Tribunal do Júri absolve homem que tentou matar o estuprador de seu filho, com base em legítima defesa permanente e clemência.
* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
O Tribunal do Júri em Santa Catarina absolveu um homem que tentou matar seu cunhado, por ter estuprado seu filho. O abusador estuprou o então menor, que é portador de deficiência mental, ao menos 324 vezes durante quase duas décadas. O crime chocou o Brasil diante da crueldade.
Entenda o caso
De acordo com o relato do menor, os abusos aconteciam aos finais de semana, quando ele ficava no rancho do tio, que é irmão gêmeo de sua mãe. Lá, o agressor o obrigava a vestir roupas íntimas e femininas, além de aplicar batom em sua boca antes de beijá-lo. Segundo o depoimento, essas humilhações precediam os atos de violência sexual, que ocorriam nos fundos da propriedade.
Nesse rancho, o homem colocava o sobrinho diante de “roçadeiras, machados e foices”, na tentativa de ameaçá-lo. Conforme consta no processo, o tio dizia que se ele gritasse ou fizesse barulhos, o mataria.
O medo de morrer impedia que a vítima, que tem necessidades especiais, denunciasse os estupros. Contudo, após anos sofrendo violência, o jovem contou a uma psicóloga o que estava acontecendo.
A psicóloga, então, revelou os crimes aos pais do menor, que ficaram abalados. Por sua vez, a mãe do jovem, inclusive, contou que “desconfiava” que algo estivesse acontecendo após uma vizinha alertá-la sobre comportamentos estranhos envolvendo tio e sobrinho. À época, porém, a genitora não teria cogitado os abusos.
Após receber a revoltante notícia da psicóloga, o casal voltou para casa, e planejavam registrar um boletim de ocorrência contra o agressor. Porém, logo após a mulher sair de casa para trabalhar, o pai (Eloi) pegou uma arma, procurou o estuprador e atirou contra ele. O homem não morreu.
Eloi foi preso por tentativa de homicídio, e agora absolvido pelo júri, cujo conselho de sentença foi formado por quatro mulheres e três homens. O Ministério Público não pretende recorrer da decisão.
O estuprador foi condenado a 14 anos de reclusão, e acabou morrendo de um acidente de trânsito, antes de se apresentar à polícia.
Análise Jurídica – Legítima defesa permanente
Agora que sabemos sobre esse triste episódio, vamos analisar a repercussão jurídica do caso. Bem como pode ser cobrado em provas de carreiras jurídicas (magistratura, defensoria pública, ministério público).
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXXVIII, d, define a competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (consumados ou tentados), e que é corroborado pelo artigo 74, do Código de Processo Penal.
XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida; (CF/88)
Art. 74. A competência pela natureza da infração será regulada pelas leis de organização judiciária, salvo a competência privativa do Tribunal do Júri. § 1º Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos arts. 121, §§ 1º e 2º, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados. (CPP)
No caso em questão, a absolvição do pai foi fundamentada em critérios técnicos e emocionais. A defesa alegou duas teses principais:
Legítima defesa permanente
A legítima defesa está prevista no artigo 25 do código penal, entendendo-se por legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
O STF, no julgamento da ADPF 779, afastou a teoria da “legítima defesa da honra”. O tribunal entendeu que sua aplicação viola a dignidade da pessoa humana, a vedação de todas as formas de discriminação. Além disso, fere o direito à igualdade e o direito à vida. A decisão considerou os riscos elevados e sistêmicos decorrentes da naturalização, da tolerância e do incentivo à cultura da violência doméstica e do feminicídio.
A legítima defesa permanente é uma figura doutrinária que amplia o conceito de agressão iminente. Ela é aplicada em casos em que a agressão é constante e iminente. Como exemplos, podemos citar o caso de uma mulher que sofre violência doméstica por anos e decide reagir. Ou, ainda, o de um menor que é estuprado por anos e decide denunciar, como é o caso em questão, onde a violência era permanente, pois o adolescente foi abusado por mais de uma década, o que autorizaria o pai a agir para protegê-lo.
Como a agressão se perpetua no tempo, cria-se um estado constante de perigo e medo, que justifica ações voltadas a repelir essa agressão, atraindo a figura da legítima defesa.
Pedido de clemência
A soberania dos veredictos, que impera no Tribunal do Júri, e que é um garantia constitucional. Aliada ao livre convencimento, essa soberania permite aos jurados decidir com liberdade, incluindo a absolvição por clemência. Ou seja, o instituto permite aos jurados absolverem o réu por compaixão, mesmo diante de evidências de sua culpa, ressaltando a humanidade do sistema de justiça.
O STF está analisando o uso da clemência no Tribunal do Júri no julgamento do TEMA 1.087. Até o presente momento (29/09/2024) o julgamento está suspenso, mas já há voto do Ministro Gilmar Mendes, Edson Fachin e Alexandre de Moraes. Vamos entender o voto do relator (Mendes).
TEMA 1.087
Tema 1087 – Possibilidade de Tribunal de 2º grau, diante da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, determinar a realização de novo júri em julgamento de recurso interposto contra absolvição assentada no quesito genérico, ante suposta contrariedade à prova dos autos.
Soberania dos Veredictos do Tribunal do Júri
O ministro Gilmar Mendes votou pela impossibilidade de um tribunal de segunda instância determinar a realização de novo julgamento pelo Tribunal do Júri (júri popular) no caso em que o réu tenha sido absolvido sem fundamentação específica, por motivos como clemência, piedade ou compaixão, em suposta contrariedade à prova dos autos.
De acordo com o CPP, os jurados devem responder a três perguntas: se houve o crime, quem foi o autor e se o acusado deve ser absolvido. A absolvição por quesito genérico se dá quando o júri responde positivamente à terceira pergunta sem apresentar motivação e em sentido contrário às provas apresentadas no processo, mesmo tendo reconhecido a ocorrência e a autoria do delito. Essa resposta pode ser motivada por clemência, piedade ou compaixão do júri pelo acusado.
Em seu voto, o Relator destacou que a substituição da decisão dos jurados por uma tomada por um colegiado de magistrados esvaziaria a soberania dos vereditos do tribunal popular, formado por juízes leigos. Na sua avaliação, se ao responder ao quesito genérico o jurado pode absolver o réu sem especificar os motivos, não é admissível um recurso de apelação com o fundamento de que a decisão foi manifestamente contrária à prova dos autos.
Exceção para a tese de Legítima Defesa da Honra
Mas, para Gilmar Mendes, existe uma exceção: a possibilidade de apelação na hipótese de utilização da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio, tese que foi afastada pela Corte na ADPF 779, como vimos mais acima.
O ministro Edson Fachin abriu divergência (que acabou prevalecendo), para o qual o Tribunal de apelação pode determinar a realização de novo júri desde que não haja provas que corroborem a tese da defesa ou desde que seja concedida clemência a casos que, por ordem constitucional, são insuscetíveis de graça ou anistia.
A Corte fixou a seguinte TESE:
I – É cabível recurso de apelação com base no art. 593, III, d, do CPP nas hipóteses em que a decisão do tribunal do Júri, amparada em quesito genérico, for considerada pela acusação como manifestamente contrária à prova dos autos.
II – O tribunal de apelação não determinará novo Júri quando tiver ocorrido apresentação constante em ata de tese conducente à clemência ao acusado e essa fora colhida pelos jurados, desde que seja compatível com a CF, os precedentes vinculantes do STF e com as circunstâncias fáticas apresentadas nos autos.
O placar final foi o seguinte:
Por fim, no caso ora analisado, tudo incida que o Ministério Público não irá recorrer, e que Eloi (o pai que tentou matar o cunhado/estuprador do filho) terá a absolvição consolidada.
Ótimo tema para provas do Ministério Público, Defensoria Pública e Magistratura.
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