Decisão histórica: Justiça reconhece paternidade de homem trans em caso de inseminação artificial caseira, reforçando direitos de famílias diversas.
* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu paternidade de homem Trans
O Judiciário Paulista reconheceu a paternidade de um homem trans em um caso que envolveu inseminação artificial caseira. A decisão determinou, ainda, a inclusão dos nomes do genitor e dos avós paternos no registro de nascimento da criança.
A decisão é da 2ª Vara da Família e Sucessões de São Vicente, em São Paulo, e foi proposta pela Defensoria Pública após negativa de registro pelo Cartório de Registro Civil, e teve por fundamento a presunção legal do artigo 1.597, V, do Código Civil, que reconhece como filhos do casamento aqueles concebidos por inseminação artificial heteróloga.
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. Código Civil
O casal, que está junto desde 2019, decidiu pela fertilização caseira em decorrência de limitações financeiras que inviabilizavam o método tradicional (fertilização in vitro).
A inseminação artificial caseira é o procedimento de coleta do sêmen de um doador e sua inseminação imediata em uma mulher com uso de seringa ou outros instrumentos, como cateter, ou seja, sem uma supervisão médica.
Os principais riscos da inseminação artificial caseira são:
- Risco de transmissão de doenças graves (HIV, Hepatites B e C, Zika vírus);
- Risco de contaminação por bactérias e fungos;
- Risco de doenças no bebê;
Importante frisar que a inseminação artificial caseira não é regulada pela legislação pátria, e o Conselho Federal de Medicina proíbe a cobrança pelo material genético.
A Carta Magna, em seu artigo 199, §4º, veda todo tipo de comercialização de material biológico humano.
Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. ... § 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização. CF/88
Após o nascimento do bebê, o cartório recusou o registro da criança em nome de ambos, alegando necessidade de decisão judicial.
A ação ajuizada pela Defensoria Pública teve por fundamento, além do artigo 1.597, V, do Código Civil, o provimento nº 63/17, do CNJ, que autoriza o registro de filhos concebidos por reprodução assistida, abrangendo casais homoafetivos e heteroafetivos.
A pretensão inicial era de reconhecimento da dupla maternidade, mas a mãe não gestante fez a transição de gênero, passando a se identificar como homem trans. Por causa dessa mudança, o defensor Rafael Rocha Paiva Cruz ajustou o pedido na ação, solicitando a declaração da paternidade em relação à filha.
A defensora pública Maria Beatriz de Alcantara Sá, inicialmente responsável pelo caso, asseverou que:
“É importante que se registre que a presente ação busca a declaração de dupla maternidade, exatamente como permitido pelo provimento do CNJ, caso a autora tivesse condições econômicas para fazer o procedimento tradicional de reprodução assistida em clínica especializada. Não seria justo, nem jurídico, que às autoras fosse negado o direito de reconhecer tal filiação por razões socioeconômicas, violando, com isso, o princípio constitucional da igualdade”
A juíza Vanessa Aufiero da Rocha, da 2ª Vara da Família e Sucessões de São Vicente/SP, ressaltou os estudos psicológicos que comprovaram o vínculo socioafetivo entre o agora pai e a criança, destacando que “a situação fática já consolidada e benéfica à criança deve ser prontamente reconhecida e o afeto reconhecido, honrado e tutelado”.
Análise Jurídica paternidade de homem Trans
Você sabe o que significa a paternidade socioafetiva?
A paternidade socioafetiva é um conceito jurídico que reconhece a relação de pai ou mãe com um filho baseada no vínculo afetivo e social, ao invés da ligação biológica.
Portanto, na paternidade socioafetiva uma pessoa assume, de forma voluntária, o papel de pai ou mãe de uma criança, gerando um laço de amor, afeto, carinho, cuidado e convivência que se perpetua no tempo e é reconhecido pela comunidade ante sua notoriedade.
A Principal diferença entre a paternidade biológica e socioafetiva está na origem do vínculo:
Paternidade biológica: A origem do vínculo está na conexão genética;
Paternidade socioafetiva: A origem do vínculo está no afeto, no cuidado e no compromisso de cuidar, proteger e orientar a criança, independentemente de qualquer laço de sangue.
Critérios levados em consideração pelo Judiciário para fins de reconhecimento da paternidade socioafetiva:
- Relação de afetividade duradoura e estável: deve haver uma convivência contínua e significativa entre o pai/mãe socioafetivo(a) e a criança. Essa convivência precisa ser baseada em afeto, cuidado e respeito, demonstrando um vínculo emocional consolidado ao longo do tempo;
- Manifestação pública do vínculo: a relação deve ser publicamente reconhecida e aceita. A sociedade e a comunidade devem reconhecer a pessoa como pai ou mãe da criança, demonstrado através de atos, comportamentos e a forma como a criança e o adulto são tratados no meio social;
- Intenção de assumir a parentalidade: a vontade clara e inequívoca de assumir as responsabilidades de pai ou mãe deve ser evidenciada. Isso inclui o desejo de cuidar, educar e proteger a criança, assumindo todas as responsabilidades legais e morais associadas à parentalidade;
- Melhor interesse da criança: o reconhecimento da paternidade socioafetiva deve sempre considerar o melhor interesse da criança. Isso significa avaliar se o vínculo socioafetivo é benéfico para o desenvolvimento emocional, psicológico e social da criança, assegurando-lhe estabilidade e segurança;
- Inexistência ou coexistência de vínculo biológico: o reconhecimento pode ocorrer tanto na ausência de um vínculo biológico estabelecido quanto em coexistência com um vínculo biológico, permitindo a multiparentalidade (biológica e socioafetiva).
O procedimento de reconhecimento da paternidade socioafetiva pode ser tanto judicial quanto extrajudicial.
Extrajudicialmente o procedimento é feito pelo Cartório de Registro Civil, sendo gratuito e podendo ser solicitado por maiores de 18 anos, acompanhadas de duas testemunhas que atestem a relação de afetividade e convivência.
Importante ressaltar que não deve haver conflito com um vínculo de filiação biológica já estabelecido.
Havendo disputa, ou diante de uma previsão não clara na legislação, deve-se buscar o poder judiciário para o reconhecimento judicial da paternidade socioafetiva.
Neste caso, a ação pode ser proposta pelo pai/mãe socioafetivo(a), pelo menor representado por seu responsável legal ou pelo Ministério Público, e o grande objetivo é a comprovação da existência de uma relação afetiva duradoura e estável entre o(a) pretenso(a) pai/mãe e a criança.
Após o reconhecimento da paternidade socioafetiva, os pais terão direitos e deveres:
Principais direitos dos pais socioafetivos:
- Direito de convivência e guarda
- Direito de participação nas decisões dos filhos
- Direitos sucessórios
- Direito de proteção legal da criança
Principais deveres dos pais socioafetivos:
- Dever de sustento do filho
- Dever de cuidado e educação
- Dever de proteção
- Dever de convivência
O Supremo Tribunal Federal, no tema 622, fixou a tese de que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios. É a chamada multiparentalidade.
O STJ decidiu, no REsp 1.487.596, que os efeitos jurídicos das paternidades biológica e socioafetiva devem ser equivalentes.
A possibilidade de cumulação da paternidade socioafetiva com a biológica contempla especialmente o princípio constitucional da igualdade dos filhos (art. 227, §6º, da CF). Conferir status diferenciado entre o genitor biológico e o socioafetivo é, por consequência, conceber um tratamento desigual entre os filhos e, portanto, uma prática vedada pelo ordenamento jurídico.
Em outro julgado relevante (REsp n. 2.107.638), o STJ decidiu que é juridicamente possível o pedido de reconhecimento de filiação socioafetiva entre avós e neto, tendo em vista não haver qualquer vedação legal expressa no ordenamento jurídico a esse respeito.
Em resumo, o tema tem ganhado novos contornos a cada dia, e deve ser estudado, interpretado e aplicado sempre visando proteger o menor, reconhecendo o afeto, o carinho e o cuidado dos pais, sejam eles biológicos ou não.
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