Introdução
Na manhã de 4 de setembro de 2024, a empresária, advogada e influenciadora digital Deolane Bezerra foi alvo de prisão cautelar em uma operação da Polícia Civil de Pernambuco.
A ação, denominada “Integration”, visa combater uma organização criminosa supostamente envolvida em práticas de lavagem de dinheiro e jogos ilegais1.
A operação resultou na expedição de 19 mandados de prisão e 24 mandados de busca e apreensão em cinco estados brasileiros. Além das prisões, a Justiça determinou o sequestro de bens e o bloqueio de ativos financeiros no valor de R$ 2,1 bilhões.
Cerca de 170 agentes estão envolvidos na operação. As ações ocorrem nas cidades de Recife (PE), Campina Grande (PB), Barueri (SP), Cascavel (PR), Curitiba (PR) e Goiânia (GO). Foram apreendidos carros de luxo, imóveis, aeronaves e embarcações. Um helicóptero supostamente ligado à empresa "Vai de Bet" foi apreendido em Campina Grande.
Abordaremos uma análise jurídica explicando a decisão com base nas divulgações na imprensa, uma vez que a decisão é sigilosa, portanto, não tivemos acesso.
Fundamentos legais
A prisão cautelar de Deolane Bezerra baseia-se nos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal (CPP).
O art. 312 do CPP estabelece:
"A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado."
Além disso, vale salientar sobre os requisitos que a doutrina processual penal para a prisão preventiva:
- Excepcionalidade da medida: Renato Brasileiro de Lima, em seu “Manual de Processo Penal”, enfatiza que a prisão preventiva deve ser vista como medida excepcional, aplicável apenas quando as medidas cautelares diversas da prisão (art. 319 do CPP) se mostrarem inadequadas ou insuficientes.
- Garantia da ordem econômica: segundo Eugênio Pacelli, em “Curso de Processo Penal”, a garantia da ordem econômica visa impedir a reiteração de práticas criminosas que afetem o funcionamento regular da economia. No caso em tela, a magnitude dos valores envolvidos e a suposta estruturação de um esquema complexo de lavagem de dinheiro poderiam justificar a medida sob este fundamento.
- Contemporaneidade: Aury Lopes Jr., em “Direito Processual Penal”, ressalta a necessidade de contemporaneidade entre o fato investigado e a decretação da prisão preventiva.
Some-se também o entendimento jurisprudencial:
STF – HC 126.292/SP (2016): o STF reafirmou a excepcionalidade da prisão preventiva, que deve ser decretada apenas quando “concretamente demonstrada”.
STJ – HC 509.030/RJ (2019): Neste caso, o Superior Tribunal de Justiça enfatizou que a prisão preventiva para garantia da ordem econômica deve ser baseada em elementos concretos que demonstrem a magnitude do prejuízo causado e o risco de reiteração delitiva
STF – ADC 43, 44 e 54 (2019): Ao reafirmar o princípio da presunção de inocência, o STF reforçou a necessidade de fundamentação robusta para qualquer tipo de prisão antes do trânsito em julgado, incluindo a preventiva.
Assim, no caso de Deolane Bezerra, a prisão cautelar parece fundamentar-se principalmente na garantia da ordem econômica, dada a magnitude dos valores envolvidos (R$ 2,1 bilhões) e a natureza dos crimes investigados (lavagem de dinheiro e jogos ilegais).
Crimes investigados e tipificação
Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/1998)
O art. 1º da Lei de Lavagem de Dinheiro define: "Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal." Pena: reclusão de 3 a 10 anos e multa.
A lavagem de dinheiro é um processo que visa dar aparência lícita a recursos obtidos de forma ilegal.
O crime se consuma com a ocultação ou dissimulação dos bens, não sendo necessário que o dinheiro seja efetivamente reintegrado à economia formal.
A lei brasileira adota o modelo de “terceira geração”, que considera como crime antecedente qualquer infração penal, não se limitando apenas a um rol taxativo de crimes.
Elementos do tipo Conduta: ocultar ou dissimular Objeto material: bens, direitos ou valores Origem ilícita: provenientes de infração penal
Jogos ilegais e correlatos
A divulgação de jogos de azar ilegais, como o “jogo do tigrinho“, não está explicitamente tipificada na legislação brasileira. No entanto, essa conduta pode se enquadrar em diferentes tipos penais, dependendo das circunstâncias:
Contravenção penal de propaganda de jogos proibidos: Art. 50, § 3º, "a" do Decreto-Lei nº 3.688/1941: "Consideram-se jogos de azar: a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte." Art. 50, § 4º: "Incorrem na pena de multa, sujeitos à apreensão os instrumentos e objetos, aquele que: a) fizer propaganda de jogo proibido."
Crime de publicidade enganosa ou abusiva: Art. 67 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990): "Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva." Pena: Detenção de três meses a um ano e multa.
Participação em organização criminosa: Se a divulgação for parte de um esquema maior, pode ser enquadrada no art. 2º da Lei nº 12.850/2013.
Evasão de divisas: Se a divulgação envolver jogos hospedados em servidores estrangeiros, pode-se configurar o crime de evasão de divisas (art. 22 da Lei nº 7.492/1986).
Jogo do Tigrinho
O Fortune Tiger, mais conhecido como “Jogo do Tigrinho”, é um cassino online que promete prêmios de altos valores financeiros e ficou famoso no Brasil após a divulgação de diversos influenciadores e jogadores nas redes sociais, que compartilham suas táticas para se ganhar milhares de reais em segundos de jogo.
Games, como o do Tigrinho, no qual que se depende exclusivamente da sorte para ganhar ou perder, são considerados jogos de azar pela Lei de Contravenções Penais e são tidos como crimes de menor potencial ofensivo.
Não estamos dizendo que esse é o caso da Deolane, apenas explicitando pontos relevantes, sobre os jogos ilegais:
Outro fator importante é que o Jogo do Tigrinho está hospedado em plataformas clandestinas, não auditáveis e que não seguem regra alguma.
É diferente das plataformas legalizadas de apostas, conhecidas como “bets”, sendo que alguma delas também oferecem jogos, mas as operações estão sujeitas às seguintes leis:
- Lei 13.756/ 2018: que regulamenta as apostas esportivas; e a
- Lei 14.790/2024: que ampliou o alcance da legislação, exigindo que as empresas tenham endereço no Brasil, definindo a tributação e incluindo os jogos online.
Assim, esses influenciadores podem, portanto, ser responsabilizados criminalmente e civilmente por eventuais problemas que os jogadores tenham enfrentado com as plataformas
Do ponto de vista tributário, a renda obtida com a divulgação de jogos de azar, mesmo que ilegais, devem constar em declaração à Receita Federal. A não declaração pode configurar crime de sonegação fiscal (Lei nº 8.137/1990):
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (Vide Lei nº 9.964, de 10.4.2000) I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato; V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Existem projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que visam regulamentar os jogos de azar no Brasil, incluindo os jogos online. Se aprovados, poderão alterar significativamente o tratamento legal dado à divulgação desses jogos.
Organização Criminosa (Lei nº 12.850/2013)
O art. 2º da Lei das Organizações Criminosas estabelece: "Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa." Pena: reclusão, de 3 a 8 anos, e multa.
Uma organização criminosa é definida como a associação de 4 ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 anos, ou que sejam de caráter transnacional.
Elementos do tipo Conduta: promover, constituir, financiar ou integrar Objeto: organização criminosa Forma: pessoalmente ou por interposta pessoa
Medidas cautelares adicionais
Além da prisão preventiva, outras medidas cautelares foram impostas no caso de Deolane Bezerra e demais investigados. Estas medidas têm fundamento no artigo 319 do Código de Processo Penal (CPP) e visam garantir a eficácia da investigação, prevenir a fuga dos investigados e assegurar a aplicação da lei penal:
Entrega de passaportes;
Suspensão do porte de arma de fogo;
Cancelamento do registro de arma de fogo.
Estas medidas cautelares são justificadas pela natureza dos crimes investigados (lavagem de dinheiro, jogos ilegais e organização criminosa) e pela posição social e econômica dos investigados.
Dessa forma, a imposição dessas medidas segue o princípio da proporcionalidade, buscando um equilíbrio entre a necessidade de garantir a eficácia da investigação e o respeito aos direitos individuais dos investigados.
Posicionamento da defesa
A defesa de Deolane Bezerra, representada pela advogada Adélia Soares, emitiu uma nota ressaltando:
- O caráter sigiloso da investigação, conforme a legislação brasileira.
- A confiança de Deolane na Justiça e sua disposição para colaborar com as autoridades.
- A tomada de providências legais para garantir o respeito ao sigilo processual.
- A solicitação de responsabilidade no tratamento das informações, respeitando o princípio da presunção de inocência.
Consequências jurídicas e próximos passos
1.Possibilidade de denúncia:
Caso se considere que as evidências sejam suficientes, o MP pode oferecer denúncia, iniciando a ação penal.
2. Pedidos de Habeas Corpus:
É provável que a defesa impetre Habeas Corpus questionando a legalidade e necessidade da prisão preventiva. Assim, se um juiz de primeiro grau proferiu a decisão, o natural é que um Tribunal Regional Federal julgue o Habeas Corpus.
3. Audiência de custódia:
Conforme o art. 310 do CPP, a audiência servirá para avaliar a legalidade da prisão e a necessidade de sua manutenção.
Conclusão
O caso envolvendo Deolane Bezerra e outros investigados na operação “Integration” revela a complexidade e os desafios enfrentados pelo sistema jurídico brasileiro no combate a crimes financeiros e jogos ilegais na era digital.
Em suma, o caso de Deolane Bezerra serve como um ponto focal para discussões mais amplas sobre a adaptação do sistema legal brasileiro às realidades do mundo digital e globalizado.
À medida que o caso se desenvolve, ele provavelmente estabelecerá precedentes importantes não apenas para o tratamento jurídico de influenciadores digitais e plataformas de apostas online, mas também para a forma como o sistema legal brasileiro lida com crimes econômicos complexos na era digital.
Assim, o desfecho deste caso poderá influenciar significativamente a legislação futura e as práticas de aplicação da lei nessas áreas emergentes.
- Disponível em: <https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2024/09/04/deolane-bezerra-e-presa-no-recife-em-operacao-contra-lavagem-de-dinheiro-e-pratica-de-jogos-ilegais.ghtml>. ↩︎
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