* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu
O Supremo Tribunal Federal acaba de declarar a inconstitucionalidade da revogação dos §§ 1º e 2º do art. 7º do Estatuto da Advocacia (lei 8.906/94), dispositivos que garantem prerrogativas essenciais ao exercício da profissão, como a imunidade profissional e o acesso aos autos de processos judiciais.
O julgamento se deu no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.231, e se deu de forma unânime.
Erro técnico
É importante entender como uma sequência de erros técnicos na tramitação do PL 5.284/20, convertido na lei 14.365/22, acabou redundando na revogação das prerrogativas dos advogados.
Os dispositivos do Estatuto da OAB erroneamente revogados foram:
§ 1º Não se aplica o disposto nos incisos XV e XVI [direito de retirada e vista de autos judiciais]:
1) aos processos sob regime de segredo de justiça;
2) quando existirem nos autos documentos originais de difícil restauração ou ocorrer circunstância relevante que justifique a permanência dos autos no cartório, secretaria ou repartição, reconhecida pela autoridade em despacho motivado, proferido de ofício, mediante representação ou a requerimento da parte interessada;
3) até o encerramento do processo, ao advogado que houver deixado de devolver os respectivos autos no prazo legal, e só o fizer depois de intimado.
§ 2º O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer.
Na prática, a revogação dos dispositivos retirou dos advogados o direito de vista e retirada dos autos, além da imunidade decorrente do exercício da profissão.
A alteração legislativa decorre de um erro técnico, já que o PL 5.248/20, que originou a norma, não previa nenhuma revogação votada e aprovada pelo Congresso Nacional ou pelo Executivo.
As mudanças propostas no Estatuto da Advocacia visavam atualizar a lei para melhor atender às novas exigências do mercado e reforçar as prerrogativas dos advogados, não para restringi-las.
Contudo, a redação final aprovada pela Câmara dos Deputados incluiu, erroneamente, a revogação desses dispositivos.
O presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, reconheceu o erro material na revogação e solicitou a republicação da lei, mas o governo Federal não tomou as medidas necessárias para corrigir o texto sancionado, prejudicando toda a classe dos advogados.
O relator da ADI, ministro Flávio Dino, apontou vários erros legislativos.
A proposta aprovada na Câmara dos Deputados não previa a revogação dos dispositivos e a mudança foi inserida equivocadamente na consolidação final do texto legal.
Nem a Câmara nem o Senado deliberaram efetivamente sobre a revogação, e tanto o Congresso quanto a Presidência da República e a Advocacia-Geral da União reconheceram o erro e pediram a correção legislativa.
Processo legislativo comprometido
O processo legislativo deve refletir a vontade democrática do Parlamento, e a supressão indevida de normas fundamentais, como as prerrogativas da advocacia, sem deliberação, configura vício formal de inconstitucionalidade.
Esse conjunto de falhas legislativas acabou comprometendo o devido processo legislativo e violou o princípio democrático.
A proposta legislativa teve por finalidade incluir disposições sobre atividade privativa de advogado, a fiscalização, a competência, as prerrogativas, as sociedades de advogados, o advogado associado, os honorários advocatícios e os limites de impedimentos ao exercício da advocacia e, dessa forma, promover um reforço das prerrogativas dos advogados.
A ideia do legislador, portanto, era de incluir novas prerrogativas no art. 7º, e não as extinguir.
Ocorre que, no momento da elaboração do Projeto Substitutivo, os dispositivos, que deveriam ser acrescentados ao art. 7º, foram equivocadamente numerados como §§1º e 2º, gerando o equívoco legislativo.
A inexistência de indicação de que os dispositivos aprovados seriam os novos parágrafos do art. 7º foi o primeiro erro procedimental no processo legislativo.
O segundo erro ocorreu na consolidação da redação final do texto pela Câmara dos Deputados, que deu interpretação – equivocada – ao texto aprovado no sentido de que os parágrafos então vigentes teriam sido revogados, embora isso não constasse expressamente no texto do Projeto Substitutivo.
Revogação não passou por deliberação
Já no Senado Federal, embora tenha sido referida no Parecer da CCJ, a revogação dos dispositivos em questão não foi objeto de análise de mérito por parte do relator, nem teve sua discussão retomada durante os debates havidos na Comissão.
A revogação dos §§1º e 2º, portanto, não foi objeto de deliberação ou de discussão entre os parlamentares, mas resultado de erros na elaboração da redação final.
O texto foi, com seus erros, enviado para apreciação pelo Senado Federal, nos termos do art. 65 da Constituição.
CF/88
Art. 65. O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar.
Parágrafo único. Sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora.
A LC nº 95/1998 dispõe que “A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas” (art. 9º).
No Projeto Substitutivo aprovado pela Câmara dos Deputados não havia menção expressa à revogação dos §§1º e 2º. A revogação não passou pela votação na Câmara dos Deputados e, portanto, não obedeceu ao devido processo legislativo.
Consequentemente, o então Presidente da República sancionou dispositivos que não foram objeto de deliberação parlamentar.
A Câmara dos Deputados, o Senado Federal e até mesmo o Poder Executivo reconhecem que a revogação dos §§1º e 2º do art. 7º da Lei nº 8.906/1994 não foi objeto de deliberação pelo Congresso Nacional. |
Pedido de correção

Após a sanção presidencial, o Deputado Lafayette de Andrada, ao verificar a ocorrência de erro material na lei, solicitou, de acordo com o artigo 199 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, a correção dos autógrafos enviados ao Senado Federal para as devidas providências de republicação pelo Poder Executivo.
O Presidente do Senado Federal enviou o Ofício à Secretaria-Geral da Presidência da República, comunicando o erro material dos primeiros autógrafos enviados à sanção presidencial e, com base no inciso III do art. 325 do Regimento Interno do Senado Federal, pediu a correção do erro legislativo mediante a exclusão da revogação dos §§1º e 2º do art. 7º da Lei nº 8.906/1994.
No entanto, mesmo comunicada de que tinha erro material, a Presidência da República não promoveu a correção do erro. Manteve-se a redação da Lei nº 14.365/2022, o que deu ensejo à ação direta por vício formal de inconstitucionalidade.
Conclusão
A fase da deliberação é a principal do processo legislativo. Nela e por ela o Legislativo estabelece as normas do ordenamento jurídico. No Estado Democrático de Direito, a lei é expressão da vontade parlamentar.
No caso ora comentado, verificou-se que o texto da Lei nº 14.365/2022, no ponto em que revoga os §§1º e 2º do art. 7º, não foi objeto de deliberação pelo Congresso e, portanto, não representa a vontade parlamentar, sendo suficiente para justificar a procedência da ADI.
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