando a ter uma ereção; toda vez que eu me levanto para cuspir, ele tenta olhar para debaixo da minha saia. Ele puxa, com o cotovelo dele, o meu braço em direção ao órgão genital dele”.
A delegada Marina Dillenburg, responsável pelo caso, explicou que o vídeo foi decisivo: “Ele fazia questão de mostrar aquilo pra ela, no vídeo dá pra ver ele se ajeitando e colocando o avental pra cima”.
Esta vítima enfrentou julgamentos sociais por ter retornado ao consultório. Sua resposta revela uma realidade que muitas vezes é ignorada: “Muita gente fala: ‘tu não deveria ter voltado lá’. Mas, gente, era o único lugar que eu podia pagar. Eu já tinha tentado tratar, entendeu? Eu pedi para o meu pai para fazer um pix de R$ 50 para eu poder tirar aquele dente”. Esta fala ilustra como vulnerabilidades socioeconômicas podem ser exploradas por criminosos.
A trajetória processual: da condenação à desclassificação e ao restabelecimento
Primeira instância: condenação por violação sexual mediante fraude
Em outubro de 2023, a juíza Caroline Zanotelli condenou o dentista a 9 anos e 6 meses de prisão em regime fechado pelo crime de violação sexual mediante fraude contra três pacientes. A magistrada reconheceu que o dentista aproveitou-se da relação de confiança profissional para praticar atos libidinosos, fazendo as vítimas acreditarem que os toques eram parte dos procedimentos odontológicos.
Segunda instância: o equívoco do TJRS
Em março de 2024, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul desclassificou o crime para importunação sexual (art. 215-A do CP), reduzindo a pena para 7 anos e 6 meses. O TJRS entendeu que não havia consentimento prévio das vítimas quanto aos atos libidinosos, o que afastaria a caracterização da fraude.
Este raciocínio continha um erro conceitual grave: confundia a ausência de consentimento genuíno (vontade real) com a ausência de qualquer forma de consentimento aparente. As vítimas haviam, sim, tolerado os toques inicialmente – não porque concordavam com atos sexuais, mas porque acreditavam tratar-se de procedimentos clínicos necessários.
A decisão do STJ: restabelecimento da condenação original
O Ministério Público do Rio Grande do Sul recorreu ao STJ, sustentando que a violação sexual mediante fraude não exige que a vítima busque o agressor com intenção sexual, mas sim que seja enganada quanto à natureza dos atos libidinosos, acreditando – diante da confiança transmitida pelo profissional – que integravam um procedimento legítimo.
Em decisão publicada em 27 de agosto de 2024, o Ministro Sebastião Reis Júnior deu provimento ao recurso especial do Ministério Público, restabelecendo integralmente a condenação original de 9 anos e 6 meses em regime fechado.
A fundamentação do STJ: compreendendo a fraude nos crimes sexuais
O equívoco do Tribunal Estadual
O Ministro Sebastião Reis Júnior identificou premissa equivocada no raciocínio do TJRS. O tribunal gaúcho partiu da ideia de que, como não havia consentimento real das vítimas para atos sexuais, não poderia haver fraude – e, consequentemente, o crime seria de importunação sexual.
Essa linha de raciocínio inverte completamente a lógica do tipo penal do artigo 215 do Código Penal. A essência da violação sexual mediante fraude não está na ausência de consentimento, mas sim na presença de um consentimento viciado, obtido por meio de engano quanto à natureza do ato praticado.
A natureza jurídica da fraude: vontade viciada
O ministro foi categórico ao explicar que “a fraude consiste na estratégia que leva a vítima a consentir com o ato libidinoso, acreditando se tratar de algo diverso”. E complementou com uma frase que merece ser gravada por todo concurseiro: “A vontade da vítima existe, mas é viciada”.

Esta é a chave interpretativa fundamental: diferentemente da importunação sexual, em que o ato libidinoso ocorre sem qualquer consentimento (ainda que por ato repentino), na violação sexual mediante fraude existe uma aparência de concordância, mas essa concordância está fundamentada em erro provocado pelo agente.
No caso concreto, as vítimas não reagiram imediatamente aos toques porque acreditavam que eram parte do tratamento odontológico. Havia, portanto, uma “tolerância” aos atos – mas essa tolerância decorria de engano sobre a natureza da conduta, não de verdadeira concordância com atos de natureza sexual.
O ardil empregado: abuso da condição profissional
A fraude materializou-se na dissimulação do réu, que se valeu de sua condição de dentista para satisfazer a própria lascívia. As pacientes chegaram a concordar com os toques justamente porque acreditavam, em razão da confiança depositada no profissional de saúde, que integravam procedimentos odontológicos legítimos e necessários.
Como destacou o ministro: “A livre manifestação de vontade foi dificultada pelo ardil empregado”. O engano não estava na identidade do agente (as vítimas sabiam que se tratava do dentista), mas sim na natureza dos atos praticados (acreditavam tratar-se de conduta terapêutica, quando na verdade tinha finalidade libidinosa).
Este tipo de fraude é particularmente grave porque explora a assimetria de conhecimento técnico entre profissional e paciente, além da vulnerabilidade inerente à posição em que a vítima se encontra durante um procedimento odontológico ou médico.
Jurisprudência consolidada do STJ
O Ministro Sebastião Reis Júnior reforçou que o STJ possui entendimento consolidado no sentido de que ato libidinoso praticado de forma dissimulada, sob pretexto de procedimento médico ou odontológico, enquadra-se perfeitamente no tipo penal do artigo 215 do Código Penal.
A Corte Superior tem aplicado sistematicamente esse entendimento em casos envolvendo médicos, fisioterapeutas, dentistas e outros profissionais da saúde que se aproveitam da relação de confiança para praticar crimes sexuais. A jurisprudência reconhece que a posição de autoridade técnica e a vulnerabilidade situacional da vítima durante procedimentos de saúde caracterizam o meio fraudulento apto a viciar o consentimento.
Análise doutrinária: violação sexual mediante fraude x importunação sexual
Violação sexual mediante fraude (art. 215 do CP)
Tipo penal: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”.
Elementos essenciais:
- Conduta: conjunção carnal ou ato libidinoso
- Meio de execução: fraude ou outro meio que impeça/dificulte a livre manifestação de vontade
- Consentimento viciado: a vítima “concorda” com o ato, mas está enganada quanto à sua natureza, finalidade ou identidade do agente
- Pena: reclusão, de 2 a 6 anos
Exemplos clássicos na doutrina:
- Médico que pratica atos sexuais sob pretexto de exame clínico
- Agente que mantém relação sexual fazendo-se passar pelo namorado da vítima, em ambiente escuro
- “Curandeiro” que convence vítima de que ato sexual faz parte de ritual de cura
Importunação sexual (art. 215-A do CP)
Tipo penal: “Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”.
Elementos essenciais:
- Conduta: praticar ato libidinoso
- Ausência de anuência: não há qualquer forma de consentimento da vítima
- Elemento subjetivo especial: finalidade de satisfazer lascívia própria ou de terceiro
- Pena: reclusão, de 1 a 5 anos (se não constitui crime mais grave)
Exemplos típicos:
- Toques rápidos e inesperados em ônibus lotado
- Ato de se esfregar contra vítima em local público
- “Encoxada” repentina
Quadro comparativo
| Aspecto | Violação sexual mediante fraude | Importunação sexual |
| Consentimento | Existe, mas é viciado por erro | Não existe em nenhuma hipótese |
| Conhecimento da vítima | Sabe que algo está ocorrendo, mas está enganada sobre a natureza do ato | Geralmente percebe o ato como claramente indesejado |
| Meio de execução | Fraude ou outro meio que dificulte a manifestação de vontade | Ato repentino, sem qualquer consulta à vontade da vítima |
| Pena | 2 a 6 anos | 1 a 5 anos |
| Contexto típico | Relações de confiança (profissionais da saúde, “falso namoro”) | Atos repentinos em espaços públicos ou aglomerações |
Pontos de atenção para provas
🔶 Erro comum dos candidatos nº 1: Confundir violação sexual mediante fraude com estupro. Lembre-se: no estupro há violência ou grave ameaça; na violação mediante fraude, o meio de execução é a fraude.
🔸 Erro comum dos candidatos nº 2: Achar que na violação mediante fraude não pode haver qualquer reação da vítima. Na verdade, pode haver tolerância inicial justamente porque a vítima está enganada sobre o que está ocorrendo.
🔶 Erro comum dos candidatos nº 3: Pensar que importunação sexual é sempre menos grave que violação mediante fraude. Atenção: a pena da importunação sexual (1 a 5 anos) é menor que a da violação mediante fraude (2 a 6 anos), mas ambos são crimes graves.
⚠️ Pegadinha frequente: Questões que apresentam caso de médico que pratica ato sexual contra paciente totalmente inconsciente (sob anestesia geral, por exemplo). Atenção: se a vítima está inconsciente, trata-se de estupro de vulnerável (art. 217-A, §1º do CP), pois não há sequer a possibilidade de consentimento viciado.
Dicas de memorização
Mnemônico para violação sexual mediante fraude: F.R.A.U.D.E.
- Fingimento (agente finge que o ato é legítimo)
- Relação de confiança (contexto profissional)
- Aparência de concordância (vítima “tolera” inicialmente)
- Uso de posição de autoridade
- Dissimulação da natureza sexual
- Erro provocado dolosamente
Questão de concurso simulada
(Cargo: Promotor de Justiça - Banca Simulada - 2025)
Durante atendimento odontológico, o dentista João, aproveitando-se da posição em que a paciente Maria se encontrava na cadeira odontológica e da confiança que ela depositava em sua competência profissional, passou a acariciar os seios da vítima. Maria, inicialmente, acreditou que os toques faziam parte de algum procedimento necessário ao tratamento dentário a que estava se submetendo, mas depois percebeu o caráter libidinoso da conduta. Considerando a situação hipotética e a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, assinale a alternativa correta:
a) A conduta configura estupro, pois houve constrangimento da vítima mediante a violência presumida decorrente da situação de vulnerabilidade em que se encontrava na cadeira odontológica.
b) A conduta configura importunação sexual, uma vez que a vítima não consentiu com os atos de natureza sexual praticados pelo dentista, tratando-se de ato libidinoso praticado sem anuência.
c) A conduta configura violação sexual mediante fraude, pois a vítima consentiu com os toques por acreditar, em razão da confiança depositada no profissional, que integravam procedimento odontológico legítimo, havendo vontade viciada por erro quanto à natureza do ato.
d) A conduta é atípica, pois não houve violência, grave ameaça ou qualquer forma de constrangimento que pudesse caracterizar crime contra a dignidade sexual.
e) A conduta configura assédio sexual, tendo em vista a relação de superioridade profissional existente entre o dentista e a paciente durante o atendimento clínico.
Gabarito: Letra C
Justificativa:
Alternativa A – INCORRETA: Não se trata de estupro porque não houve emprego de violência ou grave ameaça. A mera situação de vulnerabilidade física (estar sentada na cadeira odontológica) não configura, por si só, o constrangimento exigido pelo tipo penal do art. 213 do CP. Ademais, a jurisprudência do STJ é clara ao enquadrar casos como esse no art. 215 do CP.
Alternativa B – INCORRETA: Este é o erro cometido pelo TJRS no caso analisado. A importunação sexual pressupõe ausência total de anuência. No caso em tela, houve consentimento viciado: Maria concordou com os toques porque acreditava que eram parte do tratamento. A vontade existia, mas estava fundamentada em erro provocado pela fraude do agente. Como ensinou o Min. Sebastião Reis Júnior: “A vontade da vítima existe, mas é viciada”.
Alternativa C – CORRETA: Reproduz fielmente o entendimento do STJ manifestado na decisão em análise. A fraude está na dissimulação do dentista, que se aproveitou da condição profissional para satisfazer a própria lascívia, enganando a vítima sobre a real natureza dos atos. A livre manifestação de vontade foi dificultada pelo ardil empregado. Configura-se perfeitamente o tipo penal do art. 215 do Código Penal.
Alternativa D – INCORRETA: A conduta é típica. O crime de violação sexual mediante fraude não exige violência ou grave ameaça; o meio de execução é justamente a fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima.
Alternativa E – INCORRETA: O assédio sexual (art. 216-A do CP) exige que o agente constranja alguém com intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se de condição de superior hierárquico ou ascendência. No caso, não houve constrangimento para obtenção de favorecimento futuro, mas sim prática direta e imediata de ato libidinoso mediante fraude.
Fechamento estratégico: o que você precisa gravar
A decisão do STJ representa mais do que a solução de um caso isolado: consolida parâmetros interpretativos essenciais para a correta tipificação de crimes sexuais, tema central em qualquer concurso jurídico.
Memorizem os seguintes pontos:
- Violação sexual mediante fraude ≠ ausência de consentimento. O que caracteriza o tipo é o consentimento viciado por erro quanto à natureza, finalidade ou identidade do agente.
- A fraude pode consistir no uso da condição profissional para fazer a vítima acreditar que o ato libidinoso integra procedimento legítimo (médico, fisioterápico, odontológico etc.).
- Importunação sexual = ausência total de anuência. Atos repentinos, sem qualquer forma de consentimento, ainda que viciado.
- Jurisprudência consolidada do STJ: ato libidinoso praticado sob pretexto de procedimento médico configura violação sexual mediante fraude (art. 215 do CP).
- Para provas discursivas: sempre analise se houve alguma forma de “concordância” da vítima. Se sim, verifique se estava baseada em erro (fraude). Se não houve qualquer concordância, pense em importunação sexual ou estupro (conforme a gravidade e o meio empregado).
A fronteira entre os tipos penais é sutil, mas decisiva. Dominá-la pode fazer a diferença entre acertar ou errar questões cruciais na prova – e, mais importante, entre atuar corretamente ou incorretamente na vida profissional.
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