* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu
Um promotor de justiça do Ministério Público do Acre, figura muito conhecida do universo jurídico local por ter participado ativamente das negociações que puseram fim à rebelião no Presídio de Segurança Máxima Antônio Amaro, em Rio Branco, em julho de 2023, foi afastado da função pelo Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP, e o motivo é, no mínimo, inusitado: o promotor teria mantido relações sexuais com ao menos 20 detentos, dentre eles líderes de uma facção criminosa.
Um procedimento investigativo foi aberto contra o promotor por solicitação do procurador-geral de justiça do Acre, Danilo Lovisaro do Nascimento, como determina a lei, e autorizado pelo TJ-AC, uma vez que o promotor tem prerrogativa de foro.
Numa coletiva de imprensa, o promotor, que estava acompanhado de seus advogados, negou que tenha qualquer envolvimento com facções criminosas. Contudo, ele admitiu aos jornalistas que mantinha relações sexuais com apenados que integram o sistema carcerário.
O relatório referente ao afastamento acrescenta que tais atos ocorriam durante o horário de expediente do promotor, e que em algumas situações ele teria feito pagamento aos detentos para realizar os atos sexuais. Há, ainda, suspeitas de que o veículo do promotor tenha sido utilizado por criminosos em uma tentativa de roubo.
Segundo um dos advogados do promotor, os encontros com presos do regime semiaberto tinham objetivo de natureza exclusiva sexual:
“Esses contatos se deram exclusivamente em sua residência e mediante pagamento. É importante que isso fique claro. Ele nunca teve qualquer outro tipo de contato com essas pessoas, seja de convívio, seja de amizade, seja de qualquer outra natureza. Muito menos envolvimento com organização criminosa e com a prática de um crime…
É absolutamente falso, é mentiroso que ele tenha tido contato sexual durante as inspeções. Isso não consta sequer como conjectura no processo administrativo…
É uma situação extremamente difícil. Em decorrência de sua orientação sexual, de suas opções íntimas, porque todos nós temos direito de pagar por sexo, de buscar uma pessoa de outra forma, cada um tem a sua liberdade”.
Alvo de preconceito (homofobia)
O promotor já foi alvo de vários ataques homofóbicos por conta de sua atuação no estado. Após a rebelião, em 2023, um policial penal o chamou de “afeminado” e criticou sua participação na mediação do conflito. Ainda em 2023 o Ministério Público do Acre (MP-AC) apresentou uma denúncia contra o policial penal pelos crimes de racismo e ameaça.
Além disso, já em 2024, o MP-AC pediu a abertura de um inquérito policial para apurar mais um possível crime de homofobia contra o promotor de Justiça em um comentário feito através de uma rede social.
Em junho de 2024 o promotor foi alvo de ameaça de morte. Desta vez, o Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco), que atua de forma independente, investigou um policial civil por ameaçar o promotor. Ele foi preso, mas negou o crime.
Análise Jurídica
Então, qual é a repercussão jurídica desse episódio, no mínimo, curioso? Vejamos.
A Resolução nº 261/2023, do Conselho Nacional do Ministério Público, instituiu o Código de Ética do Ministério Público brasileiro. Composto por 40 artigos, 20 princípios e valores éticos, divididos em 12 capítulos, o Código institui regras de conduta aplicáveis a todos os membros do Ministério Público brasileiro.
Conduta compatível com o decoro do cargo
O artigo 15 do referido Código de Ética prevê que o membro do Ministério Público portar-se-á na vida privada de modo a dignificar a função, consciente de que o exercício da atividade ministerial impõe restrições e exigências pessoais distintas.
Já o artigo 34 determina que o membro do Ministério Público adotará conduta pública e privada sempre compatível com o decoro do cargo, a dignidade de suas funções e a credibilidade da Instituição, considerando-se atentatórios ao decoro do cargo e à dignidade das funções institucionais os atos e as condutas que caracterizem tratamento injusto ou arbitrário em face de qualquer pessoa, órgão, entidade ou instituição, pública ou privada.
Independência funcional
No artigo 2º percebemos que um dos valores éticos que deve guiar a atuação do membro do Ministério Público é a independência funcional.
A lei federal nº 8.625/93 se constitui como a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público. No artigo 43 estão descritos os deveres aplicáveis aos membros da instituição, onde destacamos:
I - manter ilibada conduta pública e particular; II - zelar pelo prestígio da Justiça, por suas prerrogativas e pela dignidade de suas funções; ... VI - desempenhar, com zelo e presteza, as suas funções;
A questão, portanto, gira em torno de saber se a conduta do promotor consistente em manter relações sexuais com detentos é suficiente para abalar sua independência funcional, ou de ferir o dever de manutenção de uma conduta particular ilibada. E mais: as relações sexuais não usuais entre o promotor e detentos contribuem para a não dignificação da instituição? Elas seriam compatíveis com o decoro que o cargo e a função exigem?
As respostas a essas perguntas são fundamentais para o rumo da apuração e de eventual aplicação de sanção disciplinar.
Não se está, aqui, fazendo qualquer apologia ao preconceito ou à homofobia, mas não parece saudável um promotor de justiça, responsável por inspeções em unidades carcerárias, processos de detentos, investigações criminais, pedidos de prisão, se relacionar sexualmente com os custodiados do sistema prisional.
É difícil defender, nessa situação, a manutenção da imparcialidade e do decoro profissional, ainda mais quando a norma estende o dever funcional à vida privada do membro do Ministério Público.
Sanções, contraditório e ampla defesa
Ademais, em caso de condenação, o CNMP poderá aplicar as sanções previstas na legislação, a exemplo da:
I – Advertência;
II – Censura;
III – Suspensão;
IV – Disponibilidade compulsória;
V – Remoção compulsória;
VI – Demissão.
Obviamente que deverá ser garantido ao acusado, sempre, o direito ao devido processo legal, o que inclui a observância ao contraditório e a ampla defesa, como determina a Constituição Federal em seu artigo 5º, LV:
CF/88 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: ... LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Importante acompanhar o caso para ver o desfecho adotado pelo CNPM e, eventualmente, do Judiciário. Ótimo tema para provas do ministério público e magistratura.
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