Nikolas Ferreira é condenado por transfobia

Nikolas Ferreira é condenado por transfobia

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios condenou o deputado federal Nikolas Ferreira, expoente da direita brasileira, a pagar uma indenização por dano moral coletivo no valor de R$ 200 mil.

A condenação refere-se ao episódio em que Nikolas disse ser uma mulher transexual ao discursar na tribuna da Câmara no Dia Internacional das Mulheres, em 2023.

A ação foi movida por associações representativas da comunidade LGBTQIA+, que acusaram o parlamentar de promover discurso de ódio ao vestir uma peruca amarela e afirmar que “se sentia uma mulher” e que “as mulheres estão perdendo seu espaço para homens que se sentem mulheres“.

A magistrada Priscila Faria da Silva justificou que a fala do parlamentar extrapolou a liberdade de expressão e isso acontece “quando o discurso é utilizado para praticar ou incitar conduta criminosa, com o único objetivo de ofender, ou mesmo para difundir o ódio contra grupos vulneráveis”.

Segundo a juíza, o discurso do deputado descredibiliza a identidade de gênero assumida pela população transsexual e insufla a sociedade a fazer o mesmo.

O uso de uma peruca em pleno tribunal da Câmara dos Deputados reforçou o discurso discriminatório.

A decisão, de primeira instância, é passível de recurso.

Relembre o caso

Em março de 2023, o deputado colocou uma peruca e disse na tribuna:

“Hoje, no Dia Internacional das Mulheres, a esquerda disse que eu não poderia falar, pois eu não estava no meu local de fala. Então, eu solucionei esse problema aqui. Hoje eu me sinto mulher. Deputada Nikole.”

A comunidade LGBTQIA+ e o movimento feminista viram o discurso como carregado de ódio e incitador da violência de gênero. Isso motivou o ajuizamento da ação, julgada procedente.

Análise jurídica

A controvérsia está em definir se o discurso do deputado Nikolas está ou não amparada pelo direito fundamental à liberdade de expressão (art. 5º, inciso IV, da C.F./88) e pela imunidade parlamentar material de que gozam os titulares de mandato legislativo (art. 53, caput, da C.F./88).

Liberdade de expressão

CF/88

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

...

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

...

Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.

Embora os direitos de livre manifestação do pensamento e de expressão sejam direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal de 1988, nenhum direito é absoluto.

A finalidade da liberdade de expressão é permitir a construção da democracia, que pressupõe a possibilidade de debate de ideias diferentes.

Pode-se restringir a liberdade de expressão quando se utiliza o discurso para praticar ou incitar conduta criminosa, com o único objetivo de ofender, ou mesmo para difundir o ódio contra grupos vulneráveis.

Nessas circunstâncias, é dever do Poder Judiciário, uma vez provocado, realizar a ponderação de valores no caso concreto, para avaliar se o discurso foi abusivo na forma e/ou no conteúdo, e se deve prevalecer a liberdade de expressão ou a proteção aos direitos dos que alegam terem sido vítimas da ofensa.

O então ministro do Supremo, Carlos Velloso, foi preciso em seu voto:

“É induvidoso que a Constituição brasileira consagra a liberdade de expressão, que se consubstancia nas liberdades de manifestação do pensamento, de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação e a liberdade de imprensa. Não é menos certo, entretanto, que não há direitos absolutos. Ora, não pode a liberdade de expressão acobertar manifestações preconceituosas e que incitam a prática de atos de hostilidade contra grupos humanos, manifestações racistas, considerado o racismo nos termos anteriormente expostos, manifestações atentatórias à dignidade humana e a direitos fundamentais consagrados na Constituição (...) A liberdade de expressão não pode sobrepor-se à dignidade da pessoa humana, fundamento da República e do Estado Democrático de Direito que adotamos –C.F., art. 1º, III – ainda mais quando essa liberdade de expressão apresenta-se distorcida e desvirtuada” (HC 82.424)

O código civil trata do abuso de direito como um ato ilícito, nos termos de seu art. 187: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

O ordenamento jurídico brasileiro não permite que o hate speech (discurso de ódio) acoberte-se do manto da liberdade de expressão, que encontra restrições voltadas ao combate do preconceito e da intolerância.

Discurso de ódio (hate speech): consiste na manifestação de valores discriminatórios, que fere a igualdade, ou de incitamento à discriminação, violência ou a outros atos de violação de direitos de outrem.

Importante pontuar que não é pressuposto para a caracterização do discurso de ódio a utilização de adjetivos pejorativos ou a propagação de ordens explícitas de atos violentos contra os integrantes do grupo que se pretende discriminar.

O discurso de ódio pode ser velado, subliminar, dissimulado, sutil, e talvez nessa modalidade seja até mais perigoso, porque não fica necessariamente explícito, e revela-se aparentemente mais aceitável socialmente. Foi o caso do deputado Nikolas Ferreira.

Mas o que é a transfobia?

Termo utilizado para se referir ao preconceito, discriminação ou hostilidade direcionada a pessoas transgênero, ou seja, aquelas cuja identidade de gênero é diferente do sexo atribuído ao nascimento.

Pode-se perceber a transfobia de diversas formas no dia a dia:

  • Exclusão social;
  • Estigma;
  • Preconceito velado;
  • Tratamento desrespeitoso;
  • Violência física e psicológica;
  • Ameaças e até mesmo a morte.

É preciso destacar que o STF, no julgamento da ADO 26, entendeu que a homofobia é forma de racismo (Lei nº 7.716/1998) e, por consequência, a injúria homofóbica passa a ser enquadrada como injúria racista qualificada por homofobia.
Liberdade de expressão
Segundo a Suprema Corte, o conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.

O STF prosseguiu o julgamento. A Corte deixou claro que a repressão penal à homofobia não fragiliza a liberdade religiosa, o que pode ser aplicado à liberdade de expressão.

A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros(sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmano se líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros)é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.

O Supremo ressaltou que os integrantes do grupo LGBTI+, como qualquer outra pessoa, nascem iguais em dignidade e direitos e possuem igual capacidade de autodeterminação quanto às suas escolhas pessoais em matéria afetiva e amorosa, especialmente no que concerne à sua vivência homoerótica.

Em resumo, o STF decidiu, no julgamento da ADO 26:

• Dar interpretação conforme à Constituição para enquadrar a homofobia e a transfobia nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89 (Lei de combate ao racismo), até que sobrevenha legislação autônoma;

• A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, a cujos fiéis e ministros é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, o seu pensamento, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio;

• O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+), são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.

Ótimo tema para provas de direito constitucional e direito civil.


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