Prof. Gustavo Cordeiro
Introdução: quando o Legislativo contraria o STF — e vence
Em 2006, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante 9, validando a perda integral dos dias remidos pelo condenado que cometesse falta grave durante a execução penal. Era a consolidação de um entendimento rigoroso: quem faltava gravemente perdia tudo o que havia conquistado com trabalho ou estudo.
Mas em 2011, o Congresso Nacional fez algo raro: aprovou a Lei 12.433/2011, que alterou o artigo 127 da Lei de Execução Penal e limitou essa perda a no máximo um terço do tempo remido. Foi um clássico caso de superação legislativa — ou seria um overruling legislativo?
Durante 14 anos, a SV 9 permaneceu formalmente vigente, mesmo com a lei nova em sentido contrário. Juízes ficaram em dúvida: aplicavam a súmula vinculante ou seguiam a lei posterior? O sistema estava em tensão.
Somente em 2025, após julgamento de repercussão geral (RE 1.116.485, Tema 477), o STF finalmente cancelou a SV 9, reconhecendo que a alteração legislativa exigia a revisão ou o cancelamento do enunciado sumular. A decisão foi unânime e representou um marco sobre a dinâmica entre súmula vinculante e legislação superveniente.
Este artigo analisa esse movimento institucional sob a perspectiva da execução penal, da teoria das fontes do direito e, claro, do que realmente importa para você, concurseiro: como esse tema pode cair na prova.
A origem da Súmula Vinculante 9: o rigor da perda integral
A redação original do artigo 127 da LEP (Lei 7.210/1984) era clara:
"O condenado que for punido por falta grave perderá o direito ao tempo remido, começando o novo período a partir da data da infração disciplinar."
Esse dispositivo foi recepcionado pela Constituição de 1988, conforme decidiu o STF ao editar a Súmula Vinculante 9:
“O disposto no artigo 127 da Lei 7.210/1984 (Lei de Execução Penal) foi recebido pela ordem constitucional vigente, e não se lhe aplica o limite temporal previsto no caput do artigo 58.”
O que isso significava? Simples: a perda era total. Não importava se o preso havia remido 500 dias — bastava uma falta grave e ele zerava o contador.
A súmula também afastou a aplicação do artigo 58, caput, da LEP, que limita sanções disciplinares (como isolamento) a 30 dias. Ou seja, enquanto outras punições tinham teto, a perda dos dias remidos era ilimitada.
Esse entendimento se baseava na tese de que os dias remidos não constituíam direito adquirido, mas sim expectativa de direito condicionada à boa conduta. Logo, qualquer falta grave quebraria essa condição e autorizaria a perda integral.
A virada legislativa de 2011: a Lei 12.433 e o limite de 1/3
Em 2011, veio a mudança. A Lei 12.433 alterou o artigo 127 da LEP e trouxe nova redação:
"Art. 127. Em caso de falta grave, o juiz poderá revogar até 1/3 (um terço) do tempo remido, observado o disposto no art. 57, recomeçando a contagem a partir da data da infração disciplinar."
Essa mudança trouxe três novidades fundamentais:
- Perda proporcional: não mais integral, mas limitada a 1/3 do total remido;
- Discricionariedade judicial: o juiz poderá revogar, e não mais “deve” — há margem de decisão conforme a gravidade da falta;
- Observância do devido processo: menção ao artigo 57, que exige procedimento administrativo disciplinar (PAD) prévio.
A reforma também acrescentou o artigo 128 à LEP:
"Art. 128. O tempo remido será computado como pena cumprida, para todos os efeitos."
Esse dispositivo reforçou a natureza jurídica da remição: uma vez consolidado, o tempo remido integra o cumprimento da pena e deve ser tratado como tal. Isso significa que a perda desse tempo não pode ser arbitrária ou desproporcional.
O conflito normativo estava instaurado
A partir de 2011, o Brasil passou a conviver com uma lei que dizia “no máximo 1/3” e uma súmula vinculante que dizia “perda integral”. Juízes de execução penal se viram diante de um impasse: a súmula vinculante tem força obrigatória (CF, art. 103-A), mas a lei posterior também.
Alguns aplicavam a lei. Outros, a súmula. A insegurança jurídica era evidente.
As tentativas de revisão: PSV 60 e PSV 64
Diante da contradição, surgiram duas propostas de revisão da SV 9:
- PSV 60: apresentada pelo Defensor Público-Geral Federal, pedia o cancelamento puro e simples da súmula, por superação legislativa;
- PSV 64: proposta pelo ministro aposentado Cezar Peluso, sugeria a revisão da redação, mantendo a constitucionalidade da perda, mas adequando o enunciado à nova realidade legislativa.
Ambas foram sobrestadas até o julgamento do RE 1.116.485, que tinha repercussão geral reconhecida (Tema 477).
O julgamento do Tema 477: a tese de repercussão geral
Em março de 2023, o STF julgou o RE 1.116.485, sob relatoria do ministro Luiz Fux. O caso envolvia um preso que teve dias remidos perdidos integralmente com base na redação antiga da LEP e na SV 9, mesmo após a vigência da Lei 12.433/2011.

O ministro Fux, em voto que foi seguido por unanimidade, destacou que o ponto central da discussão não era discutir novamente a constitucionalidade da perda de dias remidos, mas sim definir o que fazer com uma súmula vinculante quando a lei que lhe deu origem é alterada.
Segundo Fux, a alteração legislativa de 2011 não representou uma “superação legislativa” da SV 9, pois a súmula nunca pretendeu fixar o quantum da perda (se total ou parcial), mas apenas afirmar que:
- A perda de dias remidos por falta grave foi recepcionada pela Constituição de 1988;
- Não há direito adquirido aos dias remidos.
Portanto, a Lei 12.433/2011 não contrariou a essência da súmula — apenas regulamentou de forma mais detalhada e proporcional a sanção. Mesmo assim, a mudança legislativa exigia a revisão ou cancelamento do enunciado para evitar confusões interpretativas.
O STF fixou a seguinte tese de repercussão geral:
1. A revogação ou modificação do ato normativo em que se fundou a edição de enunciado de súmula vinculante acarreta, em regra, a necessidade de sua revisão ou cancelamento pelo Supremo Tribunal Federal, conforme o caso.
2. É constitucional a previsão legislativa de perda dos dias remidos pelo condenado que comete falta grave no curso da execução penal.
Essa decisão foi um marco. Ela estabeleceu um critério objetivo para saber quando uma súmula vinculante deve ser revista: sempre que houver mudança legislativa substancial no ato normativo que lhe deu base.
Setembro de 2025: o cancelamento definitivo da SV 9
Finalmente, em sessão virtual encerrada em 25 de setembro de 2025, o plenário do STF, sob a presidência do ministro Luís Roberto Barroso, cancelou a Súmula Vinculante 9.
A decisão foi tomada no âmbito da PSV 60 (a proposta do Defensor Público-Geral Federal), sendo a PSV 64 rejeitada. O cancelamento foi unânime.
A fundamentação foi direta: a SV 9 perdeu sua razão de ser com a nova redação do artigo 127 da LEP. Manter o enunciado em vigor geraria confusão e conflito normativo desnecessário.
Com o cancelamento, fica consolidado o seguinte cenário:
- A perda de dias remidos por falta grave continua constitucional (tese 2 do Tema 477);
- O limite máximo de perda é de 1/3 do tempo remido (art. 127, LEP);
- A decisão cabe ao juiz, que deve motivar e observar o contraditório (art. 57, LEP);
- A perda não é automática, devendo ser proporcional à gravidade da falta.
Conexão com concursos: como esse tema pode cair
Esse assunto é altamente cobrado em provas de Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e Delegado, especialmente em questões sobre Execução penal; Remição de pena; Controle de constitucionalidade; Súmula vinculante e sua dinâmica com a legislação.
Questão simulada (estilo FCC/CESPE)
Enunciado:
João, condenado a 12 anos de reclusão em regime fechado, trabalhou durante 3 anos na marcenaria do presídio, remindo 1.080 dias de pena. Em determinado momento, foi flagrado participando de rebelião, fato que gerou a instauração de procedimento administrativo disciplinar (PAD). Ao final do PAD, foi reconhecida a prática de falta grave. O juiz da execução penal, ao prolatar sentença, determinou a perda de 360 dias remidos (1/3 do total). A defesa recorreu, alegando que, com base na Súmula Vinculante 9, a perda deveria ser integral, ou nenhuma.
Com base na legislação vigente, na jurisprudência do STF e na tese do Tema 477, assinale a alternativa correta:
(A) A decisão do juiz está incorreta, pois a Súmula Vinculante 9 ainda está em vigor e determina a perda integral dos dias remidos.
(B) A decisão está correta, pois a Súmula Vinculante 9 foi cancelada em 2025, prevalecendo a redação do art. 127 da LEP, que limita a perda a 1/3 do tempo remido.
(C) A decisão está incorreta, pois a perda de dias remidos, ainda que parcial, ofende o princípio do direito adquirido, conforme entendimento sumulado do STF.
(D) A decisão está correta, mas apenas porque o juiz poderia ter aplicado a perda integral com base na SV 9, optando pela medida mais branda.
(E) A decisão está incorreta, pois a Lei 12.433/2011 foi declarada inconstitucional pelo STF no julgamento do Tema 477.
Gabarito: B
Explicação:
(A) Incorreta. A SV 9 foi cancelada em setembro de 2025, não estando mais em vigor.
(B) Correta. Com o cancelamento da SV 9, prevalece a redação atual do art. 127 da LEP, que permite ao juiz revogar até 1/3 do tempo remido em caso de falta grave. A decisão do magistrado está, portanto, em conformidade com a lei e a jurisprudência atual.
(C) Incorreta. O STF, no Tema 477, reafirmou que não há direito adquirido aos dias remidos, pois a remição está condicionada à boa conduta. A perda proporcional é constitucional.
(D) Incorreta. O juiz não poderia aplicar a SV 9, que foi cancelada. Além disso, a lei atual limita a perda a 1/3, não permitindo a perda integral.
(E) Incorreta. A Lei 12.433/2011 foi considerada constitucional pelo STF (tese 2 do Tema 477). O que houve foi a adequação da súmula à nova legislação, e não o contrário.
Conclusão estratégica: o que você precisa memorizar
A perda não é automática: exige PAD, contraditório e decisão judicial motivada.
A Súmula Vinculante 9 foi cancelada em 2025.
A perda de dias remidos por falta grave é constitucional, mas limitada a 1/3 (art. 127, LEP).
O STF fixou, no Tema 477, que mudanças legislativas no ato normativo que fundamentou uma SV exigem sua revisão ou cancelamento.
Não há direito adquirido aos dias remidos — eles dependem de boa conduta.
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