Análise sobre a constitucionalidade da prisão preventiva automática em crimes hediondos proposta pelo Projeto de Lei 714/2023.
Imagine a seguinte situação hipotética:
João é preso em flagrante, acusado de um crime classificado como hediondo.
Professor, mais quais são os crimes hediondos? Vamos a exemplos…
Homicídio qualificado; Latrocínio (roubo seguido de morte)
Extorsão qualificada pela morte; Estupro e estupro de vulnerável (…)
Como acontece hoje? Se João é preso, atualmente, ele é levado a uma audiência de custódia dentro de 24 horas.
Qual o objetivo da audiência de custódia?
Audiência de custódia consiste…
- no direito que a pessoa presa possui
- de ser conduzida (levada),
- sem demora (CPP adotou o máximo de 24h),
- à presença de uma autoridade judicial (magistrado)
- que irá analisar se os direitos fundamentais dessa pessoa foram respeitados (ex: se não houve tortura)
- se a prisão em flagrante foi legal ou se deve ser relaxada (art. 310, I, do CPP)
- e se a prisão cautelar (antes do trânsito em julgado) deve ser decretada (art. 310, II) ou se o preso poderá receber a liberdade provisória (art. 310, III) ou medida cautelar diversa da prisão (art. 319).
A audiência de custódia é prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), que ficou conhecida como “Pacto de San Jose da Costa Rica”, promulgada no Brasil pelo Decreto 678/92.
Veja o que diz o artigo 7º, item 5, da Convenção:
Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal (...) 5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais (...)
Então, em síntese, na audiência, um juiz analisa cuidadosamente o caso, levando em conta as circunstâncias do crime, o histórico de João e os requisitos legais da prisão preventiva…
Logo, com base nessa análise, o juiz decide se a prisão deve ser mantida ou não, considerando as peculiaridades do caso.
No entanto, se o Projeto de Lei 714/2023 for aprovado, essa análise individualizada não será mais necessária, porque ela será eliminada.
Isto porque, a prisão preventiva seria decretada automaticamente, sem avaliação das particularidades do caso, bastando que o crime se enquadre nos critérios do PL.
Dessa forma, o PL tem provocado debates sobre sua constitucionalidade, especialmente após a Câmara dos Deputados aprová-la em regime de urgência.
E eis então, a nossa análise aqui no blog.
O que em síntese consiste a proposta?
Em síntese, a lei visa modificar o artigo 310 do Código de Processo Penal, tornando obrigatória a decretação de prisão preventiva na audiência de custódia não só para crimes hediondos, mas também para casos de roubo, associação criminosa qualificada e reincidência criminal.
Além disso, propõe ampliar o prazo da audiência de custódia de 24 para 72 horas, o que afeta a agilidade de resposta do sistema de justiça em casos de prisão em flagrante.
Ok, mas quais são as teses em confronto?
Para tanto levamos em conta as manifestações dos especialistas e do pensamento da jurisprudência do STF.
Defensores do projeto – pela constitucionalidade da prisão automática
O relator do projeto, deputado Kim Kataguiri (União-SP), estruturou sua argumentação em três ideias centrais:
- Melhor proteção à segurança:
A liberdade provisória é negada em poucos casos; se a pessoa for solta isso comprometeria a segurança pública e no fim, há uma dificuldade de elucidação de crimes - Aumento do tempo da audiência:
Ampliação do prazo da audiência de custódia de 24 para 72 horas significaria maior tempo para análise policial - 3) Clamor social:
Argumenta que a sociedade clama por maior rigor penal e pelo combate da sensação de impunidade com solturas rápidas
Opositores ao projeto – pela inconstitucionalidade da prisão automática
- Haveria violação à presunção de inocência:
Conforme notícia da CONJUR, Pierpaolo Cruz Bottini, professor da USP, aponta que prisão preventiva automática, sem fundamentos concretos, configura antecipação de pena, o que seria expressamente vedada pela Constituição Federal. - Haveria uma ofensa ao devido processo legal:
Segundo a notícia da CONJUR, o professor Aury Lopes Jr., destaca três pontos fundamentais contrários ao projeto:
– que a prisão preventiva exige necessidade concreta;
– que a prisão sem necessidade não é cautelar e por fim,
– que axecução antecipada da pena é inconstitucional
Assim, aprovar o projeto seria atentar frontalmente contra os princípios fundamentais da individualização da pena. - Suposta contrariedade à jurisprudência do STF:
De início, vale salientar que em 2006, o STF ao analisar a Lei dos Crimes Hediondo na ocasião do julgamento do HC 82.959, declarou a inconstitucionalidade do §1º do art. 2º da Lei 8.072/1990, que estabelecia o cumprimento integral da pena em regime fechado.
Isto é, a partir desta decisão, consolidou-se o entendimento de que disposições automáticas em matéria penal violam frontalmente o princípio constitucional da individualização da pena.
Inclusive, este entendimento foi posteriormente reforçado em 2007, quando o STF, ao julgar a ADI 3.112, enfrentou a questão da vedação abstrata à liberdade provisória prevista no Estatuto do Desarmamento.
Ou seja, não havia previsão de liberdade provisória que foi declarado inconstitucional.
Dessa vez, o STF não apenas reafirmou sua posição contrária aos automatismos penais, mas também estabeleceu uma conexão direta entre a necessidade de análise individualizada e os princípios da presunção de inocência e do devido processo legal.
Por fim, em 2017, com o julgamento do ARE 1.052.700, que resultou na Tese de Repercussão Geral 972, o STF foi além da mera declaração de inconstitucionalidade do regime inicial fechado automático, de maneira mais abrangente sobre a incompatibilidade de qualquer automatismo penal com o sistema constitucional brasileiro.
Em outras palavras, a tese firmada estabeleceu definitivamente que a fixação de regime prisional deve sempre observar os parâmetros individualizados previstos no art. 33 do Código Penal.
E qual foi os pilares da decisão do STF?
De início, o primeiro é a presunção de inocência, prevista no art. 5º, LVII da Constituição, que impede que qualquer pessoa seja considerada culpada antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Depois, o segundo pilar é a individualização da pena, garantia fundamental estabelecida no art. 5º, XLVI, que exige a análise pormenorizada das circunstâncias de cada caso concreto.
Por fim, o devido processo legal, consagrado no art. 5º, LIV, que assegura a necessidade de um procedimento adequado e com garantias plenas de defesa antes de qualquer restrição à liberdade.
Como o tema já caiu em concursos Prisão automática
CESPE – 2019 – TJ-AM – Analista Judiciário – Direito
Júnia, de quatorze anos de idade, acusa Pierre, de dezoito anos de idade, de ter praticado crime de natureza sexual consistente em conjunção carnal forçada no dia do último aniversário da jovem. Pierre, contudo, alega que o ato sexual foi consentido.
A respeito dessa situação hipotética, julgue o item a seguir, tendo como referência aspectos legais e jurisprudenciais a ela relacionados.
Se Pierre for condenado por estupro, o regime de cumprimento de pena será integralmente fechado, por se tratar de crime hediondo (Errado)
TRF – 4ª REGIÃO – 2012 – TRF – 4ª REGIÃO – Juiz Federal
De acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, é inconstitucional o artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos), que determina o cumprimento da pena em regime integralmente fechado, competindo ao juiz da condenação analisar os requisitos objetivos e subjetivos previstos na Lei de Execuções Penais quanto à possibilidade de progressão para regime menos severo, ainda que de forma superveniente ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória (Errado)
Fato é que, isso cairá em provas. Ou melhor, a discussão em sua profundidade é terma de questões objetivas, discursivas e de prova oral. Fique ligado!
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