Em novembro de 2024, uma decisão administrativa da Prefeitura de São Paulo gerou intenso debate nas redes sociais sobre a proteção do patrimônio histórico-cultural brasileiro:
Luminárias da Liberdade são retiradas a pedido de movimento negro; entenda
Isto é, o caso envolveu a retirada das tradicionais luminárias japonesas (Suzuranto) da Rua dos Aflitos, no bairro da Liberdade, a pedido de movimentos sociais ligados à causa negra, trouxe à tona uma complexa discussão jurídica sobre a hierarquização de bens culturais protegidos, ou o “choque” de direitos.
Perceba, o caso evidencia um aparente conflito entre dois importantes patrimônios culturais: de um lado, a Capela dos Aflitos, construída em 1779 e intimamente ligada à memória da escravidão no Brasil; de outro, as luminárias Suzuranto, símbolos da significativa presença da comunidade japonesa no bairro da Liberdade.
Logo, esta decisão administrativa suscita questionamentos cruciais sobre a extensão do instituto do tombamento, a proteção da área envoltória de bens tombados e os limites da intervenção estatal na gestão do patrimônio cultural.
- Como equilibrar diferentes manifestações culturais quando estas aparentemente se contrapõem? - Qual o alcance da proteção legal conferida aos bens tombados?
Para responder a estas e outras indagações, analisaremos o caso sob a perspectiva do ordenamento jurídico brasileiro, com especial atenção ao Decreto-Lei nº 25/1937, que regulamenta o instituto do tombamento, e aos dispositivos constitucionais que fundamentam a proteção ao patrimônio cultural.
Primeiro, como a Constituição Federal protege o patrimônio cultural?
Veja, o art. 216 da Constituição Federal estabelece de forma cristalina:
"Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira [...]"
In casu, identificamos dois elementos culturais constitucionalmente protegidos:
- A Capela dos Aflitos, trata-se de um patrimônio histórico representativo da memória afro-brasileira;
- As luminárias Suzuranto, são elementos culturais da imigração japonesa, já que há muito estão instaladas no bairro da Liberdade.
Segundo, o que significa tombamento e qual seu alcance no caso concreto?
O tombamento constitui um ato administrativo pelo qual o Poder Público declara o valor histórico, artístico, paisagístico, arqueológico, bibliográfico ou cultural de um bem, inscrevendo-o no Livro do Tombo para fins de preservação. Como ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “o tombamento é forma de intervenção do Estado na propriedade privada, que tem por objetivo a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional”.
No caso em análise, a Capela dos Aflitos é tombada pelo CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) através da Resolução nº 37/CONPRESP/92, que reconhece seu excepcional valor histórico como um dos mais antigos templos religiosos de São Paulo e sua importância para a memória da escravidão no Brasil.
Além do tombamento municipal, o local também foi reconhecido como Sítio Arqueológico pelo IPHAN em 2020, o que amplia sua proteção para a esfera federal. Este duplo reconhecimento (municipal e federal) reforça a necessidade de proteção não apenas do bem em si, mas também de sua área envoltória.
Nessa linha, o tombamento produz diversos efeitos jurídicos, dentre os quais destacam-se:
- Restrições ao direito de propriedade;
- Obrigação de conservar o bem;
- Proteção da visibilidade e ambiência;
- Limitações ao uso;
- Restrições à modificação do bem.
Terceiro, então há uma proteção também do “entorno”?
Sim. O Decreto-Lei nº 25/1937, em seu art. 18, estabelece proteção específica ao entorno do bem tombado:
"Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade [...]"
Perceba, estas restrições se estendem não apenas ao bem tombado, mas também à sua área envoltória, conforme estabelece o art. 18 do Decreto-Lei nº 25/1937, fundamentando juridicamente a decisão de remoção das luminárias Suzuranto do entorno da Capela.
Quarto, logo, como se aplica a proteção da área envoltória no caso concreto?
Em síntese, a Capela dos Aflitos, fundada em 1779 e reconhecida como sítio arqueológico pelo IPHAN em 2020, goza de proteção especial que se estende à sua área envoltória.
Nessa linha, segundo o entendimento da prefeitura, as luminárias Suzuranto, conforme argumentação da UNAMCA (União dos Amigos da Capela dos Aflitos), comprometiam a visibilidade deste patrimônio histórico, configurando violação ao art. 18 do Decreto-Lei nº 25/1937.
Logo, deveriam ser removidas.
Quinto, qual o fundamento da competência administrativa municipal?
A competência da Prefeitura de São Paulo encontra respaldo no art. 23 da Constituição Federal:
"É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural [...]"
Sexto, como se aplica o princípio da proporcionalidade neste caso?
No fundo, a solução administrativa adotada precisa contemplar três elementos da proporcionalidade preconizados por Humberto Ávila:
- Adequação: remoção das luminárias apenas do entorno imediato da Capela (isto é, não há necessidade de remoção de todas as luminárias do bairro);
- Necessidade: manutenção das luminárias no restante do bairro;
- Proporcionalidade em sentido estrito: equilíbrio entre preservação histórica e manifestação cultural (para que não haja ofuscamento do bem tombado da capela, optou-se por retirar apenas da rua onde fica a capela).
Em resumo, o que se percebe é que a solução encontrada privilegia a preservação do patrimônio histórico tombado sem desconsiderar a importância da herança cultural japonesa no bairro da Liberdade, alinhando-se aos preceitos constitucionais de proteção ao patrimônio cultural brasileiro em sua diversidade.
E você, o que realmente achou dessa decisão?
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