Detento teve um mal súbito e morreu durante um banho de sol no Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília, 20 de novembro de 2023.
Sou o professor Rodolfo Penna, procurador do Estado de São Paulo e professor de Direito Administrativo do Estratégia Carreiras Jurídicas e trouxe um assunto recente para reflexão: Preso pelos atos do dia 08 de janeiro morre na penitenciária da papuda.
O caso
Cleriston Pereira da Cunha, de 46 anos, teve um mal súbito e morreu durante um banho de sol no Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília, na segunda-feira, 20 de novembro.
Ele usava medicação controlada para diabetes e hipertensão, que recebia na prisão, e passava por acompanhamento médico.
Em setembro, a PGR acolheu um pedido do advogado de Cleriston e solicitou a revogação da prisão ao ministro Alexandre de Moraes, relator do caso.
No laudo médico anexado à manifestação, a defesa afirmava que a manutenção da prisão agravaria o estado de saúde de Cleriston, uma vez que havia “risco de morte pela imunossupressão e infecções” devido às consequências da Covid-19.
O pedido não havia sido apreciado até o momento da morte de Cleriston, mesmo passados 80 dias do pedido de liberdade realizado pelo próprio Ministério Público, o que indignou a família, para quem houve descaso do STF com o réu.
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Responsabilidade civil do Estado pela morte de detentos
O fundamento legal da responsabilidade civil do Estado se encontra no art. 37, §6º, CF:
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
O dispositivo citado estabeleceu a responsabilidade civil objetiva do Estado, sendo que este fica obrigado a reparar os danos causados pelos seus agentes, atuando nesta qualidade, independentemente de demonstração de culpa.
Por outro lado, a Lei Maior definiu a responsabilidade civil subjetiva e regressiva dos agentes públicos, que só responderão regressivamente, caso o Estado seja condenado, se demonstrada a culpa ou dolo em sua atuação.
Para configuração da responsabilidade objetiva, é necessária a verificação de três elementos: a) conduta; b) dano; c) nexo causal. Não é necessária a demonstração de dolo ou culpa do agente público responsável.
No entanto, a regra é diversa no caso de omissão da Administração Pública. Na jurisprudência dos tribunais superiores, havia relativa divergência. O STF possui o entendimento de que a responsabilidade civil do Estado nos casos de omissão é objetiva, desde que comprovada a omissão específica, isto é, o descumprimento de um dever específico de agir, como, por exemplo, o dever de preservar a integridade física e psíquica dos detentos sob sua custódia (art. 5º, XLIX).
Neste caso, decidiu que o Estado deve indenizar a família por morte do detento. Vale lembrar, todavia, que a responsabilidade civil objetiva do Estado é fundamentada na teoria do risco administrativo, admitindo-se a exclusão da responsabilidade no caso de demonstração de que não tinha como evitar o evento.
Nos casos de omissão genérica por descumprimento de um dever genérico, como é o caso do dever de fornecer segurança pública, a Corte Suprema assentou o entendimento de que se trata de responsabilidade subjetiva, com fundamento na teoria da culpa anônima. Por exemplo, se um indivíduo é assaltado no ponto de ônibus, em regra, não há um dever específico de o Estado estar naquele local, naquele momento, e evitar o dano.
O poder público possui apenas o dever genérico de fornecer segurança pública, mas não é possível, por inviabilidade fática, estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Neste caso em específico, a responsabilidade civil do Estado, para o STF, é subjetiva com base na culpa anônima. Assim, caberia ao indivíduo prejudicado comprovar que o ente público, tendo sido reiteradamente informado acerca das atividades criminosas que ocorrem no local, não agiu, agiu com atraso ou agiu insuficientemente.
O STJ, por sua vez, vinha decidindo de acordo com a 2ª corrente doutrinária, segundo a qual a responsabilidade civil do Estado por omissão deve ser sempre subjetiva, fundamentada na teoria da culpa anônima.
Não obstante, recentemente, a Corte Superior vem se aproximando do entendimento do STF:
Em primeiro lugar, afirmou que se aplica igualmente ao estado o que previsto no art. 927, parágrafo único, do Código Civil, relativo à responsabilidade civil objetiva por atividade naturalmente perigosa, irrelevante o fato de a conduta ser comissiva ou omissiva.A regra geral do ordenamento brasileiro é de responsabilidade civil objetiva por ato comissivo do Estado e de responsabilidade subjetiva por comportamento omissivo. Contudo, em situações excepcionais de risco anormal da atividade habitualmente desenvolvida, a responsabilização estatal na omissão também se faz independentemente de culpa. REsp 1.869.046-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 09/06/2020, DJe 26/06/2020 |
Em seguida, a segunda turma da Corte Superior aderiu ao posicionamento do STF, afirmando a responsabilidade objetiva do Estado por omissão específica. No caso, julgou pedido de indenização por assassinato de paciente em hospital público, afirmando que havia o dever específico da entidade pública de zelar pela segurança dos pacientes. Desta forma, definiu a responsabilidade objetiva da entidade pública por omissão.
O hospital que deixa de fornecer o mínimo serviço de segurança, contribuindo de forma determinante e específica para homicídio praticado em suas dependências, responde objetivamente pela conduta omissiva.
Nos fundamentos, afirmou: conforme assevera a doutrina, “não é dado ao intérprete restringir onde o legislador não restringiu, sobretudo em se tratando de legislador constituinte”, esta Corte, em diversos julgados, tem procurado alinhar-se ao entendimento do Excelso Pretório de que – inclusive por atos omissivos – o Poder Público responde de forma objetiva, quando constatada a precariedade/vício no serviço decorrente da falha no dever legal e específico de agir.
(…) Logo, é de se concluir que a conduta do hospital que deixa de fornecer o mínimo serviço de segurança e, por conseguinte, despreza o dever de zelar pela incolumidade física dos seus pacientes contribuiu de forma determinante e específica para o homicídio praticado em suas dependências, afastando-se a alegação da excludente de ilicitude, qual seja, fato de terceiro.
Vale destacar que essa foi uma decisão da segunda turma do STJ e não do plenário, mas foi a última decisão da Corte sobre o tema. É importante acompanhar os futuros posicionamentos deste órgão jurisdicional para efetivamente definir a sua adesão ao entendimento da Corte Suprema.
- Responsabilidade civil por morte do preso
No caso de morte de detento, a responsabilidade civil do Estado segue a lógica da conduta omissiva estatal, considerando-se que há um dever jurídico específico de agir do ente público quanto à manutenção da integridade física e psíquica dos detentos, conforme previsão do art. 5º, XLIX, da CF.
Art. 5º (…) XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
De acordo com o STF, o fato de o preso estar sob custódia do Estado, atrai o dever de vigilância e de segurança, devendo o Ente Público zelar pela preservação da incolumidade física e moral do detento. Há ainda a necessidade de que a execução da pena se dê de forma humanizada, garantindo-se os direitos fundamentais.
No entanto, o dever constitucional de proteção ao detento somente se considera violado quando possível a atuação estatal no sentido de garantir os seus direitos fundamentais, pressuposto inafastável para a configuração da responsabilidade civil objetiva estatal, na forma do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal.
Nos casos em que não é possível ao Estado agir para evitar a morte do detento (que ocorreria mesmo que o preso estivesse em liberdade), rompe-se o nexo de causalidade, afastando-se a responsabilidade do Poder Público, sob pena de adotar-se contra legem e a opinio doctorum a teoria do risco integral, ao arrepio do texto constitucional.
STF: É objetiva a responsabilidade da adm. por morte de detento pois se trata de omissão específica de observância do dever do art. 5º, XLIX, CF e do dever de custódia. Poderá ser excluída se comprovar que a morte ocorreria de qualquer maneira, pois exclui o nexo causal e a responsabilidade objetiva do Estado é fundamentada na teoria do risco administrativo (RE 841526/RS, rel. Min. Luiz Fux, 30.3.2016). |
Por outro lado, também deve ser considerada a atuação jurisdicional do STF. Em regra, prevalece o entendimento doutrinário e jurisprudencial pela ausência de responsabilidade civil do Estado por atos tipicamente jurisdicionais.
Entretanto, é apontada uma situação excepcional, em que será possível a responsabilidade civil do estado por ato jurisdicional: trata-se da situação prevista no art. 5º, LXXV, da CF, que dispõe o seguinte:
Art. 5º (…) LXXV – o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença;
Desta forma, o dispositivo aponta duas hipóteses em que o estado pode ser condenado a indenizar o particular por ato jurisdicional, havendo mais uma apontada pela doutrina:
- Erro judiciário;
- Prisão além do tempo fixado em sentença;
- Demora na prestação jurisdicional.
No caso, não se trata de erro judiciário ou prisão além do tempo fixado na sentença. Para que haja responsabilização do Estado por erro judiciário, é necessário que a coisa julgada seja desconstituída por meio de ação rescisória ou revisão criminal. Já a prisão além do tempo fixado na sentença, pressupõe uma condenação e a prisão além do tempo fixado.
Por outro lado, pode-se discutir acerca da demora da prestação jurisdicional, haja vista que havia pedido de liberdade formulado pelo próprio Ministério Público que ficou 80 sem ser avaliado pelo relator Ministro Alexandre de Moraes.
Fontes do Ministério Público avaliam a demora como gravíssima devido à privação de liberdade, agravada pelas condições de saúde do acusado.
Portanto, a responsabilidade civil do Estado pela morte de Cleriston pode ser analisada sob dois aspectos:
- Sob o aspecto da omissão estatal, havendo responsabilidade civil objetiva por descumprimento de dever específico, cabendo ao Poder Público demonstrar que não tinha como evitar o evento morte para se eximir de responsabilidade;
- Sob o aspecto da demora da prestação jurisdicional, haja vista a demora em analisar o pedido de liberdade, devendo-se avaliar se não havia justificativa plausível para a demora, especialmente comparando o caso com o prazo de análise de outros pedidos de liberdade.
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