STJ define regras para identificação de usuários de internet

STJ define regras para identificação de usuários de internet

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Decisão do STJ

​A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgando o REsp 2.170.872, definiu que um provedor de conexão de internet tem a obrigação de identificar o usuário de seus serviços apenas com as informações do número IP e do período aproximado em que ocorreu o ato supostamente ilícito, sem a necessidade de fornecimento prévio de dados relativos à porta lógica utilizada.

Porta lógica

“Porta lógica” ou “Porta de rede” é um número (geralmente um valor inteiro entre 0 e 65535) que, juntamente com o endereço IP, identifica uma aplicação ou processo específico que está a comunicar numa rede.

A porta lógica permite diferenciar as várias comunicações que podem estar a ocorrer simultaneamente a partir do mesmo endereço IP. Ou seja, enquanto o endereço IP identifica um dispositivo numa rede (ex: 192.168.1.1), a porta lógica identifica uma aplicação ou processo específico que está a usar a rede (ex: 80 para HTTP).

A porta lógica é essencial para que as comunicações na rede funcionem corretamente, permitindo identificar o destino e a origem de cada fluxo de dados.

Assim, a porta lógica possibilita:

Individualização: identificar cada aplicação ou processo, mesmo que vários estejam a utilizar o mesmo endereço IP.

Direcionamento: enviar dados para a aplicação correta num dispositivo, utilizando o endereço IP e a porta específica.

Mas como esse caso chegou ao STJ? Vejamos.

O caso

Uma empresa ajuizou ação para obrigar a empresa de telefonia a fornecer os dados cadastrais do indivíduo que teria enviado mensagens com conteúdo difamatório, pelo e-mail corporativo, para clientes e colaboradores.

O juízo de primeiro grau condenou a operadora a fornecer os dados do usuário e, para tanto, indicou o endereço IP utilizado e um intervalo de dez minutos, dentro do qual o e-mail difamatório teria sido enviado.

O tribunal de segunda instância manteve a decisão.

A companhia, não satisfeita, interpôs recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça. Ela sustentou que, para o fornecimento dos dados cadastrais do usuário, além de ser indispensável a indicação prévia da porta lógica relacionada ao IP pelo provedor de aplicação, seria necessário informar a data e o horário exatos da conexão.

A relatora do REsp, ministra Nancy Andrighi, destacou que não é necessário que o provedor de aplicação informe previamente a porta lógica para que seja possível a disponibilização dos dados de identificação do usuário por parte do provedor de conexão, já que a jurisprudência da corte atribui a obrigação de guardar e fornecer dados relativos à porta lógica de origem não apenas aos provedores de aplicação, mas também aos provedores de conexão.

Não há necessidade de prévia informação por parte do provedor de aplicação sobre a porta lógica para que o provedor de conexão disponibilize os demais dados de identificação do usuário, pois também esse segundo agente está obrigado a armazenar e fornecer o IP (e, portanto, a porta lógica).

Nancy, salientando que a porta lógica integra os próprios registros de conexão, foi direta:

“A recorrente, enquanto provedora de conexão, deve ter condições tecnológicas de identificar o usuário, pois está obrigada a guardar e disponibilizar os dados de conexão, incluindo o IP e, portanto, a porta lógica”.

Esse também foi o entendimento manifestado no REsp 1.784.156.

Provedor de conexão x provedor de aplicação

Você sabe a diferença entre provedor de conexão e provedor de aplicação? Vamos lá!

PROVEDOR DE CONEXÃO (ACESSO)PROVEDOR DE APLICAÇÃO
Permite que o usuário tenha acesso à internet. São os responsáveis por fornecer a infraestrutura (fibra óptica, cabos etc.) e a conexão, como operadoras de telefonia móvel e provedores de internet por cabo.É a empresa que disponibiliza as aplicações (software, plataformas, serviços) que utilizamos na internet, como redes sociais, plataformas de e-mail, serviço de streaming e e-commerce.
Vivo, Claro, NetWhatsApp, Instagram, Gmail, Netflix

Marco Civil da Internet

O Marco Civil da Internet (MCI) foi estabelecido pela Lei nº 12.965 de 2014, que define os princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil.

A sua principal função é regular a atuação de provedores de conexão e de aplicações, bem como a proteção dos direitos dos usuários na rede.

Dentre os princípios que regem a disciplina do uso da internet no Brasil podemos citar:

  • A garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento;
  • A proteção da privacidade;
  • A proteção dos dados pessoais;
  • A preservação e garantia da neutralidade de rede;
  • A preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas;
  • A responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades;
  • A preservação da natureza participativa da rede;
  • A liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet.

Guarda e fornecimento dos dados

A previsão legal de guarda e fornecimento dos dados de acesso de conexão e aplicações foi distribuída pela Lei n. 12.965/2014 entre os provedores de conexão e os provedores de aplicações, em observância aos direitos à intimidade e à privacidade.

Cabe aos provedores de aplicações a manutenção dos registros dos dados de acesso à aplicação, entre os quais se inclui o endereço IP, nos termos dos arts. 15 combinado com o art. 5º, VIII, da Lei n. 12.965/2014, os quais poderão vir a ser fornecidos por meio de ordem judicial.

Registros de acesso a aplicações de internet: o conjunto de informações referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado endereço IP.

Lei nº 12.965/2014

Art. 15. O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento.

A obrigatoriedade de fornecimento dos dados de acesso decorre da necessidade de balanceamento entre o direito à privacidade e o direito de terceiros, cujas esferas jurídicas tenham sido aviltadas, à identificação do autor da conduta ilícita.

Preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem

Importante destacar que a guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.

E o provedor responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar os registros de conexão e de acesso a aplicações de internet, de forma autônoma ou associados a dados pessoais ou a outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, mediante ordem judicial, não havendo necessidade de especificação do minuto exato de ocorrência do ilícito.

É do interesse de quem procura o Poder Judiciário ser o mais específico possível em seu pedido, para facilitar a busca pela identidade do infrator. Porém, a informação precisa do horário não é obrigatória.

Uma vez identificada a porta lógica remetente do e-mail difamatório, por exemplo, deve-se fornecer apenas os dados referentes a esse usuário, preservando-se a proteção de todos os demais usuários que dividem o mesmo IP, sob pena de violação à intimidade e à vida privada.

Tramitações no STF

Tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) dois temas de repercussão geral relacionados ao assunto:

Identificação de usuários
Identificação de usuários
Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet)

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

A AGU defende que há a possibilidade de as plataformas digitais serem responsabilizadas, independentemente de ordem judicial prévia para a remoção do conteúdo, considerando o dever de precaução que devem ter as empresas, por iniciativa própria ou por provocação do interessado.

Esse dever de precaução inerente às plataformas digitais aplica-se quando houver a identificação de violações a direitos muito caros à sociedade, tais como os direitos da criança e adolescente, direitos referentes à integridade das eleições, defesa do consumidor, além da prática de ilícitos penais e propagação de fake news.

Em trecho de documento enviado ao Supremo Tribunal Federal, a AGU destacou:

“Não é razoável que empresas que lucram com a disseminação de desinformação permaneçam isentas de responsabilidade legal no que tange à moderação de conteúdo. Essas plataformas desempenham um papel crucial na veiculação de informações corretas e na proteção da sociedade contra falsidades prejudiciais. A ausência de uma obrigação de diligência nesse processo permite que a desinformação se propague de forma descontrolada, comprometendo a confiança pública e causando danos consideráveis”.

Portanto, a discussão é espinhosa: liberdade de expressão, violação a direitos fundamentais, censura e responsabilidade no ambiente digital. Mas não podemos nos esquivar em achar uma solução que, sem impor qualquer tipo de censura ou restrição à liberdade de expressão, garanta, da forma mais ampla possível, os direitos fundamentais que perfazem a própria dignidade da pessoa humana.

Tema extremamente pertinente para provas de direito constitucional, direito civil e direito processual civil.


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