Introdução
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em recente julgado divulgado no Informativo 820, trouxe uma nova interpretação sobre o crime de estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A do Código Penal.
Esta decisão, proferida pela Sexta Turma em um processo que corre em segredo de justiça, representa uma significativa mudança na aplicação da lei penal em casos específicos, levando em consideração as circunstâncias fáticas e o contexto social envolvido.
A Lei nº 12.015/2009 acrescentou o art. 217-A ao Código Penal, criando um novo delito, chamado de “estupro de vulnerável”:
Estupro de vulnerável Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
O entendimento tradicional
Tradicionalmente, o STJ adotava uma posição rígida em relação ao crime de estupro de vulnerável.
Posteriormente, esta postura foi cristalizada no julgamento do Recurso Especial nº 1.480.881/PI, que originou o Tema 918, e na posterior edição da Súmula 593. Segundo esse entendimento:
A prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável.
Ademais, o consentimento da vítima, sua experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre agente e vítima são irrelevantes para a caracterização do delito.
A vulnerabilidade da vítima menor de 14 anos é absoluta, não admitindo prova em contrário.
Este posicionamento baseava-se na interpretação literal do artigo 217-A do Código Penal e na necessidade de proteger o saudável desenvolvimento físico, psíquico e emocional de crianças e adolescentes.
A nova interpretação do STJ
O julgado em análise, entretanto, traz uma nova perspectiva sobre o tema.
A Sexta Turma do STJ, por unanimidade, decidiu pela possibilidade de reconhecimento da atipicidade da conduta em um caso específico de estupro de vulnerável.
Os principais pontos desta decisão são:
- Reconhecimento da atipicidade material da conduta em circunstâncias excepcionais.
- Consideração do contexto social e familiar em que ocorreu a relação.
- Avaliação da efetiva vulneração do bem jurídico tutelado pela norma penal.
Análise do caso concreto
No caso julgado, foram consideradas as seguintes circunstâncias:
- Consentimento da família da vítima, que inclusive abrigou o casal por um período.
- Manutenção do relacionamento até os dias atuais.
- Nascimento de um filho fruto da relação.
- Ausência de elementos concretos que indicassem lesão à dignidade sexual ou ao desenvolvimento da vítima.
Dessa forma, o STJ entendeu que, neste contexto específico, o bem jurídico tutelado pela norma penal não foi efetivamente vulnerado.
A Corte ressaltou que não se trata de mitigar o Tema 918, mas de reconhecer que situações demasiadamente complexas podem escapar da diretriz estabelecida no julgamento do REsp 1.480.881/PI.
Outros casos em que houve exceção
Aliás, esta não é a primeira vez que o STJ faz uma distinção em relação ao entendimento consolidado sobre estupro de vulnerável.
No AgRg no AREsp 2.389.611-MG, julgado em 12/3/2024, a Quinta Turma do STJ também reconheceu a atipicidade da conduta em um caso envolvendo um jovem de 20 anos e uma adolescente de 12 anos, considerando o erro de proibição e a necessidade de proteção integral à criança nascida da relação:
O STJ, no julgamento do Tema 918 e na Súmula 593, fixou o entendimento de que o crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.
A conduta de estupro de vulnerável imputada a um jovem de 20 anos, trabalhador rural e com pouca escolaridade, que se relacionou com uma adolescente de 12 anos, que havia sido, em um primeiro momento, aceito pela família da adolescente, sobrevindo uma filha e a efetiva constituição de núcleo familiar, apesar de não estarem mais juntos como casal, embora formalmente típica, não constitui infração penal, tendo em vista o reconhecimento da ausência de culpabilidade por erro de proibição, bem como pelo fato de que se deve garantir proteção integral à criança que nasceu dessa relação.
STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 2.389.611-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 12/3/2024 (Info 807).
Implicações da Decisão
Pois bem, esta nova interpretação do STJ tem importantes implicações:
- Reconhece a complexidade de certas situações sociais que não se enquadram perfeitamente na letra fria da lei.
- Abre espaço para uma análise mais contextualizada dos casos de estupro de vulnerável.
- Ressalta a importância de se considerar o efetivo dano ao bem jurídico tutelado, além da mera subsunção formal do fato à norma.
Como o tema já caiu em concursos
FGV - 2023 - PM-SP - Cabo PM Maria, menor de 13 anos de idade, manteve, consensualmente, relação sexual com seu namorado, José, de 18 anos de idade. Nesse caso, de acordo com o Código Penal, é correto afirmar que Alternativas A)o consentimento de Maria exclui a ilicitude da conduta de José e, portanto, não há de se falar em crime de estupro de vulnerável. B)a conduta de José somente seria qualificada como crime de estupro de vulnerável caso Maria não tivesse mantido relações sexuais prévias com outra pessoa antes da relação sexual com José. C)José cometeu estupro de vulnerável, independentemente do consentimento da vítima ou de Maria já ter tido relações sexuais prévias com outra pessoa. D)o crime de estupro de vulnerável somente ocorre quando há violência ou grave ameaça contra a vítima. Gab: C.
Conclusão
Portanto, a decisão do STJ representa uma evolução na interpretação do crime de estupro de vulnerável, reconhecendo que, em situações excepcionais, a aplicação rígida da lei penal pode gerar mais prejuízos do que benefícios.
Esta abordagem mais flexível e contextualizada não significa, contudo, um enfraquecimento da proteção aos menores, mas sim uma busca por soluções mais justas e adequadas à complexidade das relações humanas.
É importante ressaltar que esta decisão não deve ser interpretada como uma regra geral, mas como uma exceção aplicável apenas em casos muito específicos, onde as circunstâncias fáticas claramente demonstrem a ausência de vulneração ao bem jurídico tutelado pela norma penal.
Este julgado certamente alimentará debates futuros sobre os limites da interpretação judicial em casos de estupro de vulnerável e sobre a necessidade de uma legislação mais específica para abordar essas situações complexas, sempre à luz dos princípios constitucionais, especialmente o da dignidade da pessoa humana e o da proteção integral à criança e ao adolescente.
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