Prof. Gustavo Cordeiro
Como a Quarta Turma do STJ garantiu a autonomia das organizações religiosas e o que isso significa para os concursos jurídicos
Introdução: um tema delicado e pouco explorado nas provas
Imagine a seguinte situação: uma vítima de suposto abuso sexual praticado por sacerdote ingressa com ação de exibição de documentos para ter acesso ao processo disciplinar eclesiástico instaurado pela igreja contra o religioso. A igreja pode se recusar a exibir esse procedimento interno?
Em outubro de 2025, a Quarta Turma do STJ, em processo cujo número não foi divulgado em razão do segredo de justiça, sob relatoria do Ministro Raul Araújo, enfrentou exatamente essa questão e decidiu: sim, a organização religiosa pode recusar o acesso ao procedimento disciplinar eclesiástico, com fundamento na liberdade religiosa, na autonomia das organizações religiosas e na proteção ao sigilo confessional.
Esse julgado é estratégico para concursos de Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e Delegado porque dialoga com múltiplos ramos do Direito: Constitucional (liberdade religiosa), Processual Civil (limites do direito à prova), Processual Penal (nemo tenetur se detegere) e Penal (sigilo profissional). Trata-se de decisão paradigmática sobre os limites da intervenção estatal na esfera religiosa.
O caso concreto: quando dois sistemas normativos colidem
Na origem, tratava-se de ação de exibição de documentos em que a parte autora, supostamente vítima de abuso sexual praticado por sacerdote, pretendia ter acesso ao procedimento disciplinar canônico instaurado pela igreja contra o religioso.
A questão central era: pode o Poder Judiciário compelir organização religiosa a exibir processo disciplinar eclesiástico interno, considerando o sigilo inerente ao rito religioso e à liberdade de organização religiosa protegida constitucionalmente?
Aqui temos um típico conflito entre dois valores constitucionais relevantes: de um lado, o direito à prova e o acesso à justiça (art. 5º, XXXV e LV, CF); de outro, a liberdade religiosa e a autonomia das organizações religiosas (art. 5º, VI, CF).
Fundamentos constitucionais: liberdade religiosa como direito fundamental
O STJ iniciou sua fundamentação reconhecendo que a liberdade religiosa não é um direito de segunda categoria, mas integra o núcleo fundamental dos direitos de primeira geração, historicamente ligados à limitação do poder estatal sobre a esfera individual.
A liberdade religiosa desdobra-se em duas dimensões essenciais:
1. Liberdade de crença (aspecto interno) – O direito de crer, não crer ou mudar de religião, protegido contra qualquer interferência estatal ou de terceiros.
2. Liberdade de organização religiosa (aspecto externo) – O direito das organizações religiosas de estruturarem-se autonomamente, definirem suas hierarquias, ritos, procedimentos disciplinares e regras internas, sem subordinação ao Estado.
Esse segundo aspecto é fundamental para o julgado. O STJ reconheceu que a autonomia das organizações religiosas torna legítima a instituição de sigilo em seus ritos e procedimentos internos, como corolário das garantias fundamentais de seus sacerdotes e fiéis (art. 44, § 1º, do Código Civil).
Não se trata, portanto, de mero capricho institucional, mas de manifestação direta da liberdade religiosa, que exige respeito e proteção do Estado.
A natureza do processo eclesiástico: jurisdição voluntária religiosa
Um ponto fundamental destacado pelo STJ é que o processo eclesiástico não se confunde com a jurisdição estatal. Enquanto a jurisdição do Estado é marcada pela imperatividade (imposição obrigatória de decisões) e pela inafastabilidade (impossibilidade de o cidadão esquivar-se dela), o processo eclesiástico é voluntário.

A sujeição de sacerdotes e fiéis a procedimentos disciplinares internos – desde a participação no rito até a aceitação e o cumprimento das sanções religiosas – representa exercício da liberdade religiosa dos envolvidos.
Quando um sacerdote se submete a processo canônico, quando testemunhas prestam depoimentos em procedimentos eclesiásticos, quando o apenado aceita penas expiatórias impostas pela autoridade religiosa, todos estão exercitando sua fé, não cumprindo obrigação estatal.
Essa distinção é essencial: há duas ordens normativas paralelas – a estatal e a religiosa -, e o indivíduo pode transitar entre elas no exercício de sua liberdade. O fato de os mesmos eventos interessarem ao Direito estatal (por exemplo, um crime) não retira a autonomia da esfera religiosa.
O sigilo confessional: proteção legal e constitucional
O STJ destacou que o sigilo confessional não é apenas uma norma religiosa interna, mas está protegido por múltiplos diplomas legais do ordenamento brasileiro:
Art. 13 do Decreto n. 7.107/2010 (Acordo Brasil-Santa Sé) Garante o segredo do ofício sacerdotal, estabelecendo proteção específica ao sigilo da confissão e de outros ritos religiosos.
Art. 154 do Código Penal Criminaliza a revelação de segredo de que se tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão. A violação do sigilo religioso configura crime.
Art. 207 do Código de Processo Penal Estabelece que são proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.
Art. 404, IV, V e VI, do Código de Processo Civil Reconhece motivos legítimos para recusa de exibição de documentos, incluindo a necessidade de preservar direitos fundamentais e sigilos legalmente protegidos.
Portanto, o sigilo religioso não é um privilégio arbitrário, mas uma proteção legal que harmoniza a liberdade religiosa com outros valores do ordenamento jurídico.
O direito à prova não é absoluto: art. 404 do CPC
Um ponto estratégico para concursos é compreender que o direito à prova encontra limites no ordenamento jurídico. O art. 404 do CPC estabelece que a parte pode opor-se à exibição de documento ou coisa quando demonstrar a existência de motivo legítimo.
O STJ reconheceu que a recusa da organização religiosa em exibir o procedimento eclesiástico enquadra-se perfeitamente nos incisos IV, V e VI do art. 404:
Inciso IV: quando a exibição acarretar a divulgação de fatos a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar segredo
Inciso V: quando a exibição acarretar a divulgação de fatos a cujo respeito a lei impõe segredo
Inciso VI: quando a exibição da coisa ou do documento puder violar direito à intimidade, à vida privada ou a direitos humanos e fundamentais
A proteção ao sigilo confessional e à autonomia religiosa enquadra-se claramente nesses dispositivos, configurando motivo legítimo para recusa.
A garantia do nemo tenetur se detegere: risco de autoincriminação
Aqui reside um dos argumentos mais sofisticados do acórdão: a exibição do procedimento eclesiástico pode violar a garantia constitucional do nemo tenetur se detegere (ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo).
O raciocínio é preciso: em procedimentos religiosos, especialmente em contextos de confissão e expiação de pecados, o sacerdote investigado pode ter adotado postura confessional prejudicial a si mesmo, confiando justamente no sigilo religioso.
Se o Estado pudesse acessar essas declarações e utilizá-las em processos civis, trabalhistas ou criminais, estaria:
- Violando a confiança depositada no sigilo religioso
- Compelindo indiretamente à autoincriminação, pois declarações feitas em contexto religioso seriam usadas contra o declarante
- Desestimulando o exercício da liberdade religiosa, ao transformar ritos de expiação em armadilhas processuais
O STJ foi enfático: admitir o acesso aos autos do procedimento eclesiástico – certamente para fins de utilização em outras pretensões (cíveis, trabalhistas ou penais) – gera grave risco de violação à garantia constitucional do nemo tenetur se detegere.
Essa proteção está consagrada no art. 186 do CPP (direito ao silêncio do acusado) e no art. 5º, LXIII, da Constituição Federal (direito de permanecer calado).
Limites da decisão: o que o STJ não disse
É importante compreender os limites dessa decisão para evitar interpretações equivocadas em provas:
O STJ NÃO disse que:
- Crimes praticados por religiosos ficam impunes
- A vítima não pode buscar outros meios de prova
- Processos criminais contra sacerdotes são impossíveis
- A igreja está acima da lei
O STJ disse que:
- O procedimento interno eclesiástico é protegido pelo sigilo religioso
- A vítima deve buscar provas por outros meios (testemunhas, laudos, documentos não religiosos)
- A jurisdição estatal permanece plenamente competente para julgar crimes
- A autonomia religiosa é um limite legítimo ao poder instrutório estatal
Em outras palavras: o Estado pode e deve investigar e punir crimes, mas não pode invadir a esfera de autonomia das organizações religiosas para obter provas, devendo utilizar os meios probatórios ordinários disponíveis.
Distinções importantes para concursos
Procedimento eclesiástico x documentos administrativos da igreja
Protegido pelo sigilo:
- Processo disciplinar canônico interno
- Confissões religiosas
- Ritos de expiação e penitência
- Deliberações de autoridades religiosas em foro íntimo
Não protegido (regra geral):
- Registros de contratação de funcionários
- Documentos fiscais e contábeis
- Contratos civis celebrados pela organização
- Registros de matrícula em escolas religiosas
O sigilo protege a esfera propriamente religiosa, não toda e qualquer atividade administrativa da igreja.
Sigilo religioso x sigilo profissional comum
Ambos são protegidos, mas com fundamentos distintos:
Sigilo religioso:
- Fundamento: liberdade religiosa (CF, art. 5º, VI)
- Natureza: direito fundamental de primeira geração
- Titulares: sacerdotes, fiéis, organização religiosa
- Proteção: muito forte (núcleo da liberdade religiosa)
Sigilo profissional (advogado, médico, psicólogo):
- Fundamento: proteção à intimidade e necessidade funcional
- Natureza: direito derivado da dignidade humana
- Titulares: profissionais e seus clientes
- Proteção: forte, mas pode ceder em casos extremos (perigo iminente)
Quadro sinótico para memorização
| Aspecto | Conteúdo |
| Direito envolvido | Liberdade religiosa (CF, art. 5º, VI) |
| Autonomia religiosa | Legítima para instituir sigilo em ritos internos |
| Natureza do processo eclesiástico | Voluntário (não imperativo como jurisdição estatal) |
| Proteção legal do sigilo | Decreto 7.107/2010, art. 13; CP, art. 154; CPP, art. 207 |
| Limite ao direito à prova | Art. 404, IV, V e VI, do CPC |
| Garantia constitucional | Nemo tenetur se detegere (CF, art. 5º, LXIII; CPP, art. 186) |
| Motivo legítimo para recusa | Sigilo ministerial + autonomia religiosa + risco autoincriminação |
| Consequência prática | Igreja pode recusar exibição de procedimento disciplinar interno |
Conexão direta com concursos públicos
João ajuizou ação de exibição de documentos contra a Arquidiocese local, pretendendo ter acesso ao processo disciplinar eclesiástico instaurado contra Padre Antônio, acusado de abuso sexual. A Arquidiocese opõe-se à exibição, alegando sigilo religioso e autonomia organizacional. Não há qualquer indício de que o procedimento eclesiástico contenha informações sobre outros crimes ou vítimas além das já conhecidas pela investigação criminal estatal. Com base no entendimento do STJ, assinale a alternativa correta:
A) A exibição deve ser deferida, pois o direito à prova da vítima prevalece sobre a autonomia religiosa quando se trata de investigação de crime grave, aplicando-se o princípio da proporcionalidade.
B) A Arquidiocese pode recusar a exibição do procedimento eclesiástico, pois o sigilo religioso está protegido constitucionalmente e a exibição representaria grave risco de violação à garantia do nemo tenetur se detegere.
C) A exibição deve ser parcial, permitindo-se o acesso apenas às partes do procedimento que não contenham confissões ou manifestações religiosas do acusado, preservando-se o núcleo do sigilo ministerial.
D) A recusa da Arquidiocese configura litigância de má-fé, pois não há motivo legítimo previsto no art. 404 do CPC que ampare a proteção de procedimentos disciplinares internos relacionados a crimes.
E) A exibição deve ser deferida, mas com segredo de justiça, garantindo-se que as informações serão utilizadas exclusivamente no processo judicial, sem divulgação pública, o que afasta a alegação de violação ao sigilo religioso.
GABARITO: B
Explicação:
A alternativa B está correta porque reproduz fielmente o entendimento do STJ no julgado de outubro de 2025. A Quarta Turma reconheceu que a organização religiosa pode recusar o acesso ao procedimento disciplinar eclesiástico com fundamento em três pilares: (1) a liberdade religiosa e a autonomia das organizações religiosas (CF, art. 5º, VI), que legitimam a instituição de sigilo em ritos e procedimentos internos; (2) a proteção legal ao sigilo confessional (Decreto 7.107/2010, art. 13; CP, art. 154; CPP, art. 207); e (3) o grave risco de violação à garantia constitucional do nemo tenetur se detegere (CF, art. 5º, LXIII), pois declarações prestadas em contexto religioso, confiando no sigilo, poderiam ser usadas contra o declarante em processos estatais. O art. 404, IV, V e VI, do CPC ampara a recusa, configurando motivo legítimo.
A alternativa A está incorreta porque, embora o princípio da proporcionalidade seja relevante em colisões de direitos fundamentais, o STJ foi claro ao estabelecer que o sigilo religioso e a autonomia organizacional religiosa não podem ser relativizados simplesmente pela gravidade do crime investigado. A vítima tem direito à prova, mas deve buscá-la por outros meios disponíveis no ordenamento (testemunhas, perícias, documentos não religiosos), não podendo invadir a esfera de autonomia religiosa protegida constitucionalmente. A proporcionalidade, no caso, favorece a proteção do núcleo essencial da liberdade religiosa.
A alternativa C está incorreta porque propõe solução que o STJ expressamente rejeitou. Não é possível "higienizar" o procedimento eclesiástico separando partes confessionais de partes não confessionais, pois: (1) todo o procedimento está imerso no contexto de sigilo religioso; (2) a exibição parcial ainda violaria a autonomia organizacional; (3) mesmo informações aparentemente neutras podem revelar conteúdo protegido pelo contexto religioso; e (4) o risco de autoincriminação persiste mesmo com exibição parcial, pois o conjunto probatório pode ser prejudicial ao investigado.
A alternativa D está incorreta porque contraria frontalmente o art. 404 do CPC e o entendimento do STJ. Os incisos IV, V e VI do art. 404 preveem expressamente como motivos legítimos para recusa: (IV) dever de guardar segredo por estado ou profissão; (V) segredo imposto por lei; e (VI) risco de violação de direitos fundamentais. A recusa da Arquidiocese enquadra-se perfeitamente nessas hipóteses, não configurando má-fé, mas exercício legítimo de direito constitucionalmente protegido. Ademais, litigância de má-fé exige conduta processual contrária à boa-fé objetiva, o que não se verifica na resistência fundada em direito fundamental.
A alternativa E está incorreta porque o segredo de justiça não afasta os fundamentos da proteção ao sigilo religioso. O STJ deixou claro que o problema não é apenas a divulgação pública, mas a própria quebra da esfera de autonomia religiosa e o risco de autoincriminação do investigado. Mesmo que o processo tramite em segredo de justiça, as informações obtidas no procedimento eclesiástico poderiam ser utilizadas contra o acusado no processo estatal (civil, trabalhista ou criminal), violando a garantia do nemo tenetur se detegere. O sigilo religioso protege não apenas contra divulgação ampla, mas contra o próprio acesso estatal a declarações prestadas em contexto de confiança religiosa. Além disso, o segredo de justiça não tem o poder de relativizar direitos fundamentais como a liberdade religiosa e a autonomia organizacional das igrejas.
Esse julgado representa sofisticação jurídica que as bancas adoram explorar: envolve múltiplos ramos do Direito, exige ponderação de direitos fundamentais e demanda compreensão profunda dos limites da intervenção estatal. Dominar essa decisão é diferencial competitivo real.
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