Prof. Gustavo Cordeiro
Na manhã de 28 de julho de 2025, uma cena inédita marcou os anais do Supremo Tribunal Federal. Os tenentes-coronéis Rafael Martins e Hélio Ferreira Lima, integrantes do chamado “núcleo 3” da investigação sobre tentativa de golpe de Estado, foram impedidos de participar de seu próprio interrogatório trajando as fardas do Exército Brasileiro. A ordem partiu diretamente do Ministro Alexandre de Moraes, relator da Ação Penal 2668, e pegou a todos de surpresa – especialmente as defesas, que protestaram veementemente alegando ausência de previsão legal para tal restrição.
O episódio ganhou contornos dramáticos quando o juiz auxiliar do STF transmitiu a determinação: “Essa é uma determinação do ministro relator. A acusação é contra militares e não contra o Exército como um todo”. Diante da resistência, o tenente-coronel Rafael Martins chegou a sugerir o adiamento de seu interrogatório. Após o intervalo do almoço, Hélio Ferreira Lima retornou ao plenário virtual trajando terno e gravata, numa imagem que simbolizou a força da decisão judicial sobre a tradição militar.
Uma prática centenária nos tribunais do júri brasileiros
O que torna essa decisão ainda mais impactante é o fato de contrariar uma prática absolutamente consolidada nos tribunais do júri de todo o país. Qualquer promotor de justiça, defensor público ou advogado criminalista com experiência em plenário pode atestar: é extremamente comum – para não dizer a regra – que policiais militares e membros das Forças Armadas compareçam aos seus julgamentos devidamente fardados.
Nos júris do interior paulista, mineiro ou gaúcho, a imagem do policial militar sentado no banco dos réus com sua farda cáqui é parte integrante da liturgia forense. Assim, em comarcas onde o batalhão da PM representa uma das principais instituições locais, seria impensável até pouco tempo atrás questionar essa tradição. Os jurados, geralmente, estão acostumados a ver o réu militar em seu uniforme, com divisas, insígnias e condecorações à mostra.
Essa naturalidade tem raízes profundas na cultura jurídica brasileira. O militar da ativa passa a maior parte de seu tempo fardado – é sua vestimenta de trabalho, sua segunda pele. Por isso, impedi-lo de usar o uniforme em um momento tão crucial quanto seu julgamento sempre pareceu, aos olhos de muitos operadores do direito, uma restrição desnecessária e até mesmo ofensiva às instituições militares.
O que dizem as normas sobre o uso de fardas militares
Para compreender a dimensão da controvérsia, é fundamental examinar o que efetivamente estabelece a legislação militar sobre o uso de uniformes. O Estatuto dos Militares (Lei 6.880/1980) dedica um capítulo inteiro ao tema, com regras detalhadas e específicas.
O artigo 76 estabelece o princípio geral: “Os uniformes das Forças Armadas são privativos dos militares e simbolizam a autoridade militar”. Já o artigo 77 lista taxativamente as situações em que o uso do uniforme é vedado. São apenas duas hipóteses expressas: primeiro, em manifestações de caráter político-partidário (§1º, alínea “a”); segundo, por militares na inatividade, salvo para comparecer a solenidades militares, cerimônias cívicas ou atos sociais solenes, quando devidamente autorizados (§1º, alínea “c”).
O artigo 78 complementa: “O militar fardado tem as obrigações correspondentes ao uniforme que use”. Em outras palavras, o uniforme não é apenas uma vestimenta – é um símbolo que carrega consigo deveres e responsabilidades institucionais.
O ponto fundamental é este: em nenhum momento o Estatuto dos Militares menciona, ainda que tangencialmente, a situação do militar réu em processo criminal. Não há uma linha sequer sobre o tema. O mesmo silêncio se observa no Regulamento de Uniformes do Exército (RUE), que detalha minuciosamente modelos, composições e ocasiões de uso, mas nada dispõe sobre julgamentos criminais.
A construção jurisprudencial do STJ: o paradigma dos uniformes prisionais
Para compreender a lógica por trás da decisão do STF, é essencial analisar a sólida jurisprudência construída pelo Superior Tribunal de Justiça sobre uma questão aparentemente análoga: o uso de uniformes prisionais por réus no Tribunal do Júri.
HC 778.503/MG – O leading case da Quinta Turma
No julgamento do Habeas Corpus 778.503/MG, relatado pelo Ministro Ribeiro Dantas, a Quinta Turma do STJ estabeleceu um precedente fundamental. O caso envolvia um réu que havia sido obrigado a comparecer ao seu julgamento trajando o uniforme do presídio, após ter seu pedido para usar roupas civis negado genericamente pelo juiz presidente.
A decisão do STJ foi categórica ao estabelecer que o Tribunal do Júri constitui, nas palavras do jurista Lenio Streck, um “ritual simbólico” permeado por “significações imaginárias sociais”. Nesse contexto ritualístico, cada elemento visual comunica algo aos jurados, e o uniforme prisional carrega uma carga simbólica extremamente negativa.
O voto condutor destacou três violações constitucionais decorrentes do uso forçado do uniforme carcerário:
- Violação à presunção de inocência: o uniforme prisional cria uma associação automática entre o réu e a culpabilidade, comprometendo a imparcialidade dos jurados antes mesmo da produção probatória.
- Comprometimento da plenitude de defesa: princípio específico do Tribunal do Júri, mais amplo que a mera “ampla defesa”, que engloba não apenas argumentos jurídicos, mas também a imagem e apresentação do acusado perante o conselho de sentença.
- Afronta à dignidade da pessoa humana: submeter o réu ao constrangimento de apresentar-se com vestes que o identificam como presidiário constitui tratamento degradante incompatível com o Estado Democrático de Direito.
HC 945.012/SP – A consolidação pela Sexta Turma
A Sexta Turma do STJ, no julgamento do HC 945.012/SP, não apenas confirmou o entendimento da Quinta Turma como aprofundou a análise sobre os requisitos para eventual restrição ao direito de usar trajes civis.
Neste julgado, o STJ estabeleceu que decisões genéricas são absolutamente nulas. O magistrado que pretenda negar ao réu o direito de comparecer ao julgamento com suas próprias roupas deve apresentar fundamentação concreta e específica, demonstrando:
- Risco real e individualizado de fuga, com elementos probatórios concretos
- Perigo efetivo à segurança dos presentes, devidamente comprovado
- Circunstâncias excepcionais do caso que justifiquem a medida extrema
O STJ foi enfático ao reprovar justificativas genéricas como “garantir a segurança”, “facilitar o reconhecimento do preso” ou “ausência de previsão legal para o pedido”. Tais fundamentações padronizadas foram consideradas insuficientes para restringir um direito fundamental do acusado.
As Regras de Mandela como reforço argumentativo

Ambos os julgados invocaram as Regras de Mandela (Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos) como parâmetro internacional de direitos humanos. Especificamente, a Regra 19.3 estabelece que quando um preso se afasta do estabelecimento prisional, deve ser autorizado a “vestir suas próprias roupas ou roupas que não chamem a atenção”.
O STJ interpretou essa norma internacional como um reforço à tese de que a neutralidade visual do réu é elemento essencial para um julgamento justo e imparcial.
A razão de ser da jurisprudência: jurados leigos e o poder dos símbolos
A ratio decidendi dos precedentes do STJ reside em uma compreensão profunda da natureza do Tribunal do Júri. Diferentemente do julgamento por magistrados togados, teoricamente imunes a influências simbólicas, o júri popular compõe-se de cidadãos leigos, mais suscetíveis ao impacto visual e emocional dos símbolos.
O uniforme prisional comunica, antes de qualquer palavra ser proferida, uma mensagem poderosa: “este homem é um criminoso”. O laranja berrante ou o bege desbotado das vestimentas carcerárias carregam todo o estigma do sistema prisional brasileiro. Os jurados, mesmo inconscientemente, podem ser influenciados por essa associação visual entre o réu e o mundo do crime.
A decisão do STF na Ação Penal 2668: uma nova interpretação
Voltando ao caso dos militares no STF, a decisão do Ministro Alexandre de Moraes na Ação Penal 2668 representa uma extensão inovadora dos princípios estabelecidos pelo STJ para os uniformes prisionais. A fundamentação central, conforme explicada pelo juiz auxiliar, é cristalina: “A acusação é contra militares e não contra o Exército como um todo”.
Essa distinção entre responsabilidade individual e institucional não é nova no direito brasileiro, mas sua aplicação ao uso de fardas representa uma quebra de paradigma. O STF parece estar estabelecendo que, assim como o uniforme prisional contamina negativamente o julgamento, a farda militar pode contaminá-lo de outra forma – não necessariamente prejudicando o réu, mas comprometendo a necessária separação entre o indivíduo e a instituição.
A lógica subjacente é que permitir o uso da farda poderia criar a impressão de que as próprias Forças Armadas estão sendo julgadas, ou pior, de que a instituição militar de alguma forma avaliza ou se solidariza com as condutas individuais sob julgamento.
A tendência futura: um novo paradigma para julgamentos de militares?
A decisão na AP 2668 sinaliza uma possível mudança de paradigma no tratamento processual de militares réus. Embora não constitua ainda um precedente vinculante – por se tratar de decisão monocrática em sede de medida incidental – é inegável seu potencial de influência sobre futuras decisões.
Três cenários podem se desenhar a partir deste marco:
- Consolidação jurisprudencial: o STF pode, em julgamento colegiado, confirmar e expandir o entendimento, criando um precedente sólido que influenciará todos os tribunais do país.
- Distinção casuística: o Supremo pode limitar a aplicação da vedação a casos excepcionais, como crimes contra o Estado Democrático de Direito, mantendo a tradição para crimes comuns.
- Intervenção legislativa: o Congresso Nacional pode editar lei específica regulamentando a matéria, seja proibindo, seja expressamente autorizando o uso de fardas por militares réus.
A tendência mais provável, considerando o atual cenário jurisprudencial e a composição do STF, é uma gradual consolidação da vedação, especialmente em casos de maior repercussão ou envolvendo crimes relacionados às funções militares.
Como o tema pode aparecer em sua prova?
Para os concurseiros, este tema representa uma oportunidade única de demonstrar atualização jurisprudencial e capacidade de análise sistemática. Vejamos uma possibilidade de cobrança de uma questão:
Questão Objetiva (Estilo CESPE/CEBRASPE)
Com base no Estatuto dos Militares, na jurisprudência do STJ sobre uniformes prisionais e na recente decisão do STF na AP 2668, julgue o item a seguir:
"O militar da ativa tem direito subjetivo ao uso da farda em todas as ocasiões não expressamente vedadas pelo Estatuto dos Militares, incluindo audiências judiciais nas quais figure como réu, não podendo o magistrado, sem previsão legal específica, determinar o uso de trajes civis."
Gabarito: ERRADO
Comentário: Embora o Estatuto dos Militares não contenha vedação expressa, a jurisprudência mais recente do STF, aplicando analogicamente os princípios estabelecidos pelo STJ para uniformes prisionais, tem admitido a possibilidade de o magistrado determinar o uso de trajes civis para garantir a imparcialidade do julgamento e a separação entre responsabilidade individual e institucional. O item peca ao afirmar categoricamente que o magistrado “não pode” determinar o uso de trajes civis, ignorando a construção jurisprudencial sobre o tema.
Conclusão: um debate longe do fim
A decisão do STF na AP 2668 representa muito mais que uma simples questão sobre código de vestimenta. Ela toca em temas fundamentais do direito processual penal, teoria do direito e relações civil-militares em uma democracia.
Para os futuros magistrados, promotores e defensores públicos, dominar essa discussão significa compreender não apenas as regras positivadas, mas também a dinâmica entre tradição e inovação jurisprudencial, entre simbolismo e direito, entre prerrogativas institucionais e garantias individuais.
Uma certeza permanece: as bancas examinadoras adoram temas controversos e atuais como este. Prepare-se para enfrentá-lo com profundidade teórica, atualização jurisprudencial e, principalmente, capacidade argumentativa.
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