No plano legislativo, as engrenagens do Direito Penal movem-se para dar resposta a uma das mais profundas chagas sociais: a violência contra a mulher.
A Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados, em gesto de inequívoca relevância, aprovou proposta que eleva o feminicídio ao status de crime autônomo.
Dessa forma, desloca-se tal crime do rol das qualificadoras do homicídio para que, de per se, possa receber a devida censura punitiva. A mudança legislativa, de inegável importância, estabelece a pena em 20 a 40 anos de reclusão, em contraste com os atuais 12 a 30 anos.
Projeto de Lei 4266/23
A relatora, deputada Laura Carneiro (PSD-RJ), ao dar parecer favorável ao Projeto de Lei 4266/23, da senadora Margareth Buzetti (PSD-MT), enfatizou a necessidade de desvincular o feminicídio do homicídio qualificado.
A lógica do feminicídio, distinta e marcada por singularidades que remontam à violência misógina, não pode se enclausurar no conceito genérico de homicídio. Carneiro assevera:
“O feminicídio reflete uma estrutura de violência enraizada que transcende o simples ato de matar; é, antes, a expressão máxima da opressão de gênero.”
A proposta vai além. Ao duplicar as penas para crimes contra a honra e triplicar para as agressões sem lesão corporal, quando praticadas contra a mulher, consagra uma resposta mais rígida às nuances da violência de gênero.
Ademais, o descumprimento de medidas protetivas passará a sujeitar o infrator a uma pena de seis meses a dois anos. Assim, é possível sancionar com rigor a violação das garantias judiciais concedidas à vítima.
Há também um avanço no campo das consequências extrapenais. A perda de cargos públicos e do poder familiar se perfaz como medida simbólica e eficaz de reprovação social, ressaltando que a sociedade brasileira não compactua com a violência doméstica ou familiar.
Como observa a relatora, a perda do poder familiar mitiga o sofrimento das vítimas e preserva a saúde mental dos filhos. Assegura-se, assim, que o agressor não continue a exercer influência nefasta sobre a prole.
Por fim, o endurecimento das condições para a progressão de regime e para o gozo de benefícios como as visitas conjugais e “saidões” denota a intenção de resguardar a integridade das vítimas e seus familiares. O condenado, para progredir de regime, deverá cumprir ao menos 55% da pena — medida que reforça o caráter punitivo e dissuasório do novo tipo penal.
Centralidade da proteção à mulher
Em síntese, o projeto, ao revisitar o Código Penal, a Lei de Execuções Penais e a Lei Maria da Penha, sinaliza para um recrudescimento das penas e para a centralidade da proteção à mulher no ordenamento jurídico brasileiro.
Se aprovado pelas demais comissões e pelo Plenário, estabelecerá um novo paradigma na luta contra a violência de gênero. Haverá um reconhecimento da autonomia e da gravidade ímpares do feminicídio enquanto expressão da mais cruel e deletéria face da dominação masculina.
Sobre o feminicídio: o que o candidato deve estudar para os concursos públicos?
Ponto inicial do feminicídio no ordenamento jurídico brasileiro
A introdução do feminicídio no ordenamento jurídico brasileiro, por meio da Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015, marca um ponto de inflexão no tratamento penal dos crimes cometidos contra mulheres em razão de sua condição de gênero.
Antes dessa modificação legislativa, a violência letal contra a mulher era absorvida pelo tipo penal do homicídio qualificado, em sua forma genérica. Tal abordagem, contudo, mostrava-se insuficiente para abarcar as particularidades de um crime cuja motivação se enraíza em padrões históricos de opressão e misoginia.
O contexto que impulsionou a criação da Lei nº 13.104/2015 está intimamente ligado ao crescente reconhecimento, tanto no Brasil quanto no cenário internacional, da violência de gênero como um fenômeno de caráter epidêmico e sistêmico.
Nos anos precedentes à aprovação da lei, os índices de homicídios femininos revelavam uma realidade trágica. Isso porque o Brasil figurava entre os países com as maiores taxas de feminicídios do mundo. Em resposta a esse quadro, movimentos feministas e organizações de direitos humanos passaram a demandar, com intensidade cada vez maior, medidas legislativas específicas para a proteção da mulher.
Feminicídio no Código Penal
A figura do feminicídio, enquanto qualificadora do homicídio no art. 121 do Código Penal, veio, então, romper com a tradicional indiferença penal à natureza de gênero dos crimes.
A inclusão dos incisos I e II no §2º-A daquele artigo, que caracterizam o feminicídio pela presença de violência doméstica e familiar ou pelo menosprezo à condição feminina, é emblemática.
Como bem assinala Prado (2018), a nova redação imprime à legislação penal uma perspectiva de gênero. Reconhece-se que as mulheres são vitimadas não apenas pelo ato de homicídio em si, mas por uma violência que se ancora na histórica subalternização e objetificação do corpo feminino.
Embora o conceito de feminicídio não existisse na época de Nelson Hungria, a sua obra clássica, Comentários ao Código Penal (1958), já abordava a gravidade de homicídios praticados por motivos de desprezo ou inferioridade. Ele classificava-os como atentados especialmente graves contra a vida.
Nesse contexto, se estivesse vivo, Hungria provavelmente reconheceria no feminicídio um fenômeno digno de qualificação específica no Direito Penal moderno. A evolução dos conceitos criminais revela que a estrutura patriarcal da sociedade, tantas vezes normalizada, era a base sobre a qual se construíam as práticas de extermínio feminino, seja no âmbito privado do lar, seja em contextos públicos onde o menosprezo à mulher imperava.
Feminicídio como crime hediondo
A promulgação da Lei nº 13.104/2015 não se limitou a alterar o Código Penal. Em consonância com a gravidade do fenômeno, o feminicídio foi também incluído no rol dos crimes hediondos, conforme o artigo 1º, inciso I, da Lei nº 8.072/1990.
Tal classificação reforça o caráter de repulsa social e de especial reprovabilidade que deve revestir o tratamento penal desse crime.
Para Nucci (2019), ao inserir o feminicídio entre os crimes hediondos, o legislador buscou não apenas agravar as consequências jurídicas para o autor. Ou seja, essa inserção também sinaliza, de forma clara, a intolerância da ordem jurídica com práticas que perpetuam a violência de gênero.
A jurisprudência tem se ajustado paulatinamente ao espírito dessa nova legislação. Decisões dos tribunais superiores, como no julgamento do HC 448.837/SP pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), têm enfatizado que a qualificadora do feminicídio não depende exclusivamente da existência de vínculo íntimo ou doméstico entre vítima e agressor.
Assim, deve-se considerar também a motivação discriminatória ou o desprezo à condição de mulher, que pode se manifestar em variadas esferas sociais.
Em suma, a Lei nº 13.104/2015, ao inserir o feminicídio no Código Penal e na Lei dos Crimes Hediondos, não apenas qualificou a resposta punitiva. Isso porque o dispositivo também trouxe à tona uma dimensão até então negligenciada no Direito Penal: o reconhecimento da violência de gênero como um fenômeno estrutural que demanda respostas específicas e contundentes.
Assim, o ordenamento jurídico brasileiro, ao acolher essa tipificação, passou a trilhar um caminho de maior justiça social e de combate à discriminação enraizada nas relações de poder entre homens e mulheres.
O feminicídio, reconhecido como qualificadora do homicídio pela Lei nº 13.104/2015, representa a resposta jurídica à gravidade dos crimes perpetrados contra mulheres em razão do gênero.
Introduzido no art. 121, §2º-A, do Código Penal, o feminicídio configura-se quando o homicídio é cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”, conforme especificado nos incisos I e II do mesmo parágrafo. Esses dispositivos abrangem tanto a violência doméstica e familiar quanto o menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Doutrina
A doutrina penal contemporânea ressalta a importância da distinção entre o feminicídio e o homicídio qualificado em geral.
Segundo Bitencourt (2021), a inclusão desse tipo penal visa evidenciar que o ato de matar uma mulher por ser mulher possui uma motivação específica e um contexto histórico-cultural de opressão de gênero. Isso não pode ser ignorado pelo ordenamento jurídico.
O autor argumenta que o feminicídio reflete a máxima expressão da violência estrutural contra a mulher, cuja criminalização autônoma é uma necessidade para a eficácia do combate a tais práticas.
Jurisprudência
Na parte jurisprudencial, o reconhecimento do feminicídio como qualificadora é amplamente consolidado.
O STJ, no julgamento do HC 474.418/MG, destacou que se aplica a qualificadora do feminicídio sempre que o contexto do crime evidenciar desprezo pela condição de mulher da vítima, especialmente em situações de violência doméstica.
A Corte reconheceu que a motivação baseada no gênero é um elemento diferencial que justifica o agravamento da pena. Tal motivação não se limita ao ambiente doméstico, mas se estende a qualquer circunstância que revele discriminação ou subjugação da mulher.
Perspectiva normativa
Sob a perspectiva normativa, o legislador buscou conferir maior eficácia à proteção da mulher, refletindo o compromisso do Estado em prevenir e punir atos de violência de gênero.
O inciso I do §2º-A abarca o feminicídio resultante de violência doméstica e familiar. Evidencia-se, assim, que a convivência íntima ou a relação de parentesco não pode servir como atenuante, mas sim como agravante.
Nesse sentido, Masson (2022) ressalta que a especificidade desse tipo penal reside na necessária identificação do fator de gênero como a causa determinante do homicídio. Isso diferencia o feminicídio de outras qualificadoras do homicídio.
Além disso, o inciso II do mesmo parágrafo expande o conceito ao incluir o menosprezo ou discriminação à condição de mulher como elementos caracterizadores do feminicídio.
Para Nucci (2020), esse dispositivo é crucial para abranger situações em que o crime é motivado pela misoginia ou pelo desprezo à identidade feminina, independentemente de qualquer relação pessoal entre autor e vítima. A doutrina aponta que essa abrangência é um avanço na tutela penal. Há, portanto, o reconhecimento da multiplicidade de formas pelas quais a violência de gênero se manifesta.
No que tange à pena, a previsão de reclusão de 12 a 30 anos para o feminicídio reflete a gravidade com que o legislador trata esse crime. Entretanto, a recente proposta de transformação do feminicídio em crime autônomo, com pena agravada para 20 a 40 anos de reclusão, revela uma tendência de recrudescimento punitivo.
Tal mudança, se aprovada, reforçará a mensagem de intolerância social à violência de gênero, como enfatizado por Carneiro (2024), que vê na medida uma necessária correção à tipificação atual, ainda atrelada à lógica tradicional do homicídio.
Conclusão
Em suma, a tipificação do feminicídio como qualificadora do homicídio transcende a mera classificação penal. Isso representa um avanço no reconhecimento dos direitos das mulheres e na necessidade de enfrentar a violência de gênero de forma específica e rigorosa.
A doutrina e a jurisprudência convergem no sentido de que a interpretação desses dispositivos deve levar em conta o contexto de discriminação e opressão que permeia tais crimes. Dessa forma, reafirma-se o papel do Direito Penal na proteção da dignidade e da vida das mulheres.
Referências
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 21. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
STJ. HC 448.837/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, 6ª Turma, julgado em 05/06/2018.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
MASSON, Cleber. Direito Penal: parte especial – arts. 121 a 234 do CP. 10. ed. São Paulo: Método, 2022.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
STJ. HC 474.418/MG, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 12/11/2019.
Quer saber quais serão os próximos concursos?
Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!