* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu
Um caso inusitado chamou a atenção do mundo jurídico recentemente: a parte de um processo judicial acusou o juiz sentenciante de ter utilizado a ferramenta de inteligência artificial ChatGPT para confeccionar a sentença.
Tratava-se de embargos à execução em face do Banco Bradesco, em que se discutia a abusividade dos juros.
Julgou-se a ação improcedente, tendo o juiz afastado a abusividade dos juros cobrados pelo banco.
Ao apelar, a parte autora alegou, em sede de preliminar de recurso, a nulidade da sentença, tendo em vista o suposto uso do ChatGPT pelo magistrado.
Argumentos
A apelante levantou os seguintes argumentos voltados a fundamentar a nulidade processual:
1º) O art. 5º, LIII, da CF/88 (ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente): a autoridade competente para julgar o processo da apelante é o cidadão investido no cargo de magistrado, e não uma inteligência artificial;
2º) O art. 487, do CPC: o artigo prevê que o mérito será julgado quando o juiz tomar uma das atitudes indicadas nos incisos do artigo. O juiz, e não a inteligência artificial;
3º) O art. 5º, XXXVII, da CF/88: o inciso constitucional prevê que não haverá juízo ou tribunal de exceção. O julgamento pela inteligência artificial estaria fazendo às vezes de juízo de exceção;
4º) O art. 8º, item 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos: a Convenção prevê que toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. A utilização do ChatGPT estaria retirando da parte o direito de ser ouvida por uma juiz competente, de carne e osso.
5º) O art. 5º, caput, da CF/88: todos são iguais perante a lei. O uso do cálculo de probabilidade de uma decisão juridicamente correta feita pela inteligência artificial acabaria violando o princípio da igualdade.
Resumindo a alegação da parte apelante:
Descoberta do uso da ferramenta
Mas como a parte chegou à conclusão de que a sentença teria sido confeccionada através do ChatGPT? Usando o próprio ChatGPT!
A apelante teria submetido a sentença ao ChatGPT, que deu o seguinte resultado:
A probabilidade de o texto que você reproduziu ter sido escrito, total ou parcialmente, por uma inteligência artificial, é média a grande.
Os fundamentos utilizados pela IA para essa conclusão foram1:
- Estrutura Técnica e Formal: o texto está estruturado com grande precisão técnica, com sequências de citações legais e explicações doutrinárias concisas, características comuns em textos gerados por IAs treinadas para auxiliar em consultas jurídicas;
- Uso Extensivo de Jurisprudência e Referências Normativas: modelos de IA treinados em grandes bases de dados de jurisprudência e doutrina costumam replicar exatamente esse tipo de estrutura, citando súmulas e decisões de tribunais superiores para fundamentar explicações jurídicas;
- Linguagem Jurídica Complexa: a escolha de palavras e o tom impessoal também são indicativos. AIA tende a replicar linguagem formal e técnica, especialmente em áreas como o direito, onde a interpretação precisa de normas é fundamental. Contudo, sem ferramentas específicas para análise de autoria de texto ou confirmação com a fonte original, é impossível afirmar com certeza se uma IA escreveu o texto ou não. Essa avaliação se baseia apenas na observação do estilo e da estrutura.
Resposta do Tribunal de Justiça
O Tribunal de Justiça de São Paulo negou provimento ao apelante. Ele considerou a alegação de nulidade muito grave, e rejeitando, por fim, os embargos à execução.
O relator do recurso destacou que “O uso da inteligência artificial para auxílio nas atividades judiciárias é amplamente debatida e aceita desde o lançamento dessas ferramentas. Em rápida pesquisa online, é possível encontrar notícias de vários tribunais brasileiros desde o ano de 2020, dispondo sobre a utilização de IA.
Por óbvio, apesar de ser um meio de padronização e revisão de pronunciamentos judiciais, o seu uso deve ser de forma ética e complementar à atuação dos servidores e magistrados, não substituindo o trabalho humano.”
O desembargador ressaltou, ademais, que a acusação é “muito grave”. Portanto, deveria estar embasada em provas inequívocas, o que não ocorreu no caso concreto.
A conclusão do tribunal foi a de que não houve qualquer indício de que a sentença tenha sido prolatada por meio de Inteligência Artificial.
Assim, constou na ementa do acórdão:
“Apelação. Embargos à Execução. Crédito Consignado. Abusividade de Juros. Sentença de Improcedência. Nulidade. Uso de inteligência artificial. Recurso da autora. Preliminar de Nulidade. Apelante sustenta que a sentença é nula por ter sido elaborada por inteligência artificial. Inexistência de provas do alegado. Sentença bem fundamentada, com linguagem polida e em conformidade com os entendimentos consolidados por este E. Tribunal...”
Por fim, podemos concluir, em tese, que se restasse comprovado que a sentença fora feita por Inteligência Artificial, ao invés do magistrado, seria mesmo caso de anulação da decisão, por violação ao direito fundamental do devido processo legal, que determina o julgamento por um juiz natural e competente, e não por um algoritmo de IA.
Ótimo tema para surgir em provas de direito processual e direito constitucional.
- Trecho da apelação do processo nº 1009223-69.2024.8.26.0405 ↩︎
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