Quem matou Odete Roitman e o devido processo legal

Quem matou Odete Roitman e o devido processo legal

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Quem matou Odete Roitman?

O remake da novela “Vale Tudo”, da Rede Globo, está dando o que falar na sua reta final, e boa parte do país está se perguntando: “Quem matou Odete Roitman?”

Mas o que tudo isso tem a ver com o Direito? Calma, que vou te contar tudo.

A Ordem dos Advogados do Brasil respondeu a um comentário que questionava a ausência de causídicos em uma cena em que personagens prestam depoimento sobre o assassinato da empresária fictícia Odete Roitman, interpretada pela atriz Debora Bloch.

Acerca da importância da assistência jurídica em situações de interrogatório, a OAB respondeu: “Na vida real, isso não valeria. A advocacia é indispensável para garantir direitos”.

devido processo legal
As cenas em questão mostraram Heleninha (Paolla Oliveira), Maria de Fátima (Bella Campos), Marco Aurélio (Alexandre Nero), César (Cauã Reymond) e Celina (Malu Galli) sendo interrogados pela polícia sem acompanhamento jurídico.

A OAB, citando o art. 133, da CF, reforçou o direito de toda pessoa à assistência de um advogado em qualquer ato de investigação: “Ninguém deve ser ouvido em investigação, interrogatório ou audiência sem assistência jurídica. É isso que garante um processo justo e equilibrado”.

CF/88

Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

Análise jurídica

De fato, quem realmente matou Odete Roitman não importa. Contudo, é importante saber sobre pontos específicos relacionados ao devido processo legal, em especial ampla defesa e defesa técnica, direito de escolha do defensor e ausência de intimação pessoal do acusado quando há renúncia do advogado, já que esses pontos despencam em provas de concurso. Portanto, muita atenção!

A Constituição Federal garante, em seu art. 5º, que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, o que engloba, necessariamente, o contraditório e a ampla defesa.

CF/88

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

...

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Contraditório → Princípio pelo qual as partes de um processo devem ter o direito de se manifestar, contestar e apresentar provas contra as alegações da outra parte para garantir um processo justo.

Esse princípio assegura que todas as partes tenham a oportunidade de serem informadas sobre as provas e alegações apresentadas pela outra parte, contestar e apresentar seus próprios argumentos e provas e ter conhecimento do que é apresentado no processo e poder influenciar na decisão final.

Ampla defesa  Princípio que garante ao acusado em um processo (judicial ou administrativo) a possibilidade de utilizar todos os meios e recursos legais disponíveis para se defender e combater as acusações, o que inclui o direito de apresentar provas, arrolar testemunhas, juntar documentos, contestar alegações, recorrer de decisões e contar com assistência jurídica para ter a mais completa defesa possível.

Defesa pessoal x Autodefesa

Defesa pessoal e autodefesa não se confundem. A defesa pessoal é o patrocínio próprio, ou seja, quando o acusado, possuindo habilitação técnico-jurídica, postula e debate em causa própria.

Já a autodefesa não implica a habilitação técnico-jurídica, ou seja, o próprio acusado exerce sua defesa sem ter a habilitação como advogado, inscrito na OAB.

A autodefesa se manifesta no interrogatório e no direito à audiência, pelo qual o acusado tem a prerrogativa e o direito de estar presente à audiência, quando da oitiva das testemunhas de acusação e defesa.

Defesa técnica ou material

A defesa material ou técnica abarca a defesa no sentido técnico-profissional (atuação de um profissional habilitado, como um advogado ou defensor público).

O direito à defesa se insere no devido processo legal ao lado de outras garantias como a do contraditório e do nemo tenetur ou presunção de inocência.

Ela é obrigatória e indeclinável, visando garantir a ampla defesa e o contraditório, assegurando que o acusado tenha conhecimento legal e técnicas processuais para se defender de forma efetiva.

O artigo 261 do Código de Processo Penal determina que nenhum acusado será processado ou julgado sem um defensor.

CPP

Art. 261.  Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor.

Parágrafo único. A defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, será sempre exercida através de manifestação fundamentada.           

Defesa no inquérito policial

O STJ entende que a presença de advogado no inquérito policial não é obrigatória, mas é um direito do investigado e se torna obrigatória para o interrogatório do próprio investigado caso ele constitua uma defesa.

O advogado tem o direito de ter acesso aos autos do inquérito policial, com exceção das peças sob sigilo, para acompanhar as investigações e as provas coletadas.

A súmula vinculante 14, do STF, aduz que “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.

Importante ressaltar que a atuação do advogado é fundamental para garantir os direitos do acusado e acompanhar e garantir a legalidade do procedimento.

O inquérito policial é um procedimento instrumental e administrativo realizado pela polícia judiciária destinado a esclarecer os fatos delituosos relatados na notícia crime, a fim de que o titular da ação penal, Ministério Público ou ofendido, possa ingressar em juízo.

Podemos identificar duas finalidades principais do inquérito policial:

1ª) Apuração de infrações penais visando obter a justa causa (lastro probatório mínimo), posto que a denúncia ou a queixa será rejeitada quando faltar justa causa para o exercício da ação penal (art. 395, III, CPP);

2ª) Evitar que pessoas inocentes sejam formalmente acusadas e tenham que responder a um processo penal.

Características do inquérito policial

Como bem destacado pela professora Marcela Neves Suonski Daronch1, o inquérito policial é um procedimento:

• Escrito

    Segundo o art. 9º do CPP, todas as peças do inquérito policial serão reduzidas a escrito, devendo ser rubricadas. Deve-se escrever o inquérito para possibilitar controle de legalidade e garantir direitos ao investigado.

    • Dispensável

      De acordo com o art. 39, §5º do CPP, o órgão do Ministério Público dispensará o inquérito se com a representação forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal.

      • Sigiloso

        O art. 20 do CPP prevê que a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou o sigilo exigido pelo interesse da sociedade. Assim, diferentemente do processo penal que é público, o inquérito policial é sigiloso, até mesmo para que se possa garantir a intimidade da pessoa investigada.

        • Inquisitivo

          O inquérito policial é inquisitivo, uma vez que as atividades persecutórias se concentram nas mãos de uma única autoridade. Para a sua atuação, essa autoridade dispensa de provocação de quem quer que seja, podendo e devendo agir de ofício, empreendendo, com discricionariedade, as atividades necessárias ao esclarecimento do fato criminoso e da sua autoria.

          • Oficial

            A oficialidade significa dizer que se trata de investigação que autoridades e agentes integrantes dos quadros públicos devem realizar. Além disso, veda-se a delegação da atividade investigatória a particulares, inclusive por força da própria Constituição Federal.

            • Oficioso

              O inquérito policial, nos crimes cuja ação penal é pública incondicionada, constitui procedimento oficioso. Nesses casos, a atuação da autoridade policial deve se dar de ofício, ou seja, independentemente de provocação

              • Discricionário

                O inquérito policial é discricionário porque o Delegado de Polícia conduz as investigações da forma que melhor lhe aprouver. A autoridade policial tem certa margem de liberdade na condução dos trabalhos investigativos, agindo sempre, por óbvio, dentro dos limites legais.

                Ausência de intimação pessoal do réu após renúncia da defesa

                A súmula 708 do STF aduz que “É nulo o julgamento da apelação se, após a manifestação nos autos de renúncia do único defensor, o réu não foi previamente intimado para constituir outro”. A súmula garante o efetivo direito ao devido processo legal.

                Portanto, a falta de intimação pessoal do réu para que constitua um novo defensor, após a renúncia do anterior, gera uma nulidade absoluta por quebra do princípio do devido processo legal por falta de defesa técnica.

                Já a sumula 523 do STF prescreve que “No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”.

                Veja como já se cobrou o tema em prova:

                UFG – 2024 – TJAC
                
                No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade
                
                a) absoluta, assim como a sua deficiência o anulará independentemente de prova de prejuízo para o réu.
                
                b) relativa, assim como a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu.
                
                c) absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu.
                
                d) relativa, mas a sua deficiência o anulará independentemente de prova de prejuízo para o réu.

                Gabarito: C

                Ótimo tema para provas de direito processual penal.


                1. https://cj.estrategia.com/portal/inquerito-policial-v2/ ↩︎

                Quer saber quais serão os próximos concursos?

                Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!
                0 Shares:
                Você pode gostar também