Após juiz dizer que “lugar de demônio é na cadeia” e “lugar de psicopata é na cadeia”, TJ-BA reconhece suspeição do magistrado e anula sentença.
* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
O caso
Um caso inusitado aconteceu na Bahia. O TJ-BA, por meio da 1ª câmara Criminal, anulou sentença de primeiro grau, determinando a renovação dos atos processuais desde a audiência de instrução e julgamento.
A decisão motivou-se pelo reconhecimento de parcialidade do magistrado sentenciante. Ele teria utilizado linguagem considerada excessiva e ofensiva durante a audiência, incluindo a expressão “lugar de demônio é lá na cadeia” e “lugar de psicopata é na cadeia”.
O réu estava preso por violar uma medida protetiva da Lei Maria da Penha, na cidade de Barreirinhas/BA. Ao final do julgamento, no 1º grau, o réu havia sido condenado a um ano e seis meses de detenção por descumprimento de medida protetiva. Ele ainda tinha o direito de recorrer em liberdade, enquanto foi absolvido das acusações de ameaça e tentativa de lesão corporal.
Tanto a defesa quanto o Ministério Público apelaram da decisão, a primeira alegando a nulidade da sentença devido à suspeição do magistrado, e o segundo buscando a condenação do réu pelos crimes de ameaça e tentativa de lesão corporal.
Causas da suspeição
As falas do juiz que o Tribunal reconheceu como excessivas e indicativas de parcialidade, atraindo a suspeição do magistrado, foram:
Além disso, o magistrado também teria ignorado o direito do réu de se manter em silêncio ao perguntar se ele “tomava remédio controlado”.
Assim, a Corregedoria do Tribunal foi acionada para adotar as “providências pertinentes”.
Análise jurídica
O código de processo penal prevê, em seu artigo 254, as causas de suspeição do magistrado. São elas:
Entretanto, segundo Superior Tribunal de Justiça e o próprio Tribunal de Justiça da Bahia, esse rol do artigo 254 não é taxativo.
O TJ-BA, julgando o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas n.º 8009301-53.2019.8.05.0000 (IRDR tema 16), de observância obrigatória para o judiciário baiano, definiu a seguinte tese:
Portanto, mesmo não estado no rol do artigo 254, pode-se considerar o uso de linguagem excessiva, pejorativa e de pré-julgamento acerca da culpabilidade, causa supralegal de suspeição. Isso porque, dessa forma, expõe-se claramente a parcialidade do julgador.
O Tribunal baiano, na ementa do acórdão do citado IRDR, destacou ainda:
“3. O texto do art. 254, CPP é por demasiado resumido e, de certo, incapaz de versar sobre todas as circunstâncias em que um magistrado será considerado parcial para julgar a ação penal. 4. A toda clareza, a suspeição evidencia a necessidade de cessar a interferência ou atuação do julgador na demanda, sendo imperioso seu afastamento quando se constatar que possa interferir no deslinde, por interesse próprio ou em benefício de terceiro, ainda que o motivo não esteja expressamente explicitado na prescrição de regência (art. 254, CPP) ... 7. O Brasil é signatário do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e do Pacto de São José da Costa Rica, os quais, em suma, também exigem a imparcialidade do Poder Judiciário em suas decisões e, por este motivo, não elencam, de maneira exaustiva, as causas ensejadoras da parcialidade do julgador.”
Pela leitura do acórdão (TJ-BA, Apelação criminal nº 8003152-33.2023.8.05.0022) é possível verificar que o Tribunal considerou que o magistrado sentenciante acabou por antecipar sua visão dos fatos e a culpa do acusado, manifestando-se de maneira ofensiva e intimidatória, conduta que se amolda a uma causa supralegal de suspeição.
Falta de cortesia
A linguagem utilizada pelo magistrado sentenciante ultrapassou a mera violação do dever de urbanidade, infringindo os princípios da dignidade da pessoa humana e do devido processo legal.
Inclusive, feriu o Pacto São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário. Com efeito, “Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”.
Importante ressaltar que o Código de Ética da Magistratura, no artigo 22, impõe aos magistrados o dever de cortesia:
Art. 22. O magistrado tem o dever de cortesia para com os colegas, os membros do Ministério Público, os advogados, os servidores, as partes, as testemunhas e todos quantos se relacionem com a administração da Justiça. Parágrafo único. Impõe-se ao magistrado a utilização de linguagem escorreita, polida, respeitosa e compreensível.
A Lei Complementar nº 35/79 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) vai no mesmo sentido:
Art. 35 - São deveres do magistrado: ... IV - tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça, e atender aos que o procurarem, a qualquer momento, quanto se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência.
O Colegiado foi incisivo neste ponto:
“Nessa medida, o magistrado não somente antecipou o seu vislumbre de culpabilidade do acusado, como também se utilizou de expressões flagrantemente opostas ao dever de urbanidade previsto no art. 35, IV, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, inobservando, outrossim, o dever de cortesia para com as partes, que demanda a utilização de linguagem escorreita, polida e respeitosa, conforme previsto no art. 22 do Código de Ética da Magistratura.” (Trecho do acórdão)
Enfim, a 1ª Câmara Criminal considerou que o magistrado, ao se dirigir ao réu com linguagem excessiva, ofensiva e parcial, acabou por incorrer em causa supralegal de suspeição.
O fato fez com que se anulassem todos os atos desde a audiência de instrução e julgamento. Isso inclui a sentença, e o consequente retorno dos autos à primeira instância para novo julgamento pelo juiz substituto.
O caso é emblemático e pode muito bem aparecer como cobrança aos candidatos, principalmente dos concursos para magistratura, defensoria e ministério público, o conhecimento acerca da possibilidade de aplicação de causas supralegais de suspeição no âmbito criminal.
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