De início, a proposta de criação do Exame Nacional de Proficiência em Medicina (ENPM), defendida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e por parlamentares da oposição, suscita relevante debate jurídico-constitucional sobre os limites da regulamentação estatal no acesso ao exercício profissional.
Isto porque, à semelhança do Exame de Ordem dos Advogados do Brasil, o ENPM teria caráter eliminatório, impedindo os reprovados de exercerem a medicina. Isso difere do recém-criado Enamed, que possui função meramente avaliativa e classificatória.
Nesse sentido, o objetivo aqui é detalhar: isso seria constitucional à luz dos entendimentos do STF?
O direito fundamental à liberdade profissional e suas limitações constitucionais
Lembremos que o inciso XIII do art. 5º da Constituição Federal estabelece que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
Como se sabe, trata-se de norma de eficácia contida, que consagra uma liberdade fundamental, mas admite restrições por meio de lei.
Inclusive, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido consistente em reconhecer que esta liberdade não é absoluta, encontrando limites na própria reserva legal qualificada contida no dispositivo constitucional. Como assentado na ADPF 419, relatada pelo Ministro Edson Fachin:
"É legítima restrição legislativa ao exercício profissional quando indispensável à viabilização da proteção de bens jurídicos de interesse público igualmente resguardados pela própria Constituição, de que são exemplos a segurança, a saúde, a ordem pública, a incolumidade individual e patrimonial."
Dessa maneira, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu critérios para avaliar a legitimidade dessas restrições, que devem:
(i) atender aos critérios de adequação e razoabilidade; (ii) ser justificadas por razão de interesse público; e (iii) ser sustentadas em parâmetros técnicos idôneos à mitigação de riscos sociais próprios do exercício da profissão.
O paradigma do Exame da OAB e sua constitucionalidade reconhecida
Vale lembrar que no julgamento do RE 603.583 (Tema 241 da Repercussão Geral), o STF reconheceu a constitucionalidade do Exame de Ordem como requisito para o exercício da advocacia. O Ministro Marco Aurélio, relator do caso, enfatizou que:
"Alcança-se a qualificação de bacharel em direito mediante conclusão do curso respectivo e colação de grau. (...) O Exame de Ordem (...) mostra-se consentâneo com a CF, que remete às qualificações previstas em lei."
Ora, o STF considerou que, dada a relevância social da advocacia e seu potencial impacto nos direitos de terceiros, a imposição do exame como requisito adicional para o exercício profissional encontra amparo na reserva legal prevista no art. 5º, XIII, da Constituição.
Desta feita, este precedente é particularmente relevante para a análise do ENPM. Isso porque estabelece a possibilidade constitucional de se exigir uma avaliação adicional, além do diploma universitário, para o exercício de profissões com alta responsabilidade social.
Análise comparativa entre diferentes profissões regulamentadas
Apenas a título ilustrativo, vale salientar que a jurisprudência do STF revela uma abordagem diferenciada para distintas categorias profissionais. Ela baseia-se principalmente no potencial lesivo à sociedade derivado do exercício inadequado da profissão.
Por exemplo, no caso dos jornalistas (RE 511.961), o tribunal considerou inconstitucional a exigência de diploma para o exercício da profissão. A natureza intrinsecamente ligada à liberdade de expressão foi o destaque da decisão.
De forma similar, no caso dos músicos (ADPF 183 e RE 795.467), considerou-se que a inexistência de potencial lesivo à coletividade tornava desproporcional a restrição por conselho profissional.
Lado outro, para profissões da área da saúde, o entendimento tem sido diverso.
No RE 1.156.197 (Tema 1.049), o STF reconheceu a constitucionalidade da exigência de responsabilidade técnica de farmacêutico por drogarias.
Já na ADI 6.260, relatada pelo Ministro Dias Toffoli, o tribunal considerou constitucionais as restrições impostas ao exercício da profissão de educação física, reconhecendo que:
"É certo que tais medidas são proporcionais, necessárias e instrumentais à fiscalização da atividade regulamentada, tendo em vista a segurança e o bem-estar da população em geral."
Especificidades da medicina e o interesse público na qualificação médica
Como se noticia, a medicina se insere indiscutivelmente na categoria das profissões cujo exercício inadequado pode acarretar danos graves e irreversíveis a terceiros.

Ora, o bem jurídico tutelado – a saúde e a vida humana – goza de especial proteção constitucional, sendo a saúde um direito social fundamental (art. 6º, CF) e um “direito de todos e dever do Estado” (art. 196, CF).
Ademais, cita-se que a crescente expansão dos cursos de medicina no Brasil (aumento de 127% entre 2010 e 2023) e a piora nos indicadores de qualidade evidenciada pelo Enade 2023 (onde 20% dos cursos não atingiram patamar considerado satisfatório) constituem elementos fáticos que poderiam justificar, sob a ótica do interesse público, a imposição de mecanismos adicionais de controle de qualidade para o ingresso na profissão1.
Requisitos para a constitucionalidade do ENPM
À luz dos precedentes do STF e dos princípios constitucionais aplicáveis, é possível delinear requisitos que o ENPM deveria observar para ser considerado constitucional:
- Previsão legal adequada: a restrição ao exercício profissional deve ser estabelecida por lei em sentido formal, observando o princípio da reserva legal.
- Proporcionalidade: o exame deve ser proporcional ao fim almejado, evitando restrições excessivas ou desconexas com a realidade do exercício médico.
- Adequação técnica: as avaliações devem refletir adequadamente as competências necessárias ao exercício seguro da medicina, baseando-se em critérios técnicos objetivos.
Possíveis questionamentos constitucionais
Apesar dos fundamentos que poderiam sustentar sua constitucionalidade, o ENPM estaria sujeito a questionamentos relevantes:
- Autonomia universitária: o artigo 207 da Constituição Federal assegura às universidades autonomia didático-científica. Assim, seria possível interpretar o ENPM como uma ingerência indevida na autonomia das instituições para definir e avaliar seus currículos.
- Delegação de competência ao CFM: a proposta de atribuir ao CFM a responsabilidade pela aplicação do exame poderia suscitar questionamentos semelhantes aos enfrentados na ADI 1.717. A Ação declarou inconstitucional a delegação de atividades típicas de Estado a entidades privadas.
O paralelo com o Exame da OAB e a sustentabilidade constitucional do ENPM
Em resumo, o principal fundamento para a constitucionalidade do ENPM residiria no paralelo com o Exame da OAB, cuja legitimidade constitucional o STF reconheceu expressamente.
Se a advocacia, por sua relevância social, justifica uma avaliação adicional além do diploma para o exercício profissional, a medicina, que lida diretamente com a vida e a saúde humanas, apresentaria justificativa ainda mais robusta para tal exigência.
Constitucionalidade do Exame Nacional de Proficiência em Medicina
Argumentos pela Constitucionalidade | Argumentos pela Inconstitucionalidade |
Precedente do STF sobre o Exame da OAB – No RE 603.583 (Tema 241), o STF reconheceu expressamente a constitucionalidade de exame profissional como requisito adicional ao diploma universitário. | Autonomia universitária – O art. 207 da CF garante às universidades autonomia didático-científica, podendo o exame configurar ingerência indevida na competência das instituições para definir e avaliar seus currículos. |
Reserva legal qualificada – O art. 5º, XIII da CF prevê expressamente a possibilidade de qualificações profissionais estabelecidas por lei, constituindo norma de eficácia contida. | Reserva de mercado – O exame poderia configurar mecanismo de reserva de mercado ou controle corporativista de acesso à profissão, em detrimento dos princípios da livre iniciativa e concorrência. |
Alto potencial lesivo da medicina – O exercício inadequado da medicina pode causar danos graves e irreversíveis a terceiros, justificando maior rigor no controle de acesso à profissão. | Direito adquirido/Ato jurídico perfeito – Médicos já graduados poderiam alegar violação ao ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, CF), pois obtiveram seu diploma sob regime jurídico que não previa o exame. |
Proteção à saúde como direito fundamental – A saúde é direito social fundamental (art. 6º) e “direito de todos e dever do Estado” (art. 196), justificando medidas protetivas mais rigorosas. | Restrição desproporcional – A exclusão completa do exercício profissional poderia ser considerada excessiva quando comparada ao objetivo de garantir qualidade, existindo medidas menos gravosas disponíveis. |
Jurisprudência do STF em profissões da saúde – Em casos como o RE 1.156.197 (farmacêuticos) e ADI 6.260 (educação física), o STF tem sido deferente a restrições em profissões da área da saúde. | Delegação indevida ao CFM – A atribuição ao CFM para aplicar o exame poderia violar o precedente da ADI 1.717, que vedou a delegação de atividades típicas de Estado a entidades privadas. |
Deterioração da qualidade do ensino médico – O aumento de 127% no número de cursos e a piora nos indicadores de qualidade (20% insatisfatórios no Enade 2023) constituem justificativa fática para maior controle. | Ausência de alternativas profissionais – Diferentemente da advocacia, onde bacharéis reprovados têm opções profissionais, a medicina tem na atuação clínica seu núcleo essencial, tornando a reprovação mais gravosa. |
Critérios da ADPF 419 – A restrição atenderia aos critérios estabelecidos pelo STF: (1) adequação, (2) razão de interesse público e (3) mitigação de riscos sociais próprios do exercício profissional. | Precedentes liberalizantes do STF – No caso dos jornalistas (RE 511.961) e músicos (ADPF 183), o STF adotou orientação restritiva quanto às limitações ao livre exercício profissional. |
ADI 5.035 (Mais Médicos) – O STF já reconheceu a “grave carência de assistência médica” como justificativa para medidas excepcionais na área de formação médica. | Princípio da intervenção mínima – O Estado deve adotar medidas menos invasivas sempre que possível, como fiscalização mais rigorosa das instituições de ensino ou reformulação curricular. |
- ALFANO, Bruno. Enamed: CFM e relator mantêm defesa de ‘OAB para médicos’ mesmo depois de governo criar nova avaliação. O Globo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/noticia/2025/04/24/enamed-cfm-e-relator-mantem-defesa-de-oab-para-medicos-mesmo-depois-de-governo-criar-nova-avaliacao.ghtml>. ↩︎
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