* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Polêmica
A Universidade Federal de Pernambuco selecionará 80 alunos para uma turma de Medicina formada exclusivamente por pessoas sem-terra e quilombolas.
A iniciativa faz parte do Programa Nacional de Educação para Áreas da Reforma Agrária (Pronera), existente desde 1998, e tem por objetivo fomentar a educação no campo.
Na verdade, as 80 vagas serão destinadas aos seguintes beneficiários:
- Assentados;
- Acampados cadastrados pelo INCRA;
- Quilombolas;
- Educadores do campo;
- Egressos de cursos do INCRA; e
- Integrantes do Programa Nacional de Crédito Fundiário.
Segundo o edital, a seleção terá duas etapas: uma redação presencial com tema relacionado à realidade do campo e a análise do histórico escolar de Português, Biologia e Química do ensino médio. Haverá reserva de vagas para ações afirmativas, como candidatos de escolas públicas, de baixa renda, pessoas pretas ou pardas e pessoas com deficiência.
A notícia gerou enorme crítica de entidades representativas dos médicos. O Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe), o Sindicato dos Médicos, a Associação Médica de Pernambuco e a Academia Pernambucana de Medicina afirmaram, em nota conjunta:
“A criação de um processo seletivo exclusivo, paralelo ao sistema nacional, sem utilização do Enem e do Sisu [Sistema de Seleção Unificada] como critérios de acesso, afronta os princípios da isonomia e do acesso universal, além de comprometer a credibilidade acadêmica e representar um precedente grave e perigoso para a educação médica no Brasil”
A Universidade Federal de Pernambuco rebateu as críticas, afirmando que as vagas oferecidas pelo Pronera são extras e não afetam em nada aquelas ofertadas usualmente no Sisu, e que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação “dá autonomia universitária para definir o número de vagas, incluindo a abertura de vagas supranumerárias, especialmente quando destinadas a políticas públicas específicas”.
O deputado estadual de Pernambuco Coronel Alberto Feitosa classificou os critérios de ingresso como “arbitrários e de difícil fiscalização” e disse que a medida visa favorecer o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Já a deputada estadual Dani Portela defendeu a iniciativa, lembrando que o Pronera já promoveu outros cursos superiores para trabalhadores rurais:
“Quando mexe com direito, veterinária e medicina, parece incomodar bastante uma parte da elite brasileira que não admite ver pobre na universidade”
Pedido de liminar
Essa polêmica acabou indo parar no Judiciário. A Justiça Federal de Pernambuco suspendeu o edital da seleção.
O juiz federal Ubiratan de Couto Mauricio acatou um pedido de liminar ajuizado pelo vereador do Recife, Tadeu Calheiros, que pedia a suspensão imediata do Edital nº 31/2025 da UFPE.
O fundamento para a concessão da liminar suspendendo a seleção foi violação à moralidade administrativa e aos princípios da igualdade de acesso e permanência na universidade.
Segundo o magistrado:
- O Edital nº 31/2025 limitou a participação apenas a candidatos ligados ao PRONERA, o que seria irrazoável;
- Os critérios de seleção (redação apenas sobre temas agrários e análise parcial do histórico escolar) seriam inadequados para um curso de medicina;
- O prazo do cronograma foi muito curto, prejudicando a publicidade e o controle social.
A UFPE argumentou que:
- O edital está amparado pela autonomia universitária prevista na Constituição e no art. 53 da Lei nº 9.394/1996 (LDB);
- O vínculo com o PRONERA é uma ação afirmativa legítima para reduzir desigualdades e promover a educação no campo, já reconhecida pelo STF;
- Os critérios de avaliação são adequados ao perfil dos candidatos;
- Os custos são integralmente financiados pelo INCRA, sem uso do orçamento da universidade;
- O cronograma foi definido para adequar-se ao calendário acadêmico e ao programa, com prorrogação do prazo de inscrições;
- A suspensão do processo causaria grande prejuízo social, impedindo a formação de 80 médicos vindos de áreas de reforma agrária.
Análise jurídica
Princípio da igualdade
A Constituição alberga um verdadeiro direito de amplo acesso aos cargos, empregos e funções públicas, o que inclui amplo acesso às vagas das universidades públicas, conforme previsto no artigo 206, da CF/88.
CF/88
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
A consagração constitucional do princípio da igualdade veda as diferenciações arbitrárias e as discriminações absurdas, sendo o tratamento desigual dos casos desiguais uma exigência do próprio conceito clássico de Justiça.
Como bem pontuou o ministro Alexandre de Moraes na ADI 7480:
A desigualdade inconstitucional na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e aos efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos. |
Ou seja, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado.
Importante ressaltar a tríplice finalidade limitadora do princípio da igualdade:
- Limitação ao legislador;
- Limitação ao intérprete/autoridade pública; e
- Limitação ao particular
Nesse contexto, temos as ações afirmativas, que tem por objetivo concretizar a igualdade material.

Autonomia universitária
A autonomia universitária é um princípio constitucional previsto no art. 207 da carta Magna, que confere às universidades liberdade para gerir seus assuntos didático-científicos, administrativos e financeiros-patrimoniais.
CF/88
Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
§ 1º É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei.
§ 2º O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica.
Essa autonomia é fundamental para a produção e disseminação de conhecimento e o desenvolvimento do país, mas não é um direito absoluto e deve ser exercida dentro das leis e das próprias normas da instituição.
Portanto, a autonomia universitária abrange três áreas principais:
- Didático-científica: Liberdade para decidir sobre o currículo, o ensino, a pesquisa e a forma de organização das atividades acadêmicas.
- Administrativa: Capacidade de gerenciar os próprios processos e criar suas próprias regras internas.
- Financeira e patrimonial: Autonomia para elaborar orçamentos, realizar investimentos e gerenciar o patrimônio de forma independente.
O grande ponto, aqui, é saber se a oferta de vagas exclusivamente para determinados beneficiários se insere dentro da autonomia universitária ou se ela afronta os princípios da isonomia e do livre acesso às universidade.
A meu ver, como a oferta de vagas exclusivas para beneficiários do PRONERA se deu de forma extra (supranumerárias), em paralelo às vagas de amplo acesso, não houve ofensa à isonomia, estando a decisão da UFPE dentro do seu círculo de autonomia universitária.
Ou seja, existem vagas do curo de medicina da UFPE ofertadas a todos que queiram participar da seleção, não havendo qualquer limitação ou exclusão na concorrência pelo curso.
Ótimo tema para provas de direito constitucional.
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