*Juliana Ferreira de Morais – Juíza do Trabalho do TRT2ª Região, Doutoranda e mestre em Direito do Trabalho, Professora de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho do Estratégia, Autora de livros
Recentemente, uma situação inusitada foi judicializada e chamou a atenção da comunidade jurídica: o ajuizamento de ação trabalhista por uma mulher que pleiteou o direito à licença-maternidade junto ao empregador, alegando exercer papel materno em relação a uma bebê reborn — boneca hiper-realista que simula, com notável perfeição estética, um recém-nascido.
Após o pedido, a trabalhadora teria sido alvo de zombarias e constrangimentos por parte de seus colegas e superiores hierárquicos. Isso motivou a propositura da ação com pedido de rescisão indireta e indenização por danos morais.
O caso foi distribuído à 16ª Vara do Trabalho de Salvador/BA. Desde então, isso tem suscitado acalorados debates: quais são os limites da proteção jurídica à maternidade? É possível reconhecer efeitos jurídicos a um vínculo afetivo estabelecido com um objeto? A resposta exige a ponderação de princípios constitucionais, institutos do Direito do Trabalho e normas processuais que disciplinam o exercício regular do direito de ação.
O contexto do pedido
Na petição inicial, a trabalhadora afirma que, embora sua filha seja uma boneca reborn, ela desempenha funções maternas com afeto, zelo e responsabilidade, possuindo enxoval, rotina de cuidados e vínculo emocional profundo. Narra, ainda, que ao requerer à empresa a concessão de licença-maternidade, teria sido alvo de zombarias e constrangimentos por parte de colegas e superiores. Essa circunstância motivou o pedido de rescisão indireta, com base no art. 483, alínea “d”, da CLT.
Além da rescisão contratual, a autora requer indenização por danos morais, no valor de R$ 10 mil, pelos abalos psíquicos decorrentes da alegada situação de assédio e descrédito à sua condição materna.
Diante da intensa repercussão do caso, a autora desistiu da ação trabalhista, . Ttendo o pedido sido protocolado em 29 de maio na 16ª Vara do Trabalho de Salvador/BA, com solicitação de segredo de Justiça.
Na petição, a advogada esclareceu que a demanda não visava o reconhecimento jurídico da boneca reborn como filha, mas sim a rescisão indireta do contrato, alegando assédio moral no ambiente de trabalho.
A exposição pública, segundo a defesa, desencadeou ataques virtuais, incitação à violência e até tentativas de contato presencial, inclusive durante a madrugada, o que levou ao fechamento das redes sociais do escritório. Diante dos riscos à integridade da autora e de sua procuradora, foi formalizada a desistência com renúncia aos prazos recursais.
A natureza jurídica da licença-maternidade
O ordenamento jurídico brasileiro estabelece a licença-maternidade como medida de proteção à criança e à família. Conforme o art. 392 da CLT e o art. 7º, XVIII, da Constituição Federal, o afastamento remunerado de 120 dias tem como finalidade permitir que a mãe ofereça cuidados essenciais ao recém-nascido nos primeiros meses de vida, período reconhecidamente sensível do desenvolvimento físico e emocional.
No caso da maternidade socioafetiva, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do RE 778.889/PE (Tema 782 da repercussão geral). Na oportunidade, equiparou-se o direito das mães adotantes ao das mães biológicas, reconhecendo que a função da licença-maternidade é proporcionar a criação de vínculos e garantir a inserção do menor ao núcleo familiar — sempre em benefício do sujeito de direito, seja ele nascituro ou criança/adolescente. Cabe transcrever o tema citado:
Tema 782 de RG: Os prazos da licença adotante não podem ser inferiores aos prazos da licença gestante, o mesmo valendo para as respectivas prorrogações. Em relação à licença adotante, não é possível fixar prazos diversos em função da idade da criança adotada.
No mesmo sentido, o Tema 1072 de Repercussão Geral reforça o caráter protetivo da licença-maternidade ao reconhecer que, nas uniões homoafetivas, a mãe não gestante também faz jus ao benefício, assegurando o direito ao gozo da licença-maternidade integral, caso a companheira não a tenha usufruído, ou, alternativamente, ao período equivalente à licença-paternidade, se esta já tiver sido concedida à genitora. Eis o seu teor:
Tema 1072 de RG: A mãe servidora ou trabalhadora não gestante em união homoafetiva tem direito ao gozo de licença-maternidade. Caso a companheira tenha utilizado o benefício, fará jus à licença pelo período equivalente ao da licença-paternidade.
Ocorre que, no caso retratado, não se trata de um sujeito de direito, mas sim de um objeto inanimado, ainda que dotado de aparência hiper-realista. As bonecas reborn, por mais que possam ter relevante função emocional, não se equiparam, juridicamente, a crianças ou seres humanos. São coisas, conforme a dicção civilista, e não há qualquer norma que reconheça a possibilidade de licenças ou direitos parentais em relação a entes inanimados.
Limites do direito de ação e abuso de direito
É inegável que o direito de acesso à Justiça é assegurado a todos, conforme o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” Todavia, o exercício desse direito deve observar os limites impostos pela boa-fé, razoabilidade e finalidade legítima.
O art. 187 do Código Civil dispõe que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” Quando o ajuizamento da ação revela pretensão incompatível com o sistema jurídico, ou lastreada em fato sabidamente inidôneo à geração de efeitos jurídicos, pode-se configurar abuso do direito de ação.
Além disso, o art. 80 do CPC prevê hipóteses em que se pode considerar o autor como litigante de má-fé, notadamente quando:
I – deduz pretensão contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
V – procede de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo.
Em tese, a ação em questão pode atrair a aplicação de tais dispositivos, sobretudo porque a legislação trabalhista e constitucional não reconhece a extensão de direitos laborais a vínculos afetivos com objetos — ainda que envolvam significativa carga emocional. A depender da argumentação e do grau de descompasso com o ordenamento, o juiz poderá, inclusive, aplicar multa por litigância de má-fé.
Relações afetivas e o papel do Direito

É importante, todavia, evitar conclusões precipitadas ou reações escarnecedoras. O caso revela uma realidade psíquica que merece cuidado — ainda que não repercuta em direitos jurídicos. Muitas pessoas, especialmente mulheres que enfrentaram perdas gestacionais ou traumas emocionais, recorrem às reborns como instrumento simbólico de elaboração do luto ou preenchimento de afetos.
O papel do Direito, neste ponto, é traçar limites jurídicos com sensibilidade, sem ignorar a complexidade das vivências humanas. É preciso reconhecer que há dores reais por trás de muitos pedidos, ainda que eles não encontrem respaldo legal. A distinção entre acolher o sofrimento com empatia e transformar essa experiência em direitos subjetivos juridicamente exigíveis é delicada — mas necessária. A empatia, nesse contexto, não significa conferir efeitos jurídicos a toda forma de afeto, mas sim escutar, compreender e, dentro do possível, orientar sem deslegitimar a dor.
Conclusão
O ajuizamento de ação postulando licença-maternidade por vínculo com bebê reborn ultrapassa, em princípio, os limites jurídicos do instituto. Embora o Poder Judiciário deva apreciar toda lesão ou ameaça a direito, não se pode desvirtuar a função protetiva da licença-maternidade, que se destina a garantir o cuidado com seres humanos em fase inicial de vida ou durante a adaptação ao novo seio familiar — não objetos, por mais realistas que pareçam.
Embora a ação ajuizada revele um sofrimento psíquico que não se pode ignorar, é necessário reconhecer que o ordenamento jurídico brasileiro não contempla, até o momento, a possibilidade de concessão de licença-maternidade em razão de vínculo afetivo com bonecas reborn. Trata-se de um objeto inanimado, juridicamente classificado como coisa, sem personalidade jurídica ou titularidade de direitos. Por essa razão, não há previsão legal que autorize a aplicação das normas de proteção à maternidade nesse contexto, podendo até mesmo ensejar abuso do direito de ação e atrair sanções processuais.
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