STF reconhece Convenção da Haia de 1980 como compatível com a Constituição e amplia proteção em casos de violência doméstica.
* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Decisão do STF
O Supremo Tribunal Federal reconheceu, por unanimidade, a compatibilidade da Convenção da Haia de 1980 com a Constituição Federal e afastou a possibilidade do retorno imediato de crianças e adolescentes ao exterior em casos de indícios de violência doméstica.
O entendimento foi exarado no bojo de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI’s 4245 e 7686).
As ADI’s questionam a compatibilidade da Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis da Subtração Internacional de Crianças, firmada em 1980, com a Constituição de 1988.
A Convenção da Haia de 1980, ratificada por mais de 100 países, estabelece que, quando uma criança é levada pelo seu genitor (mãe ou pai) para outro país sem autorização do outro genitor, ou é mantida fora além do prazo acordado, deve ser devolvida rapidamente ao país de residência habitual.
O grande objetivo é proteger a criança dos efeitos nocivos da retirada do seu ambiente social e do convívio com o genitor que ficou no país de origem.
ADI 4.245 🡪 Alegação de que 11 dispositivos da Convenção estariam sendo interpretados pelos tribunais brasileiros de modo a permitir retornos automáticos das crianças ao país de origem, sem análise suficiente do caso concreto, o que violaria direitos constitucionais como o contraditório, a ampla defesa e a proteção integral da criança.
ADI 7.686 🡪 Questiona a interpretação do artigo 13(1)(b) da Convenção, que traz exceção que permite negar o retorno da criança ao país de origem quando houver risco grave de que, no retorno, ela fique exposta a perigos físicos, psicológicos ou a uma situação intolerável. A ação pede que essa exceção seja interpretada de forma a incluir situações de violência doméstica, inclusive contra a mãe, ainda que a criança não seja vítima direta da violência.
Convenção de Haia
Artigo 13
1. Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o retorno da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se oponha a seu retorno provar:
a) que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de guarda na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou
b) que existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável.
(Convenção de Haia)
O que estava sendo discutido nessas ações era saber se os dispositivos questionados da Convenção da Haia de 1980 são compatíveis com a Constituição de 1988, em especial quanto à possibilidade de reconhecer que a violência doméstica contra a mãe, mesmo que a criança não tenha sofrido agressões diretas, pode configurar risco grave à criança, justificando a negativa de seu retorno imediato ao país de residência habitual.
A Convenção de Haia de 1980 foi internalizada no ordenamento jurídico pátrio através do Decreto nº 3.413/2000, e tem 2 grande objetivos, a saber:
a) assegurar o retorno imediato de crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente;
b) fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados Contratantes os direitos de guarda e de visita existentes num Estado Contratante.
A norma internacional, portanto, visa proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de mudança de domicílio ou de retenção ilícitas e estabelecer procedimentos que garantam o retorno imediato da criança ao Estado de sua residência habitual, bem como assegurar a proteção do direito de visita.
Fundamentos da decisão do STF
Compatibilidade da Convenção de Haia com a Constituição Federal: a Convenção da Haia de 1980 sobre o sequestro internacional de crianças por um de seus genitores é compatível com a Constituição brasileira. Ela concretiza normas constitucionais de proteção à infância (art. 227, CF) e de proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF).
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. ... Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: ... III - a dignidade da pessoa humana; CF/88
Desafios na interpretação e aplicação da Convenção da Haia no Brasil: percebemos dois grandes problemas quanto a interpretação e aplicação dessa importante norma internacional, a saber:
- A excessiva demora do Judiciário brasileiro em decidir se a criança deve ou não retornar ao país de origem; e
- A falta de critérios claros para aplicar a exceção do art. 13(1)(b) em casos de violência doméstica, especialmente quando tal violência é praticada apenas contra a mãe, e não diretamente contra a criança.
Por isso, é necessário aperfeiçoar a aplicação da Convenção no Brasil, para garantir maior rapidez nos processos e aumentar a proteção às crianças.
Resposta aos desafios (medidas estruturantes): para enfrentar a morosidade, é necessário adotar medidas estruturais e institucionais que garantam maior celeridade e efetividade aos processos que tramitam no Brasil.
O objetivo é assegurar que uma decisão definitiva, seja pelo retorno ou não da criança, ocorra em até um ano.
São exemplos de medidas determinadas:
- a elaboração e aprovação, pelo CNJ, de nova resolução para tornar mais rápida a tramitação dos processos;
- a concentração da competência para os casos da Convenção na capital, com especialização de varas federais;
- a instituição de núcleos de apoio nos tribunais para incentivar a conciliação, melhorar a qualidade das perícias e apoiar os juízes;
- a elaboração de protocolos para que as mulheres e crianças vítimas de violência doméstica no exterior possam ser atendidas nos consulados
Interpretação da exceção do art. 13 (1) (b), da Convenção de Haia: a exceção de risco grave para a criança, que permite o não retorno da criança ao país de origem, deve ser aplicada também quando houver indícios concretos de que a mãe foi vítima de violência doméstica, mesmo que a criança não tenha sofrido agressões diretas.
Isso porque a exposição da mãe a um ciclo de violência também produz efeitos negativos sobre o bem-estar da criança. Para tanto, não bastam meras alegações: devem existir fatos e elementos objetivos capazes de demonstrar a ocorrência da violência doméstica.
Conclusão
E qual foi a conclusão a que chegou a Suprema Corte? Vejamos.
O Plenário reconheceu a compatibilidade da Convenção da Haia de 1980 com a Constituição Federal, já que a aplicação da Convenção no Brasil deve levar em conta o melhor interesse da criança e a perspectiva de gênero.
Como consequência, o Supremo conferiu interpretação conforme à Constituição ao art. 13 (1) (b), para reconhecer que a existência de indícios concretos de violência doméstica contra a mãe deve ser enquadrada como hipótese de risco grave à criança, o que pode justificar uma decisão de não retorno ao país de origem.
Como complemento, o Tribunal determinou a adoção de medidas institucionais e processuais para garantir maior rapidez e efetividade aos processos que tratam de pedidos de restituição internacional de crianças, com o objetivo de que as decisões finais desses casos não demorem mais do que um ano.
Ao final, foi fixada a seguinte tese:
TESE FIXADA
1. A Convenção da Haia de 1980 sobre os aspectos civis da subtração internacional de crianças é compatível com a Constituição Federal, possuindo status supralegal no ordenamento jurídico brasileiro, por sua natureza de tratado internacional de proteção de direitos da criança.
2. A aplicação da Convenção no Brasil, à luz do princípio do melhor interesse da criança (art. 227, CF), exige a adoção de medidas estruturais e procedimentais para garantir a tramitação célere e eficaz das ações sobre restituição internacional de crianças.
3. A exceção de risco grave à criança, prevista no art. 13 (1) (b) da Convenção da Haia de 1980, deve ser interpretada de forma compatível com o princípio do melhor interesse da criança (art. 227, CF) e com perspectiva de gênero, de modo a admitir sua aplicação quando houver indícios objetivos e concretos de violência doméstica, ainda que a criança não seja vítima direta.
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