Natureza jurídica dos pets e a adoção de medidas processuais
Imagem: Arte Migalhas

Natureza jurídica dos pets e a adoção de medidas processuais

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu

Natureza

O magistrado da 3ª vara Cível de Cabo Frio/RJ deferiu tutela de urgência e determinou a busca e apreensão imediata de um cão da raça Spitz Alemão, que estava em posse do réu (processo nº 0811630-45.2024.8.19.0011). A decisão reconheceu a existência de provas robustas demonstrando que a requerente é a legítima proprietária do cachorrinho, adquirido durante um relacionamento amoroso. A propriedade do animal teria sido supostamente cerceada após o término do namoro.

O Judiciário decidiu que o perigo de dano estava presente, o que justificava a concessão da medida sem a necessidade de contraditório prévio, conforme previsto no artigo 300 do CPC. Vejamos trecho da decisão:

“Compulsando os autos, verifica-se que existem provas robustas no sentido de que a autora é a proprietária do animal de estimação que se encontra na posse do réu, portanto, DEFIRO TUTELA DE URGÊNCIA, para determinar a imediata busca e apreensão do animal que atende pelo nome White, Spitz Alemão Anão/Pomerânia, nascido em 28/12/2023, macho, branco, se encontra em poder dos requeridos, no endereço descrito no preâmbulo da inicial, no prazo de 05 dias.”

Natureza jurídica dos pets

Corrente clássica

Nas últimas décadas prevaleceu a corrente clássica de que os animais de estimação possuíam natureza jurídica de coisa, sendo um bem móvel (semovente) e, portanto, seriam simplesmente objetos de direitos, e não sujeitos de direito.

Neste sentido, os bichos seriam apenas um item do patrimônio de seu titular. Não teriam direitos, de forma que suas garantias estariam relacionadas aos direitos de seus donos, e as discussões sobre eles estariam mais próximas de institutos como a posse e a propriedade.

Teria aplicação, portanto, do artigo 82 do código civil:

Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.

Ocorre que a realidade é extremamente mutável, e o Direito precisa se adaptar para acompanhar a evolução social.

Presenciamos, nos últimos anos, novos fenômenos relacionados à relação entre as pessoas, chamados de “pais de pets”, e seus bichinhos de estimação: criação de planos de saúde para pets, buffets especializados em organizar festas para os bichinhos, creches e hotéis para cães e gatos, surgimento de profissões voltadas a esses animais e muito mais.

Diante dessa inovação fática os operadores do direito tiveram que se adaptar na interpretação e aplicação do ordenamento jurídico, pois a definição como simples coisas não resolve mais as controvérsias sobre os pets.

Corrente moderna

Existe uma corrente moderna, que considera os animais como sujeitos de direito. Algumas decisões judiciais já adotam essa visão, apesar de não serem majoritárias.

“Em 2021, o Tribunal de Justiça do Paraná publicou a primeira decisão que reconheceu os animais como sujeitos de direito no país. Na ocasião, o Tribunal votou a favor dos cães Spike e Rambo – vítimas de maus tratos por parte de antigos donos – representados pela ONG Sou Amigo, da cidade de Cascavel. Na petição, relatou-se que os cães estavam sozinhos há 29 dias em um imóvel e que alguns vizinhos, preocupados com a situação, chamaram a ONG e a Polícia Militar para verificar o caso.

Os dois cachorros foram resgatados e levados a uma clínica veterinária, onde foi constatado que Spike apresentava lesões e feridas. Diante dos fatos, a ONG solicitou que os cães fossem reconhecidos como parte autora do processo. Pediram, também, o ressarcimento dos valores gastos, além da condenação dos réus ao pagamento de indenização por danos morais e uma pensão mensal aos animais até que eles passassem para a guarda definitiva da organização.

Waleska Mendes Cardoso, uma das advogadas do caso, explica a importância da ação: “Pela primeira vez no Brasil e provavelmente no mundo, os animais foram reconhecidos como autores da ação. Se reconheceu que o direito violado é subjetivo do animal, então o único que teria capacidade de buscar reparação do direito violado era o próprio titular”. A decisão se tornou um precedente para futuras ações que argumentam em prol de animais como autores das ações e sujeitos de direito.”1

Corrente intermediária

Mas o Superior Tribunal de Justiça tem caminhado para adotar uma corrente intermediária, pela qual os animais de estimação seriam um “terceiro gênero“.

Para o ministro Luís Felipe Salomão, não se trata de humanizar o animal, tampouco de equiparar a posse dos bichos com a guarda de filhos, mas de considerar que o direito de propriedade sobre eles não pode ser exercida de maneira idêntica àquele relativo às coisas inanimadas ou que não são dotadas de sensibilidade.

Portanto, os animais seriam seres dotados de sensibilidade. Confira o REsp 1.944.228:

“2. A solução de questões que envolvem a ruptura da entidade familiar e o seu animal de estimação não pode, de modo algum, desconsiderar o ordenamento jurídico posto – o qual, sem prejuízo de vindouro e oportuno aperfeiçoamento legislativo, não apresenta lacuna e dá respostas aceitáveis a tais demandas –, devendo, todavia, o julgador, ao aplicá-lo, tomar como indispensável balizamento o aspecto afetivo que envolve a relação das pessoas com o seu animal de estimação, bem como a proteção à incolumidade física e à segurança do pet, concebido como ser dotado de sensibilidade e protegido de qualquer forma de crueldade.

2.1 A relação entre o dono e o seu animal de estimação encontra-se inserida no direito de propriedade e no direito das coisas, com o correspondente reflexo nas normas que definem o regime de bens (no caso, o da união estável). A aplicação de tais regramentos, contudo, submete-se a um filtro de compatibilidade de seus termos com a natureza particular dos animais de estimação, seres que são dotados de sensibilidade, com ênfase na proteção do afeto humano para com os animais.”

Seres sencientes

Por essa visão, adotada pelo STJ, reconhece-se os animais como seres sencientes. Mas o que são esses seres sencientes? Simples:

Seres sencientes são seres que possuem a capacidade de sentir e perceber o mundo ao ser redor. Isso inclui a habilidade de experimentar emoções como dor, prazer, alegria e sofrimento.

O professor José Fernando Simão arremata:

O que se coloca é saber se, por isso, animais não humanos e demais coisas devem receber tratamento idêntico pelo Código Civil. Em outros termos, é necessário definir se a propriedade de animais gera iguais efeitos à propriedade das coisas inanimadas, como um carro, uma cadeira, uma casa.

Evidentemente que a resposta é negativa. A propriedade de animais não humanos passa por um filtro óbvio: os animais não humanos são coisas especiais, pois são seres dotados de sensibilidade e passíveis de sofrimento e dor. É por isso que o direito de propriedade sobre os animais, segundo interpretação sistemática do Código Civil, não
pode ser exercido de maneira idêntica àquele que se exerce sobre coisas inanimadas ou não dotadas de sensibilidade.


(Simão, José Fernando. Direito dos Animais: Natureza Jurídica. A Visão do Direito Civil. Revista Jurídica Luso-Brasileira, v. 4, ano 3, 2017, p. 899)

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino, em decisão cautelar na ADI 7.704, arrematou:

Ao se preocupar com outras formas de vida não humanas, a Constituição incorporou uma visão mitigada do antropocentrismo, de modo a reconhecer que seres não humanos podem ter valor e dignidade2. À luz do texto constitucional, a dignidade não é um atributo exclusivo do ser humano.

Portanto, será cada vez mais comum nos depararmos com questões envolvendo visita e guarda de pets, busca e apreensão de animais e proibição ou não de castração dos bichinhos.

Conclusão

Em resumo, quanto a visão acerca da natureza jurídica dos pets, temos:

  1. A corrente clássica ou tradicional, que entende que o animal é um bem semovente, com fundamento antes mesmo do Código Civil;
  2. A corrente moderna, que entende que se deve considerar o animal como um ser sujeito de direito;
  3. A corrente intermediária, adotada pelo STJ, pela qual o animal de estimação seria um “terceiro gênero”, dotado de sensibilidade, ou seja, um ser senciente.

Ótimo tema para se abordar em direito civil, processo civil, direito constitucional e direito ambiental. Então, muita atenção!


  1. Disponível em: <https://www.ufsm.br/midias/arco/animais-sujeitos-de-direito-legislacao-brasileira>. ↩︎
  2. DIAS, Jefferson Aparecido; NELSON, Rocco Antônio Rangel Rosso. Do Direito dos animais não humanos – em busca de uma personalidade esquecida, Revista Brasileira de Direito Animal. UFBA. P. 35. ↩︎

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