Análise Jurídica – Medidas Executivas Atípicas: pode a penhora de ganhos em redes sociais?

Análise Jurídica – Medidas Executivas Atípicas: pode a penhora de ganhos em redes sociais?

O desafio da efetividade das decisões judiciais

No cenário jurídico atual, um dos maiores desafios enfrentados pelo Poder Judiciário é garantir a efetividade de suas decisões, especialmente quando se trata de obrigações pecuniárias.

Muitas vezes, devedores utilizam-se de artifícios para ocultar patrimônio ou simplesmente se recusam a cumprir as determinações judiciais.

Então, diante dessa realidade, o sistema jurídico brasileiro tem buscado alternativas para assegurar o cumprimento das decisões, dando origem às chamadas “medidas executivas atípicas“.

Chamou-se a atenção recentemente para as notícias “Quem está com o ‘nome sujo’ na praça podem ter os ganhos obtidos com as redes sociais penhorados pela justiça”:

Judiciário autoriza bloqueio de rede social e ganhos de devedor

Vamos lá. Casos hipotéticos para reflexão:

1) João, um influenciador digital com milhões de seguidores, foi condenado a pagar R$ 100.000 de indenização por danos morais após divulgar fake news sobre um político local. Apesar de ostentar um estilo de vida luxuoso em suas redes sociais, João alega não ter bens para quitar a dívida.

2) Maria, empresária do ramo de eventos, deve R$ 500.000 a fornecedores. Embora afirme estar sem recursos, continua fazendo viagens internacionais frequentes.

3) Pedro, dono de uma pequena loja virtual, foi condenado a ressarcir clientes em R$ 50.000 por produtos defeituosos. Ele fechou a loja física, mas continua vendendo pela internet sem regularizar sua situação.

Esses casos nos levam a questionar: Quais medidas podem ser tomadas para garantir o pagamento dessas dívidas? Até onde pode ir o poder do juiz para fazer cumprir suas decisões?

O que são medidas executivas atípicas?

Para entender o conceito de medidas executivas atípicas, primeiro é necessário compreender o que são as medidas executivas típicas.

Medidas executivas típicas

As medidas executivas típicas são aquelas que a legislação processual expressamente prevê para a satisfação de obrigações. No caso de obrigações pecuniárias, as principais medidas típicas incluem:

  • Penhora de bens móveis e imóveis;
  • Bloqueio de contas bancárias (popularmente conhecido como “penhora online”);
  • Penhora de parte do salário, respeitados os limites legais;
  • Inclusão do nome do devedor em cadastros de inadimplentes.

Essas medidas são “típicas” porque a lei as descreve detalhadamente, com procedimentos específicos para sua aplicação.

Medidas executivas atípicas

As medidas executivas atípicas, por outro lado, não estão expressamente previstas na legislação. Elas surgem da necessidade de encontrar soluções para casos em que as medidas típicas se mostram insuficientes ou ineficazes.

O fundamento legal para as medidas atípicas está no artigo 139, IV, do Código de Processo Civil (CPC) de 2015:

Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:

[...]

IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;

Este dispositivo confere ao juiz um poder geral de efetivação, permitindo-lhe adotar medidas não expressamente previstas em lei para garantir o cumprimento das decisões judiciais.

Exemplos de medidas executivas atípicas que vêm sendo aplicadas incluem:

Penhora

Análise de casos concretos

Assim, vamos analisar alguns casos reais de aplicação de medidas executivas atípicas:

Penhora de ganhos em redes sociais

No caso do influenciador digital mencionado na introdução, a 2ª Vara Cível de Mogi das Cruzes (SP) determinou a penhora de 30% dos valores recebidos pela monetização do seu canal no YouTube[1]. Tomou-se esta decisão após se constatar a impossibilidade de encontrar outros bens para penhora.

A justificativa do juiz foi que, embora o influenciador alegasse não ter recursos, continuava mantendo uma presença ativa nas redes sociais, o que presumivelmente gerava renda. A medida visava, portanto, alcançar uma fonte de renda que não estava sendo declarada pelo devedor.

Retenção de passaporte

Em um caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2022 (HC 742879-RJ), considerou-se cabível a retenção do passaporte de um empresário em processo de falência.

O STJ entendeu que a medida era justificável porque:

1) Havia fortes indícios de que o empresário estava ocultando patrimônio em paraísos fiscais;

2) O falido realizava frequentes viagens internacionais de luxo, incompatíveis com sua alegada situação financeira;

3) Existiam evidências de que as viagens eram custeadas com patrimônio indevidamente transferido a familiares.

Suspensão da CNH

Em 2018, o STJ julgou um caso (RHC 97.876/SP) em que havia sido determinada a suspensão da CNH de um devedor. Na ocasião, o tribunal entendeu que a medida era desproporcional e não guardava relação com o objetivo de quitar a dívida.

Este caso ilustra que, embora as medidas atípicas sejam possíveis, elas devem passar por um criterioso teste de proporcionalidade e razoabilidade.

Aprofundando a análise: limites e requisitos das medidas atípicas

A aplicação de medidas executivas atípicas não é irrestrita. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm estabelecido limites e requisitos para sua utilização.

Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF)

O STF, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5941/DF em 2023, declarou a constitucionalidade do art. 139, IV, do CPC, mas estabeleceu importantes balizas:

São constitucionais — desde que respeitados os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os valores especificados no próprio ordenamento processual, em especial os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade — as medidas atípicas previstas no CPC/2015 destinadas a assegurar a efetivação dos julgados.

STF. Plenário. ADI 5941/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 9/02/2023 (Info 1082).

Esta decisão reforça que as medidas atípicas: 

Requisitos estabelecidos pelo STJ

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do REsp 1788950/MT, estabeleceu requisitos mais específicos para a adoção de medidas executivas atípicas:

Dessa forma, estes requisitos visam evitar o uso abusivo ou desproporcional das medidas atípicas, garantindo que se apliquem apenas quando realmente necessárias e adequadas. 

Análise de proporcionalidade

A proporcionalidade, mencionada tanto pelo STF quanto pelo STJ, é um princípio fundamental na aplicação das medidas atípicas. Pode-se analisá-la sob três aspectos: 

1) Adequação: a medida deve ser apta a atingir o fim pretendido (no caso, o pagamento da dívida);

2) Necessidade: não deve haver outro meio menos gravoso para atingir o mesmo fim;

3) Proporcionalidade em sentido estrito: os benefícios da medida devem superar seus custos em termos de restrição de direitos.

Por exemplo, a penhora de ganhos em redes sociais geralmente é considerada adequada (pois atinge uma fonte de renda do devedor), necessária (quando não há outros bens penhoráveis) e proporcional (pois não impede totalmente a atividade do devedor, apenas retém uma parte dos ganhos).

Já a retenção de passaporte, por exemplo, precisa de uma justificativa muito mais robusta, pois afeta o direito fundamental de locomoção. 

Penhora de ganhos em redes sociais: uma análise específica

A penhora de ganhos em redes sociais e plataformas digitais tem se tornado cada vez mais comum, especialmente em casos envolvendo influenciadores digitais e empresas que operam primariamente online. 

Além do art. 139, IV, do CPC, esta medida encontra respaldo no art. 835, que estabelece a ordem preferencial de penhora:

Art. 835. A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem:

[...]

X - percentual do faturamento de empresa devedora;

Assim, os ganhos em redes sociais podem ser equiparados ao faturamento de uma empresa, especialmente quando o influenciador ou criador de conteúdo atua de forma profissional.

Vantagens

1) Atinge diretamente a fonte de renda do devedor;

2) Não impede a continuidade da atividade profissional;

3) É facilmente quantificável e controlável;

4) Tende a ser proporcional à capacidade econômica do devedor.

Desafios

1) Necessidade de cooperação das plataformas (YouTube, Instagram, etc.);

2) Possibilidade de o devedor migrar para outras plataformas ou criar novos perfis;

3) Dificuldade em determinar o percentual adequado de penhora sem inviabilizar a atividade.

Procedimento

Geralmente, o procedimento envolve:

1) Determinação judicial para que a plataforma informe os ganhos do usuário;

2) Fixação de um percentual de penhora (comumente entre 10% e 30%);

3) Ordem para que a plataforma deposite o valor penhorado em conta judicial.

Como o tema já caiu em concursos

O tema das medidas executivas atípicas tem sido recorrente em concursos públicos, especialmente para carreiras jurídicas. Veja um exemplo:

(2023 - Juiz Federal - TRF1) A União Federal ajuizou ação de regresso em face de servidor público federal, que foi condenado a pagar quantia em dinheiro em favor do ente público. Intimado a pagar a dívida em sede de cumprimento de sentença, o devedor permaneceu inerte, motivo pelo qual a União requereu a fixação de multa cominatória diária; a suspensão do direito de dirigir do executado, a apreensão do seu passaporte, a sua proibição de participar de concursos públicos, a sua proibição de participar de licitações, a expedição de ofício ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para a remessa de relatório de inteligência financeira sobre as operações do devedor e a consulta ao Sistema de Investigação de Movimentações Bancárias (Simba) com o fim de apurar o seu patrimônio. Sobre a situação, é correto afirmar ser:


E) cabível a expedição de ofício ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) no cumprimento de sentença relativo à obrigação de pagar, desde que mediante decisão fundamentada e esgotados os meios típicos de execução, observados os princípios do contraditório e da proporcionalidade.


Gabarito: Correto 

Conclusão

Portanto, as medidas executivas atípicas, incluindo a penhora de ganhos em redes sociais, representam uma evolução importante no sistema processual brasileiro, buscando dar efetividade às decisões judiciais em um contexto de crescente complexidade econômica e tecnológica.

No entanto, sua aplicação deve ser cuidadosa e ponderada, sempre respeitando os direitos fundamentais do devedor e os princípios constitucionais e processuais. O juiz, ao determinar uma medida atípica, deve:

A penhora de ganhos em redes sociais, em particular, tem se mostrado uma alternativa promissora, especialmente em casos envolvendo influenciadores digitais e empresas que operam primariamente online. Ela tende a ser menos invasiva que outras medidas atípicas e mais efetiva em atingir o patrimônio de devedores que tentam ocultar seus bens.

Por fim, é importante ressaltar que o tema ainda está em evolução na jurisprudência e na doutrina. Advogados, juízes e demais operadores do direito devem estar atentos às novas decisões e interpretações que surgem, buscando sempre o equilíbrio entre a efetividade da justiça e a proteção dos direitos fundamentais.


[1] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-ago-10/determinada-penhora-ganhos-canal-youtuber-quitar-divida/>.


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