Olá, pessoal. Aqui é o professor Allan Joos e hoje, no nosso artigo, vamos tratar de um projeto de lei que promete gerar muita polêmica. O Projeto de Lei, PL nº 3.914/2024, está sendo apresentado pela deputada federal Júlia Zanatta (PL/SC).
Tal PL pretende vedar a reserva de vagas para pessoas trans em concursos públicos e instituições de ensino, nas esferas Federal, Estadual e municipal.
O tema reacende o debate da exigência de cotas em concursos públicos no Brasil. Isso porque apesar de se tratar de importante política afirmativa, ainda encontra resistência nos setores mais conservadores da sociedade.
Quais as fundamentações legais das políticas de cotas no Brasil?
As políticas de cotas consistem em ações afirmativas que no Brasil possui amparo constitucional, lastreada na necessidade de se garantir a igualdade material da população.
Constituição Federal (CF)
O artigo 3º da CF/88, ao estabelecer os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, impõe ao Estado o dever de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Já o artigo 5º, caput, consagra a isonomia formal, assegurando que todos são iguais perante a lei.
Assim, a ideia de igualdade consagrada pela Constituição não se limita à perspectiva formal, mas também se estende à igualdade material, que vai muito além da mera garantia de igualdade perante a lei.
A igualdade material, assim, exige tratamento desigual para os desiguais, na medida de suas desigualdades. Exemplo de normativas que buscam a garantia da igualdade material são aquelas que garantem, por exemplo, políticas públicas de igualdade de gênero e a previsão de cotas raciais nos concursos públicos em geral.
Com a inserção, em alguns concursos públicos, da previsão das cotas para pessoas trans, o discurso sobre a igualdade material e suas consequências ganha ainda mais força. A tese de igualdade material, defendida por autores como José Afonso da Silva, sustenta que a igualdade não se realiza simplesmente com a aplicação uniforme da lei, mas através de medidas concretas que visam equilibrar oportunidades. A política de cotas é um clássico exemplo desse tipo de medida.
Lei de Cotas
No que tange às cotas raciais, além de tais normativas constitucionais que a amparam, o legislador editou a Lei nº 12.990/14.
Ela tem por finalidade a reserva aos negros de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos no âmbito da administração pública Federal, autarquias, fundações públicas, empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. A partir de referida normativa, diversas legislações e regulamentos estaduais passaram a garantir a concessão de referidas políticas de cotas.
Agora, especificamente no que tange às cotas para pessoas trans, ainda inexiste normativa infraconstitucional que expressamente as prevê. Isso mantém vivo o debate sobre sua legalidade. Ao nosso ver, os princípios constitucionais acima citados viabilizam a sua criação. Afinal, como já mencionado, a referida política afirmativa tem por finalidade garantir igualdade material a esse grupo que vive situação de extrema vulnerabilidade no nosso país.
Além da previsão constitucional, as cotas para transgêneros podem ser sustentadas por normativas internacionais ratificadas pelo Brasil, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 26) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 24). Ambos os diplomas asseguram o direito à igualdade e à não discriminação. A identidade de gênero é uma das categorias que devem ter proteção contra atos discriminatórios. Assim é o que já estabeleceu a Corte Interamericana de Direitos Humanos em julgados que tratam da proteção de pessoas LGBTQIA+.
O PL de Vedação às Cotas para Transgêneros consiste em retrocesso?
A proposta legislativa que visa proibir as cotas para pessoas transgênero em concursos públicos, sob o argumento de que tais cotas criariam um “privilégio injustificado”, enfrenta, a nosso ver, um grave obstáculo jurídico: a incompatibilidade com os princípios constitucionais de igualdade, no seu aspecto material como já citado, e o da dignidade da pessoa humana.
A situação das pessoas trans no Brasil é marcada por graves violações de direitos humanos. Isso é amplamente reconhecido por estudos e relatórios de organizações nacionais e internacionais. Com taxas alarmantes de exclusão social e vulnerabilidade, especialmente no mercado de trabalho formal, a população trans necessita de políticas específicas que assegurem seu acesso a direitos básicos, como o emprego.
A vedação de cotas, ao impedir a implementação de medidas que promovem a inclusão de pessoas transgênero, fere diretamente o princípio da dignidade. Isto é, ao vedar, perpetuam-se as barreiras que limitam sua participação no espaço público e no mercado de trabalho.
Como ensina Ingo Sarlet, o princípio da dignidade da pessoa humana impõe a proteção contra intervenções estatais lesivas. Além disso, tal princípio visa também a promoção de condições que permitam a efetiva fruição dos direitos fundamentais.
Igualdade Substancial e Precedentes Jurisprudenciais
O STF, em diversas oportunidades, reconheceu a constitucionalidade de ações afirmativas como instrumentos de promoção da igualdade substancial. Um exemplo paradigmático é a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41, que validou a já citada Lei nº 12.990/2014, responsável pela criação de cotas raciais em concursos públicos.
O Tribunal, nesse julgado, reafirmou que as ações afirmativas são compatíveis com o princípio da igualdade quando visam corrigir desequilíbrios historicamente acumulados, oferecendo oportunidades reais de inclusão a grupos desfavorecidos.
Assim, a aplicação do mesmo raciocínio jurídico às cotas para pessoas transgênero é coerente com a evolução jurisprudencial do STF. O Supremo já reconheceu a vulnerabilidade desse grupo em decisões como a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26. A ação equiparou a homofobia e a transfobia ao crime de racismo.
A decisão deixou claro que pessoas LGBTQIA+ são alvo de discriminação sistemática, exigindo a adoção de políticas públicas para sua proteção e inclusão. Logo, a tentativa de vedar as cotas para transgêneros colide diretamente com esses precedentes.
Obrigações Internacionais: Padrões Interamericanos de Proteção
O Brasil, como signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, está juridicamente sujeito às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que tem avançado na proteção das pessoas LGBTQIA+.
A jurisprudência da Corte, em casos como “Atala Riffo e Filhas vs. Chile”, estabeleceu que a identidade de gênero deve ser reconhecida como uma categoria protegida contra a discriminação. A Corte impôs aos Estados signatários o dever de adotar medidas afirmativas que assegurem a igualdade material e a proteção dos direitos dessa população.
A Resolução CSDPU nº 222
A Defensoria Pública da União (DPU), em agosto de 2024, promulgou a Resolução CSDPU nº 222, que reserva 2% das vagas em seus concursos para pessoas transgênero e travestis.
A referida normativa é um exemplo de como as ações afirmativas já são uma realidade no Brasil. Isso porque elas são voltadas para corrigir as disparidades enfrentadas por grupos específicos em seus processos de inclusão social.
Ao adotar essa medida, a DPU seguiu o mesmo caminho que justificou, em anos anteriores, as cotas raciais e para pessoas com deficiência. Dessa forma, consolidou-se como uma instituição que promove a igualdade substancial.
Impactos da Vedação de Cotas: Exclusão e Vulnerabilidade
Caso aprovado, o projeto reforçará ainda mais a discriminação contra a comunidade LGBTQIAPN+.
De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), grande parte da população trans é forçada a recorrer a empregos informais ou à prostituição. O motivo disso seria a falta de oportunidades no mercado formal de trabalho.
A negação de políticas afirmativas aprofunda esse ciclo de exclusão, impedindo que essas pessoas rompam com as dinâmicas de marginalização social e econômica.
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