STF forma maioria para invalidar lei que proíbe o uso de linguagem neutra em escolas, reafirmando princípios constitucionais de igualdade e liberdade de expressão no ambiente educacional.
* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
O STF formou maioria no plenário virtual para invalidar lei municipal de Votorantim/SP, que proibiu o uso de linguagem neutra em escolas.
O artigo 2º, da referida lei municipal, assim rezava:
Art. 2º É vedado a todas as instituições de ensino no município de Votorantim, independentemente do nível de atuação e da natureza pública ou privada, bem como, a bancas examinadoras de seleções e concursos públicos, prever ou inovar, em seus currículos escolares e em editais, novas formas de flexão de gênero e de número das palavras da língua portuguesa, em contrariedade às regras gramaticais consolidadas e previstas nas diretrizes e bases da educação nacional – que preveem apenas as flexões de gênero masculino e feminino. Parágrafo único. Nos ambientes formais de ensino e educação, é proibido o emprego de linguagem que, corrompendo as regras gramaticais, pretendam se referir a “gênero neutro”, inexistente na língua portuguesa e não contemplado nas diretrizes e bases da educação nacional.
O caso chegou à Suprema Corte através da ADPF 1.166, proposta pela Aliança Nacional LGBTI+ e pela ABRAFH – Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas, questionando a constitucionalidade da lei nº 2.972/23, do município de Votorantim/SP.
A norma municipal proíbe o uso de linguagem neutra em instituições de ensino locais, restringindo o ensino da língua portuguesa às regras gramaticais formais.
O prefeito de Votorantim e a Câmara Municipal não apresentaram informações requisitadas a respeito da norma impugnada.
A AGU manifestou-se pelo não conhecimento da ADPF, alegando falta de subsidiariedade, mas, no mérito, defendeu a inconstitucionalidade parcial da lei.
Já a PGR apoiou o pedido de inconstitucionalidade, argumentando que a lei representa interferência indevida na competência da União sobre diretrizes e bases da educação.
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: ... XXIV - diretrizes e bases da educação nacional; (CF/88)
O relator, ministro Gilmar Mendes, destacou, em seu voto, que, segundo a Constituição Federal, compete exclusivamente à União legislar sobre diretrizes e bases da educação (art. 22, XXIV), limitando a atuação de Estados e municípios a adaptações locais que não contravenham as normas gerais.
“Compete privativamente à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional, conforme estabelecido no art. 22, XXIV, da Constituição Federal [...] Apesar dos Estados e Municípios poderem atuar legislativamente no campo da educação, na sua forma complementar, com o objetivo de adaptação às peculiaridades locais [...] essa competência não lhes permite contrariar ou desrespeitar normas gerais fixadas pela União, bem como invadir a seara destinada à edição de diretrizes e bases de educação, cuja competência privativa é da União (CF, art. 22, XXIV).”
Mesmo sabendo que a competência legislativa para tratar da educação é concorrente entre União, Estados e DF, conforme artigo 24, IX, da CF/88, e que os Municípios possuem competência para suplementar a legislação federal e estadual, no que couber, conforme artigo 30, II, da CF/88, ressaltou Gilmar Mendes:
Artigo 30, II, da CF/88 - Cabe exclusivamente à União determinar normas gerais que regulamentam esse sistema, atribuindo-lhe uniformidade mínima em âmbito nacional. Assim o é, essencialmente, para assegurar o desenvolvimento de um sistema coeso e eficaz, que atendendo às necessidades do país de maneira harmônica, respeite as diferenças regionais, e evite eventuais disparidades que comprometam o acesso e a qualidade da educação. Nesse exato sentido, a Constituição Federal fixou competir, exclusivamente, à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional, seara a respeito da qual os demais entes federados não possuem competência legislativa.”
No caso ora analisado, a lei municipal de Votorantim/SP, a pretexto de fixar “medidas protetivas ao direitos dos estudantes do Município de Votorantim ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta”, dispõe sobre diretrizes e bases da educação, estabelecendo vedação a conteúdo programático, que pela sua própria natureza deve ser uniforme em todo o país, e, portanto, de competência exclusiva da União.
Mas você sabe o que é essa linguagem neutra ou linguagem inclusiva?
A linguagem neutra ou linguagem inclusiva é uma forma de comunicação que visa incluir todas as pessoas, independentemente da sua identidade de gênero, sexualidade ou outros aspetos da sua expressão, e sua utilização é defendida por simpatizantes da comunidade LGBTQIA+.
A linguagem neutra aplica um gênero neutro em vez do feminino ou masculino, evitando termos ou expressões que possam ser discriminatórios ou reforçar estereótipos de gênero.
Aplicação prática da linguagem neutra:
- Pronomes neutros: elu/delu;
- Substantivos e adjetivos neutros: substituição de palavras com conotações de gênero, como “homem” ou “mulher”, por “pessoa” ou “indivíduo”.
- Formas neutras de tratamento: evitar usar formas de tratamento que definem um gênero exclusivo, como “prezado” ou “prezada”, que são substituídas por “prezade”.
Alguns Estados e Municípios já proibiram o uso da linguagem neutra. São eles:
- Paraná: em janeiro de 2023, foi sancionada uma lei que proíbe a aplicação de linguagem neutra em escolas estaduais, editais, currículos escolares, concursos públicos e em comunicações do governo do estado.
- Rondônia: entrou em vigor em 2021 uma lei que proibia a linguagem neutra na grade curricular e no material de ensino público e privado, além de em editais de concursos públicos.
- Santa Catarina: Um decreto estadual de 2021, que está em vigor, proíbe o uso dessa linguagem na redação de documentos oficiais e nas instituições de ensino ou dentro de sala de aula.
- Manaus: a prefeitura de Manaus decretou a lei em abril de 2022, que proíbe a utilização da linguagem neutra no ensino da matéria da Língua Portuguesa nas escolas.
- Porto Alegre: foi sancionada uma lei em junho de 2022, que proíbe o uso da linguagem neutra em escolas e na administração pública.
O STF, à princípio, tem considerado inconstitucionais leis que proíbem o uso de linguagem neutra, sob o fundamento de que a competência para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional é da União, além de violação a garantia da liberdade de expressão, a proibição da censura e um dos objetivos fundamentais da República, relacionado à promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
O Ministro Flávio Dino arrematou, na ADI 7644:
“…a língua é viva e está sempre aberta a novas possibilidades. Por isso, não se descarta a possibilidade de utilização da linguagem neutra. A seu ver, trata-se de um processo cultural decorrente de mudanças sociais que, posteriormente, podem ser incorporadas ao sistema jurídico. “A gestão democrática da educação nacional exige, inclusive para adoção ou não da linguagem neutra, o amplo debate do tema entre a sociedade civil e órgãos estatais, sobretudo se envolver mudanças em normas vigentes”
Vejamos alguns julgados do STF nesse sentido:
- Águas Lindas de Goiás (GO) 🡪 ADPF 1150
- Ibirité (MG) 🡪 ADPF 1155
- Amazonas (AM) 🡪 ADI 7644
- Rondônia (RO) 🡪 ADI 7019
- Paraná (PR) 🡪 ADI 7564 (Ainda não há decisão)
No caso da lei municipal de Votorantim/SP, o ministro Zanin abriu divergência parcial ao declarar a inconstitucionalidade apenas de trechos específicos da lei. Ele concordou com o relator quanto à competência exclusiva da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional, mas, ao analisar a legislação, identificou que certos dispositivos da lei municipal eram compatíveis com o ensino da língua portuguesa como idioma oficial e a promoção da norma culta.
Assim, votou pela inconstitucionalidade parcial da lei, mantendo os dispositivos gerais sobre ensino da norma culta e excluindo partes que proíbem o uso de linguagem neutra e que poderiam resultar em censura. Mas seu entendimento foi vencido.
Ótimo tema para provas de direito constitucional!
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