PASSOU A BOIADA NO RS?

PASSOU A BOIADA NO RS?

STF analisa se há relação entre a flexibilização da legislação ambiental gaúcha e a tragédia climática no Estado do Rio Grande do Sul (RS).

*Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

O governador do Estado do RS, Eduardo Leite, está sendo acusado de ter, recentemente, flexibilizado a legislação ambiental gaúcha, e que essa alteração teria contribuído para a tragédia climática no Estado.

Nesse contexto, o STF, dando prosseguimento a uma ação ajuizada na Corte pelo Partido Verde, intimou o Estado do RS e a Assembleia Legislativa do Estado para prestar informações, no prazo de 10 dias. Isso possibilita definir se há, de fato, relação entre a flexibilização da legislação ambiental (em especial normas que tratam das áreas de preservação permanente) e a tragédia climática que assola o Estado gaúcho.

Portanto, a Suprema Corte irá decidir se as alterações realizadas na legislação ambiental estadual são constitucionais ou se elas ferem, dentre outros, os princípios da vedação do retrocesso ambiental (efeito cliquet) e do desenvolvimento sustentável.

Entendendo melhor o caso

Fato 1

Em setembro de 2019 o governador Eduardo Leite (PSDB-RS) apresentou o projeto de um novo Código Ambiental para o Rio Grande do Sul. 75 dias depois, o projeto, que alterava cerca de 500 pontos da legislação, recebeu aprovação pela Assembleia Legislativa. Apenas a título comparativo, o código anterior passou por nove anos de discussão antes de uma aprovação, em 2000.

Especialistas apontam uma série de retrocessos ambientais, dentre os quais destaca-se a flexibilização de licenças ambientais, com o advento da Licença Ambiental de Compromisso (LAC).

Para se obter esta licença, bastaria o empresário preencher uma autodeclaração afirmando que cumpre os requisitos necessários, e a licença seria deferida de forma automática.

Fato 2

Outro ponto foi a flexibilização da proteção ao Pampa, principal bioma do Rio Grande do Sul, responsável por regular ciclos de água e absorver carbono, além da facilitação da instalação de mineradoras na região.

Fato 3

Dando continuidade à essas alterações normativas, o governador Eduardo Leite sancionou, em 2024, uma lei (decorrente do Projeto de Lei 151/2023) alterando o recente código ambiental do Estado. Tal modificação flexibiliza regras de proteção das matas ciliares das áreas de preservação permanente hídrica, para que agricultores possam instalar reservatórios de água (construção de barragens e açudes em Áreas de Preservação Permanente APP no Rio Grande do Sul).

Com a alteração, a norma agora considera de utilidade pública/interesse social obras como a construção de barragens para a reserva de água em irrigação de lavouras. Com isso, os reservatórios poderiam ser feitos dentro de APP’s.

A APP é uma área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas, conforme artigo 3º, II, do CFlo. A regra é a não intervenção nessas áreas, sendo permitida, de forma excepcional, a intervenção para fins de utilidade pública, interesse social e baixo impacto, nos termos do previsto no artigo 8º, do Código Florestal.

Portanto, as alterações verificadas no Estado do RS acabaram por aumentar as hipóteses de intervenção nessas áreas tão importantes para o meio ambiente.

Produtores x ambientalistas

Os produtores rurais alegam que a alteração é bem-vinda, pois estabelece um importante instrumento para o desenvolvimento do agronegócio e para que não tenham tantas perdas em períodos de estiagem.

Do outro lado, os ambientalistas veem a medida como altamente prejudicial ao meio ambiente, já que contribuiria para a degradação das APP’s hídricas. Inclusive relacionam esse conjunto de mudanças ambientais com o agravamento da questão climática, ou seja, direta ou indiretamente essa nova política ambiental no RS teria contribuído para o aumento da tragédia que devasta o Estado.

Para completar o quadro de alterações ambientais no Estado, em 2020 concluiu-se oficialmente a extinção da Fundação Zoobotânica do RS, uma das instituições de pesquisa em meio ambiente mais respeitadas do Brasil. Essa extinção, segundo especialistas, prejudica a pesquisa e a conservação ambiental no Estado.

Rio Grande do Sul
Fundação Zoobotânica – Rio Grande do Sul (RS)

Princípio da vedação ao retrocesso ambiental

A proibição do retrocesso ambiental (princípio constitucional implícito) é uma garantia constitucional relacionada a progressão na tutela jurídica do bem ambiental, ou seja, deve haver um contínuo incremento na política de proteção do meio ambiente.

Os direitos fundamentais, dentre eles o direito a um meio ambiente equilibrado, são marcados pela estabilidade, não podendo o Estado atuar de modo a fragilizar o seu exercício. Portanto, é proibido ao legislador infraconstitucional, bem como ao constituinte derivado, abandonar os progressos já consolidados.

A fragilização de tais conquistas vai de encontro (choca-se) com o desenvolvimento nacional almejado. Portanto, há a necessidade de um gradual melhoramento na garantia dos direitos sociais e ambientais existentes, em um processo de consolidação constante.

Pontos positivos e negativos do princípio

O princípio possui conteúdos positivo e negativo. Pelo conteúdo positivo, tanto o legislador quanto o aplicador da norma estão obrigados a manter uma postura que visa aumentar progressivamente o grau de concretização das normas socioambientais. Isso poderia ser através de criação de novas leis, aplicação dos instrumentos existentes, interpretação ampliativa das normas de proteção etc.

Já pelo conteúdo negativo, tais agentes estariam impossibilitados de implementar mudanças que enfraqueçam o processo de concretização dos direitos fundamentais em questão. Ou seja, legislador e aplicador estariam proibidos de suprimir normas que garantem tais direitos, além de ser vedada a interpretação restritiva dos direitos socioambientais).

O legislador fica, portanto, refém das conquistas já consolidadas, não podendo eliminá-las sem que haja a criação de um mecanismo equivalente ou substituto. Não há desenvolvimento sem que haja a proteção e garantia dos direitos já conquistados.

A observância do princípio da vedação do retrocesso ambiental é fundamental para se garantir as condições mínimas de vida para as gerações futuras. Tal princípio vincula todos os Poderes da República. O sucateamento ou a redução drástica da estrutura administrativa ligada à preservação do meio ambiente seria uma forma de retrocesso ambiental por parte da Administração Pública, o que é vedado pela Constituição Federal e passível, portanto, de controle jurisdicional.

O princípio da proibição de retrocesso ambiental vincula tanto a função legislativa, quanto a administrativa e a jurisdicional. Referido princípio não tem o poder, entretanto, de engessar o legislador ou o administrador público, ainda mais quando se necessita de pequenas adaptações ou modificações. A proibição recai quando se suprime o núcleo essencial da proteção socioambiental.

Aplicação do princípio pelo STF

Mas cuidado, pois o STF tem aplicado o princípio da vedação do retrocesso ambiental com parcimônia, em harmonia com outros princípios, como o da livre iniciativa. Isso se deve ao fato de que não existem princípios absolutos, possibilitando, assim, sua flexibilização a depender do caso concreto.

O Tribunal não enxerga, portanto, os bens naturais de maneira estática, engessada, mas aptos à exploração de forma sustentável. Ou seja, a conservação do meio ambiente não acarreta a ausência completa de impacto humano sobre a natureza. Veja só:

“11. Por outro lado, as políticas públicas ambientais devem conciliar-se com outros valores democraticamente eleitos pelos legisladores como o mercado de trabalho, o desenvolvimento social, o atendimento às necessidades básicas de consumo dos cidadãos etc. Dessa forma, não é adequado desqualificar determinada regra legal como contrária ao comando constitucional de defesa do meio ambiente (art. 225, caput, CRFB), ou mesmo sob o genérico e subjetivo rótulo de retrocesso ambiental, ignorando as diversas nuances que permeiam o processo decisório do legislador, democraticamente investido da função de apaziguar interesses conflitantes por meio de regras gerais e objetivas…

15. A preservação dos recursos naturais para as gerações futuras não pode significar a ausência completa de impacto do homem na natureza, consideradas as carências materiais da geração atual e também a necessidade de gerar desenvolvimento econômico suficiente para assegurar uma travessia confortável para os nossos descendentes…”

(STF, ADC 42, DJe 13/08/2019)

Logo, vamos acompanhar se o STF seguirá a linha que considera válidas as alterações ambientais realizadas pelo Estado do Rio Grande do Sul. Do contrário, a Corte julgará tais mudanças, consubstanciadas em uma política ambiental liberal, inconstitucionais por afronta ao princípio da vedação do retrocesso ambiental.

O tema é instigante e com boas chances de surgir em provas de carreiras jurídicas. Portanto, muita atenção!

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