A regularização de loteamento antes do oferecimento da denúncia impede a configuração do crime na Lei de Parcelamento do Solo Urbano.
* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu
O Superior Tribunal de Justiça decidiu que a regularização do loteamento antes do oferecimento da denúncia afasta a tipicidade da conduta imputada, ante a ausência de dolo dos agentes.
Trata-se do crime urbanístico previsto no artigo 50, I, da lei de parcelamento de solo urbano (Lei nº 6.766/79).
Lei nº 6.766/79 Art. 50. Constitui crime contra a Administração Pública. I - dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos, sem autorização do órgão público competente, ou em desacordo com as disposições desta Lei ou das normas pertinentes do Distrito Federal, Estados e Municípios; ... Pena: Reclusão, de 1(um) a 4 (quatro) anos, e multa de 5 (cinco) a 50 (cinqüenta) vezes o maior salário mínimo vigente no País. Parágrafo único - O crime definido neste artigo é qualificado, se cometido. I - por meio de venda, promessa de venda, reserva de lote ou quaisquer outros instrumentos que manifestem a intenção de vender lote em loteamento ou desmembramento não registrado no Registro de Imóveis competente. ... Pena: Reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de 10 (dez) a 100 (cem) vezes o maior salário mínimo vigente no País.
HC 857.566 – Regularização de loteamento
O julgamento se deu no bojo do HC 857.566.
O caso é um habeas corpus impetrado contra decisão do Tribunal de Justiça da Paraíba, que denegou a ordem para trancar ação penal em curso na Vara Única da comarca de Água Branca/PB, pela suposta prática do crime de parcelamento de solo urbano sem autorização, previsto no art. 50, I e parágrafo único da Lei n. 6.766/1979.
A regularização do loteamento foi concluída em 2015, antes do oferecimento da denúncia (2022), incluindo licenças e certidão de aprovação definitiva do parcelamento do solo urbano.
A questão em discussão consistiu em saber se a regularização do loteamento antes do oferecimento da denúncia afasta a tipicidade da conduta imputada, ante a ausência de dolo dos agentes.
Ao final, o dolo foi afastado e foi concedida a ordem para trancamento da ação penal.
Análise Jurídica -Regularização de loteamento
O parcelamento do solo urbano é apresentado como um instrumento de execução política de desenvolvimento e expansão urbanos no âmbito do município, de acordo com a exegese do art. 2° do Estatuto da Cidade, com o objetivo de ordenar de forma plena o desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.

O artigo 182, caput, da CF/88, aduz de forma incisiva, in verbis:
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
O parcelamento do solo urbano visa, portanto, contribuir para o ordenamento e desenvolvimento equilibrado das cidades, de modo que haja uma distribuição racional e eficiente de atividades e pessoas sob o território urbano. Tal parcelamento pode ser implementado de duas formas: loteamento e desmembramento.
Assim dispõe o artigo 2º da Lei Federal nº 6.766/79, in verbis:
Lei Federal nº 6.766/79
Art. 2º. O parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento, observadas as disposições desta Lei e as das legislações estaduais e municipais pertinentes.
Mas o que vem a ser loteamento ou desmembramento? Bem, a própria legislação dá a resposta, nos parágrafos do artigo 2º da Lei de regência:


Como podemos observar, a diferença entre loteamento e desmembramento (espécies de parcelamento do solo urbano), é que na primeira (loteamento) a subdivisão da área em lotes exige, necessariamente, a abertura ou aumento das vias de circulação, de logradouros públicos. Já no desmembramento não existe essa necessidade; basta apenas a divisão da área.
Gleba x Lote
Também não podemos confundir gleba com lote.

Somente será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal.
Pois bem.

O STJ já possui entendimento no sentido de afastar o dolo. E, portanto, a tipicidade penal do crime de loteamento irregular (artigo 50, I, Lei 6.766/79) quando a regularização da área se dá antes do oferecimento da denúncia, senão vejamos:
PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME DE PARCELAMENTO DE SOLO URBANO. ART. 50, INCISO I, DA LEI Nº 6.766/1978. REGULARIZAÇÃO ANTES DA DENÚNCIA. ATIPICIDADE. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. A jurisprudência desta Corte Superior firmou-se no sentido de que se o loteamento é regularizado antes do oferecimento da denúncia, não se vislumbra a existência de dolo do agente, motivo pelo qual não há que se falar em crime (RHC 33.909/RJ, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 15/10/2013, DJe 23/10/2013).
2. No caso dos autos, depreende-se que antes da denúncia já havia sido aprovado o desmembramento do terreno em questão, ou seja, o loteamento iniciado sem a autorização do órgão público competente já estava devidamente regularizado, não sendo necessário o registro imobiliário para afastar a atipicidade da conduta imputada. Agravo regimental não provido.
(AgRg no AgRg no AREsp 1.699.623/GO, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 27/11/2020, DJe de 27/11/2020 – grifo nosso).
PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. 1. IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DO RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. 2. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE DOLO. ATIPICIDADE. 3. CRIME DE PARCELAMENTO DE SOLO URBANO. REGULARIZAÇÃO ANTERIOR À DENÚNCIA. 4. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO PARA TRANCAR A AÇÃO PENAL.
3. "Ao interpretar o artigo 50, inciso I, da Lei 6.766/1979, esta Corte Superior de Justiça firmou o entendimento de que se o loteamento é regularizado antes do oferecimento da denúncia, não se vislumbra a existência de dolo do agente, motivo pelo qual não há que se falar em crime". (RHC 33.909/RJ, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 15/10/2013, DJe 23/10/2013)
4. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício, para trancar a Ação Penal n. 0900012-47.2016.8.24.0175.
(HC n. 444.054/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 22/5/2018, DJe de 30/5/2018 - grifo nosso)
E isso se dá porque o crime em análise requer o elemento dolo para sua configuração (elemento subjetivo), não existindo na modalidade culposa.
O entendimento acaba servindo como incentivo para que empreendedores regularizem o loteamento irregular, mitigando os danos gerados.
Ótimo tema para provas de direito urbanístico. Portanto, muita atenção!
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