Responsabilidades em queda de avião em São Paulo
Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Responsabilidades em queda de avião em São Paulo

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

O que aconteceu?

Um avião de pequeno porte caiu na Barra Funda, zona oeste da capital paulista. A aeronave transportava duas pessoas no momento do acidente, e ambas morreram carbonizadas no local. As vítimas são o piloto Gustavo Carneiro Medeiros e o copiloto, o advogado Márcio Carpena.

Segundo o Corpo de Bombeiros, mais sete pessoas ficaram feridas, duas delas de forma mais grave: um motoqueiro atingido por uma peça do avião, e uma senhora que estava no interior do ônibus atingido pela aeronave.

Responsabilidades

Houve o acionamento de diversas equipes de atendimento para prestar socorro imediato: defesa civil, SAMU, agentes de trânsito, corpo de bombeiros.

A aeronave, um modelo King Air F90, que partiu do Campo de Marte com destino à Porto Alegre, tentou pousar em plena avenida. Mas, ao tocar o solo, acabou batendo em um ônibus e pegou fogo.

Ainda é cedo para saber as possíveis causas do acidente fatal. Contudo, a Força Aérea Brasileira informa que investigadores já foram acionados para a coleta e a confirmação de dados, a preservação dos elementos, a verificação inicial de danos causados à aeronave, ou pela aeronave, e o levantamento de outras informações necessárias.

O que se sabe até agora é que a aeronave foi fabricada em 1981, e foi comprada pelo advogado Carpena, em dezembro de 2024.

Quem eram as vítimas fatais desse terrível acidente?

Márcio Louzada Carpena (copiloto)Gustavo Carneiro Medeiros (piloto)
Advogado, 49 anos, professor licenciado de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC) em Porto Alegre e palestrante motivacionalPiloto experiente, era formado em administração e ciências aeronáuticas pela PUC-RS, acumulava 3.819 horas de voo como copiloto do modelo Embraer 190, e 1.912 horas como comandante de ATR, aviões de transporte regional

Responsabilidades

A investigação do acidente, que será responsável por indicar as causas, se houve culpados, se houve falha do piloto, se houve crime, ficará a cargo do CENIPA e da Polícia Civil de São Paulo. Eventualmente a Polícia Federal também poderá atuar no caso.

CENIPA: é o órgão do Comando da Aeronáutica responsável pelo Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (SIPAER). As investigações têm embasamento no Anexo 13 à Convenção Internacional de Aviação Civil da ICAO – International Civil Aviation Organization, órgão de referência mundial, que normatiza as leis sobre aviação civil internacional.

POLÍCIA CIVIL DE SÃO PAULO: como o acidente deixou mortos e feridos, a investigação ficou a cargo do 23º Distrito Policial de Perdizes, que registrou o caso como homicídio e lesão corporal. A delegacia vai investigar se ocorreu negligência, imprudência ou imperícia como causa da tragédia.

Comunicado da Secretaria de Segurança Pública (SSP):

"O boletim de ocorrência foi registrado, inicialmente, como lesão corporal e homicídio, visto que houve morte em razão da negligência, imprudência ou imperícia. Equipes da Polícia Técnico-Científica fazem perícia e reconstituição da queda com scanner 3D para entendimento do ocorrido. Cabe ressaltar que a tipificação criminal pode ser alterada no decorrer da apuração, sem prejuízo às investigações".

POLÍCIA FEDERAL: A Polícia Federal possui competência para a apuração de eventuais crimes cometidos no contexto do desastre aéreo, haja vista a previsão do art. 109, IX, da CF:

CF/88

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

...

IX - os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar;

Portanto, a depender do rumo da investigação, o inquérito pode passar para o âmbito federal.

O Ministério Público do Trabalho (MPT) também pode abrir inquérito, haja vista que a lesão a direitos sociais indisponíveis ligados à segurança no meio ambiente de trabalho enseja a atuação do MPT no caso em questão, para verificar a extensão dos fatos denunciados, apurar as devidas responsabilidades e adotar medidas que contribuam para obstar novos acidentes aéreos.

Temos a possibilidade de aplicação da tríplice responsabilização: criminal, administrativa e civil (reparação de danos). Vejamos cada uma em detalhes:

Criminal

Existem duas espécies de condutas delitivas: os crimes propriamente aeronáuticos (se dão pela tutela da atividade aeronáutica, como por exemplo a segurança da aeronavegação) e os crimes impropriamente aeronáuticos (execução de delito comum, que não interfere na segurança da aeronave).

Como já pontuado, enquadrou-se o caso, inicialmente, como homicídio e lesão corporal.

CP

Homicídio simples

Art. 121. Matar alguém:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

...

§ 3º Se o homicídio é culposo: (Vide Lei nº 4.611, de 1965)

Pena - detenção, de um a três anos.

...

Lesão corporal

Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano.

Lesão corporal de natureza grave

§ 1º Se resulta:

I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;

II - perigo de vida;

III - debilidade permanente de membro, sentido ou função;

IV - aceleração de parto:

Pena - reclusão, de um a cinco anos.

As investigações realizadas pela Polícia Civil e pelo CENIPA podem indicar se houve ou não o cometimento de crimes, com a consequente responsabilização pelos órgãos competentes.

Administrativa

As investigações também indicarão se houve ou não o descumprimento de normas administrativas relacionadas à segurança e operação do voo, em especial normas da ANAC e do CENIPA, como determina o artigo 288 do Código Brasileiro de Aeronáutica – CBA (Lei nº 7.565/86):

Art. 288. A autoridade de aviação civil é competente para tipificar as infrações a este Código ou à legislação que dele decorra, bem como para definir as respectivas sanções e providências administrativas aplicáveis a cada conduta infracional, observado o processo de apuração e de julgamento previsto em regulamento próprio.

As sanções administrativas aplicáveis às infrações administrativas envolvendo o transporte aéreo são (artigo 289, do CBA):

I - multa;

II - suspensão de certificados, de licenças ou de autorizações;        

III - cassação de certificados, de licenças ou de autorizações;       

IV - detenção, interdição ou apreensão de aeronave, ou do material transportado.

Civil

Tão importante quanto punir os infratores na seara criminal e administrativa é responsabilizá-los pela reparação dos danos que se causou às vítimas.

Diferentes normas regulam a responsabilidade civil das companhias aéreas, em caso de acidente, com destaque para o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Tal Código estabelece a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços pelos danos causados aos consumidores, independentemente de culpa, de acordo com o artigo 14.

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar...

Ocorre que, no caso ora analisado, a princípio não houve relação consumeirista, pois a aeronave era de propriedade do copiloto.

O Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei n.º 7.565/1986) também trata da responsabilidade do transportador, especificando que ele deve indenizar os danos decorrentes de morte ou lesão dos passageiros, conforme o artigo 256.

Art. 256. O transportador responde pelo dano decorrente:

I - de morte ou lesão de passageiro, causada por acidente ocorrido durante a execução do contrato de transporte aéreo, a bordo de aeronave ou no curso das operações de embarque e desembarque...

§ 1° O transportador não será responsável:

I - no caso do inciso I do caput deste artigo, se a morte ou lesão resultar, exclusivamente, do estado de saúde do passageiro, ou se o acidente decorrer de sua culpa exclusiva...      

§ 2° A responsabilidade do transportador estende-se:

a) a seus tripulantes, diretores e empregados que viajarem na aeronave acidentada, sem prejuízo de eventual indenização por acidente de trabalho;

b) aos passageiros gratuitos, que viajarem por cortesia.

A Resolução Anac n.º 400/2016 detalha os direitos dos passageiros e as obrigações das companhias em situações de sinistros.

Internacionalmente, a Convenção de Varsóvia e a Convenção de Montreal estabelecem normas para o transporte aéreo global, incluindo limitações de responsabilidade e procedimentos para compensação de vítimas e familiares. Porém, o Judiciário, em especial o STJ, tem afastado essas limitações em favor da aplicação do CDC, norma mais protetiva.

Ainda para a Superior Corte de Justiça, as vítimas de acidentes aéreos localizadas em solo também podem ser consideradas consumidores por equiparação (bystanders), devendo ser estendidas a elas as normas do CDC relativas a danos por fato do serviço. A decisão foi tomada no julgamento do REsp 1.281.090, que tratou do acidente com um Fokker 100 da TAM e da indenização às famílias vitimadas.

Didática a lição do STJ no REsp 1.984.282 (DJe 22/11/2022):

A teoria objetiva preceitua que a culpa não será elemento indispensável ou necessário para a constatação da responsabilidade civil, retirando o foco de relevância do culpado pelo dano para transferi-lo para o responsável pela reparação do dano. A preocupação imediata passa ser a vítima e o reequilíbrio do patrimônio afetado pela lesão. O fato danoso, e não o fato doloso ou culposo, desencadeia a responsabilidade...

A responsabilidade civil objetiva fundada no risco da atividade configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade (atividade habitual que gere uma situação de risco especial)...

O Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) disciplina as relações havidas na prestação daquele serviço e, nos termos da jurisprudência do STJ, a responsabilidade do transportador aéreo é, em regra, objetiva....

O CBA assevera que os exploradores da aeronave serão os responsáveis pelos danos diretamente ligados ao exercício da atividade de transporte aéreo (art. 268)...

O terceiro vítima de acidente aéreo, tripulante ou em superfície, e o transportador são, respectivamente, consumidor por equiparação e fornecedor...

A responsabilidade pela prestação defeituosa do transporte aéreo, porque ancorada também nas normas de direito consumerista, será solidariamente repartida entre todos os fornecedores do serviço, no caso todos os que se enquadrarem no conceito de explorador e, por óbvio, desde que tenham sido demandados...

É expressamente vedada a denunciação da lide nas ações derivadas de relações de consumo (art. 88 do CDC) 15. A revisão da indenização por danos morais apenas é possível na hipótese de o quantum arbitrado nas instâncias originárias se revelar irrisório ou exorbitante, sob pena de se contrariar o enunciado da Súmula n. 7 desta Corte.

O que vai acontecer?

Em suma, a responsabilidade civil decorrente de acidente aéreo, em nosso país, é:

  • Objetiva (teoria do risco da atividade);
  • Solidária entre os prestadores do serviço;
  • Regulada primordialmente pelo CDC;
  • Não permite, em regra, a denunciação da lide;
  • Induz, no âmbito processual, o litisconsórcio facultativo.

Portanto, os responsáveis pelo desastre aéreo em questão deverão reparar integralmente os danos causados às vítimas, tanto os materiais quantos os morais.

Além disso, poderá haver a condenação no ressarcimento dos danos morais coletivos, haja vista o risco à segurança do meio ambiente do trabalho causado pelo trágico acidente.

O tema, apesar de envolver um fato lamentável, pode ser cobrado em provas de direito civil, processo civil, direito aeronáutico ou direito do consumidor. Portanto, muita atenção!


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