* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Seita da Cacau Show?
O momento é solene. Todos, de branco, são convidados a entrarem em uma sala escura, iluminada apenas por velas, onde encontram Alê Costa (fundador e CEO da Cacau Show) repetindo cânticos.
Dentro da sala escura, todos acompanham o líder repetindo as palavras, como se fosse uma prece, enquanto caminham, atrás dele, em círculos.
A participação não é obrigatória, mas, assim como no caso dos franqueados, quem questiona ou não demonstra entusiasmo com as regras passa a ser perseguido.
Essa é a acusação que acaba de estourar na mídia contra a Cacau Show, o que foi suficiente para popularizar a expressão “Seita da Cacau Show”.
Mas esse ritual parece ser apenas a ponta do iceberg diante da enxurrada de acusações feitas por funcionários e franqueados da marca.
Outras irregularidades
Dentre as várias irregularidades apontadas, destacam-se:
- Gordofobia, “com humilhações públicas e discriminação estética que afetam a autoestima e saúde mental das vítimas”;
- Homofobia, “com relatos de perseguição e piadas ofensivas direcionadas a pessoas LGBTQIA+”;
- Assédio moral e sexual, “promovido por superiores hierárquicos e, em muitos casos, ignorado ou acobertado pela direção da empresa”;
- Proibição de que funcionárias engravidem;
- Perseguição de quem denuncia os abusos ou questiona as normas da empresa;
- Disponibilização de produtos encalhados, ou próximo da data de vencimento;
- Cobrança de taxas indevidas; e
- Retirada de crédito.
Assim, em um dos processos abertos contra a Cacau Show, o juiz Julio Roberto dos Reis foi direto:
“É inequívoco que a política interna da demandada [Cacau Show] afronta o princípio constitucional da liberdade profissional, porquanto a restrição de crédito para fornecimento exclusivo de produtos, instrumento essencial da atividade econômica, sob a alegação de existência de litígios judiciais entre franqueado e franqueadora, não está amparada em motivo idôneo e constitui mero revanchismo, uso arbitrário das próprias razões por via transversa, cuja finalidade não é outra senão inibir o legítimo direito constitucional de ação dos demandantes [franqueados], o que também viola o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição”.
Doce amargura
Em meio a tantas reclamações, uma franqueada criou um perfil em uma rede social para compartilhar as queixas.
A página foi batizada de “Doce Amargura”, e é de responsabilidade de uma franqueada, que afirma já ter recebido uma visita do vice-presidente da Cacau Show, Túlio Freitas, que a teria perguntado o que era preciso para que ela parasse com a iniciativa.
Posteriormente, a Cacau Show se defendeu em um comunicado afirmando que:
“não reconhece as alegações apresentadas pelo perfil Doce Amargura em redes sociais…Somos uma marca construída com base na confiança mútua, no respeito e na conexão genuína com nossos franqueados… Cada experiência é única e pessoal. Prezamos por relações próximas, transparentes e sempre pautadas pelo diálogo — pilares que sustentam nosso crescimento conjunto e tornam possível a construção de uma jornada empreendedora repleta de conquistas e momentos especiais.”
Após negar perseguição à criadora do perfil “Doce Amargura”, a Cacau Show acabou fechando a loja da franquiada.
“Considerando que a tentativa de venda da loja restou frustrada e considerando também que não temos mais interesse na continuidade da relação estabelecida no contrato de franquia, nos termos da cláusula 6.4, no prazo de 30 (trinta) dias contados desta data, o contrato estará rescindido”.
Finalmente, o Ministério Público do Trabalho em São Paulo abriu inquérito para investigar a Cacau Show.
Análise jurídica – assédio moral
No site do Conselho Nacional de Justiça, a definição de assédio moral é a seguinte:

Importante pontuar que, para a configuração do assédio moral, é necessária que a conduta seja reiterada e prolongada no tempo, com a intenção de desestabilizar emocionalmente a vítima. Episódios isolados podem até caracterizar dano moral, mas não necessariamente configuram assédio moral.
Práticas e consequências
Exemplos de práticas que podem caracterizar assédio moral:
- Contestar ou criticar constantemente o trabalho da pessoa;
- Sobrecarregá-la com novas tarefas ou deixá-la propositalmente no ócio, provocando a sensação de inutilidade e incompetência;
- Ignorar deliberadamente a presença da vítima;
- Divulgar boatos ofensivos sobre a sua pessoa;
- Dirigir-se a ela aos gritos;
- Ameaçar sua integridade física.
Consequências que o assédio moral pode trazer:
- Diminuição da autoestima do trabalhador;
- Desmotivação;
- Produtividade reduzida;
- Rotatividade de pessoal;
- Aumento de erros e acidentes;
- Absenteísmo (falta de pontualidade e assiduidade do trabalhador);
- Licenças médicas frequentes;
- Exposição negativa do nome do órgão ou instituição.
Portanto, manter um ambiente de trabalho com cobranças excessivas, obrigações desproporcionais e até mesmo humilhações disseminadas pode sim, em tese, ser considerada uma prática caracterizadora do assédio moral, e, em consequência, gerar direito a indenização.
Os direitos fundamentais do trabalhador estão albergados tanto na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose de Costa Rica) quanto na Convenção 111 da OIT, ambas ratificadas pelo Brasil. Isso sem falar na própria Constituição.
O empregador tem o dever de garantir um ambiente de trabalho digno, salubre, seguro e não discriminatório, o que inclui o respeito à liberdade religiosa e de crença.
Nesse sentido, o aumento da confiança da sociedade nas instituições, como o próprio Estado, os Poderes da República, as universidades, ou mesmo em relação às empresas empregadoras, passa necessariamente pela promoção e incentivo de uma cultura de integridade, baseada na ética e no desenvolvimento de uma organização fundamentada em valores como respeito, honestidade e transparência.
Rescisão indireta
O assédio moral pode ser considerado justa causa para a rescisão indireta do contrato de trabalho, ou seja, o trabalhador que sofre assédio moral no trabalho pode pedir demissão com direito a receber todas as verbas, como se estivesse sido demitido, sem prejuízo da indenização pelo dano sofrido.
A chamada rescisão indireta do contrato de trabalho pode ocorrer quando o empregador comete uma falta grave, que torne insustentável a continuidade da relação de emprego.
A vítima pode, por meio de reclamação trabalhista, buscar a rescisão indireta do contrato de trabalho, a indenização por danos morais e a indenização por danos materiais.
Indenização por danos morais
A indenização por danos morais é a reparação pelo sofrimento psicológico causado pela conduta abusiva do agressor. Logo, a indenização por danos materiais necessita de prova específica do gasto ou da perda financeira decorrentes do assédio.
Quanto a fixação do valor da indenização, devem ser observados cinco parâmetros norteadores, a saber:
1) caráter pedagógico e punitivo: a indenização não pode ser ínfima a ponto de fazer com que o agressor torne a praticar os mesmos atos, simplesmente porque não acarreta significativo desfalque em seu patrimônio;
2) proporcionalidade: a indenização não pode ser tamanha que permita ao ofendido enriquecer-se sem causa, uma vez que também não se estaria fazendo justiça em seu sentido mais amplo;
3) gravidade da ofensa: deve-se observar a espécie da ofensa e o efetivo dano sofrido pela vítima, com a hipotética repercussão em sua vida particular e profissional (art. 944 e § único do art. 953, ambos do CC);
4) nível econômico do ofendido: deve-se observar a condição financeira do ofendido para saber a real repercussão da reparação;
5) porte econômico do ofensor: saber a real capacidade de pagamento do ofensor contribui para uma justa indenização;
O artigo 483, da CLT, enumera as faltas graves do empregador que podem motivar a rescisão indireta. Entre elas estão o descumprimento de obrigações contratuais, atos lesivos à honra do empregado e sua submissão a perigo manifesto de mal considerável.
CLT
Art. 483 - O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando:
a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato;
b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo;
c) correr perigo manifesto de mal considerável;
d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato;
e) praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo da honra e boa fama;
f) o empregador ou seus prepostos ofenderem-no fisicamente, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;
g) o empregador reduzir o seu trabalho, sendo este por peça ou tarefa, de forma a afetar sensivelmente a importância dos salários.
Tema interessante, e que pode ser cobrado em provas de direito do trabalho, em especial nos concursos para magistratura do trabalho, ministério público do trabalho e auditor do trabalho. Portanto, muita atenção!
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