Guilherme Carneiro de Rezende
Introdução: Direito Penal como ferramenta de proteção dos Direitos Humanos
O Direito Penal, embora seja o instrumento mais gravoso do ordenamento jurídico, desempenha papel indispensável na proteção de direitos humanos fundamentais.
Essa proteção deve se conformar ao princípio da proporcionalidade, evitando tanto o excesso punitivo — que compromete garantias fundamentais — quanto a proteção deficiente, que fragiliza a tutela de bens jurídicos essenciais.
No campo racial, a proporcionalidade exige que o Estado reforce a proteção de grupos historicamente discriminados — como afrodescendentes, povos indígenas e outras minorias raciais ou étnicas — reconhecendo-os como sujeitos de especial tutela diante de vulnerabilidades estruturais.
Tal perspectiva dialoga com a doutrina e a jurisprudência que identificam o racismo como fenômeno estrutural, cujas raízes remontam à colonização, à escravidão e a práticas legislativas seletivas.
A partir do pós-guerra, convenções internacionais — como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ONU, 1965, incorporada ao Brasil pelo Decreto n. 65.810/1969) e a Convenção Interamericana contra o Racismo (OEA, Decreto n. 10.932/2022, com status constitucional pelo art. 5º, § 3º, CF) — impuseram ao Estado brasileiro o dever de adotar medidas legislativas, judiciais e políticas de combate ao racismo.
É nesse cenário, portanto, que o Superior Tribunal de Justiça recentemente publicou uma edição temática da Jurisprudência em Teses sobre Equidade Racial, sistematizando entendimentos firmados acerca da injúria racial e demais crimes de natureza racial.
Essa iniciativa vem em momento oportuno, pois se conecta ao debate intensificado pela recente condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Dos Santos Nascimento e Ferreira Gomes vs. Brasil, em que a Corte destacou falhas estruturais no enfrentamento institucional ao racismo e determinou a adoção de medidas concretas para garantir investigação, julgamento e punição efetiva desses delitos.
Assim, a legislação penal brasileira e a jurisprudência dos tribunais superiores formam hoje um microssistema penal antirracista, que trata a injúria racial como espécie de racismo (art. 140, § 3º, CP; Lei n. 7.716/1989) e lhe aplica um regime jurídico rigoroso — imprescritibilidade, inafiançabilidade, vedação a acordos despenalizadores e competência especializada — em sintonia com compromissos internacionais e decisões vinculantes do Sistema Interamericano.
Alguns entendimentos firmados pelo STJ (edição 264, da jurisprudência em teses do STJ)
Dolo específico na injúria racial
A jurisprudência do STJ firmou que a configuração do crime de injúria racial exige dolo específico: a intenção deliberada de ofender a honra subjetiva da vítima usando elementos relacionados à raça, cor, etnia, religião ou origem. Isso significa que não basta a prolação de palavras ofensivas; é preciso que a motivação esteja vinculada ao preconceito racial.
Esse critério é essencial para diferenciar a injúria racial de outras modalidades de injúria, evitando enquadramentos penais indevidos e garantindo que a tutela penal seja dirigida às hipóteses de efetiva discriminação.
Embriaguez voluntária e ânimos exaltados não afastam o dolo
O art. 28, II, do Código Penal e a teoria da actio libera in causa fundamentam o entendimento de que a embriaguez voluntária ou culposa não exclui a imputabilidade nem o dolo. O STJ já afirmou (AgInt no REsp 1.548.520/MG) que, mesmo que o agente esteja incapaz de entender o caráter ilícito do fato no momento da ação, será responsável se se colocou dolosa ou culposamente nesse estado.
Além disso, a Corte observa que a maioria das injúrias ocorre com ânimos exaltados, de modo que a excitação emocional não afasta o dolo específico, tampouco serve como escusa para o proferimento de ofensas raciais.
Imprescritibilidade da injúria racial
O STF e o STJ reconhecem que, com a Lei n. 9.459/1997, a injúria racial passou a integrar o gênero racismo, o que atrai o regime jurídico do art. 5º, XLII, da CF: imprescritibilidade e inafiançabilidade. Assim, a interpretação reforça que o tempo não apaga a obrigação estatal de punir condutas racistas (AgRg no AREsp 686.965/DF).
Essa imprescritibilidade garante que, mesmo após décadas, o Estado possa processar e julgar crimes raciais, reafirmando a intolerância institucional a essas práticas.
Inaplicabilidade do acordo de não persecução penal (ANPP)
No RHC 222.599, o STF decidiu que o ANPP (art. 28-A, CPP) é incompatível com crimes raciais, em especial a injúria racial e os delitos da Lei n. 7.716/1989. A Corte aplicou raciocínio semelhante ao do inciso IV do § 2º do art. 28-A, que já veda o acordo em crimes de violência doméstica, reforçando que, no combate ao racismo, prevalece a tutela do direito fundamental à não discriminação (art. 3º, IV, CF) e as obrigações assumidas pelo Brasil em tratados internacionais.
Não prescrição da pretensão punitiva
A vedação de prescrição (CF, art. 5º, XLII) abrange toda a persecução penal em crimes raciais. A mensagem central é clara: não há limite temporal para que o Estado investigue, processe e puna condutas racistas, garantindo resposta penal contínua e efetiva.
Rejeição ao conceito de racismo reverso
O STJ rejeitou o chamado racismo reverso, amparado no art. 20-C da Lei n. 14.532/2023 e em fundamentos sociológicos: racismo é um fenômeno estrutural voltado contra grupos vulneráveis, independentemente de serem numericamente minoritários. O conceito de “grupo minoritário” não se refere ao tamanho populacional, mas à sub-representação em posições de poder e ao histórico de discriminação institucional.
Ofensas a pessoas brancas por sua cor podem configurar injúria simples (art. 140, caput, CP), mas não injúria racial, pois não se enquadram no elemento histórico-estrutural do tipo.
Competência da Justiça Federal em crimes raciais digitais de alcance transnacional

Quando a ofensa racial, publicada em redes sociais ou mídias digitais, é dirigida a uma coletividade e possui real potencial de propagação internacional, a competência é da Justiça Federal (CF, art. 109, V). O critério é o impacto e a abrangência da conduta.
A competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, V, da Constituição Federal, se estabelece quando a conduta está prevista em tratado ou convenção internacional ratificado pelo Brasil e apresenta potencial transnacionalidade, isto é, possibilidade real de alcançar outros países, independentemente de prova de acesso efetivo no exterior.
Portanto, a competência é da justiça federal porque:
- O crime está previsto em tratado internacional ratificado pelo Brasil;
- A ofensa foi dirigida a uma coletividade, e não a uma pessoa individualmente;
- O meio de divulgação garante potencial transnacionalidade do conteúdo;
Competência da Justiça Estadual em casos individuais ou de alcance restrito
Se a ofensa é dirigida a vítima determinada ou não tem potencial de divulgação internacional, a competência permanece na Justiça Estadual, preservando o princípio do juiz natural e evitando deslocamentos indevidos.
Conclusão
A reunião dessas teses na temática Equidade Racial revela um esforço integrado dos tribunais superiores para aplicar o Direito Penal como instrumento de proteção reforçada aos direitos humanos, especialmente na tutela contra o racismo estrutural.
Esse microssistema combina rigor punitivo (imprescritibilidade, vedação de benefícios, competência especializada) com critérios de tipicidade que evitam abusos (dolo específico, exclusão de hipóteses sem discriminação estrutural).
Logo, trata-se de um modelo que reconhece a gravidade histórica e social do racismo, responde com firmeza proporcional e cumpre obrigações internacionais assumidas pelo Brasil.
Como isso vai cair na sua prova?
Acerca da jurisprudência do STJ e do STF relativa à injúria racial e demais crimes de natureza racial, assinale a alternativa correta:
a) A embriaguez voluntária ou culposa pode excluir o dolo específico exigido para a injúria racial, se comprovado que o agente estava incapaz de entender o caráter ilícito do fato.
b) A injúria racial não é considerada espécie do crime de racismo, razão pela qual se sujeita à prescrição prevista no Código Penal.
c) É aplicável o acordo de não persecução penal (ANPP) ao crime de injúria racial, desde que preenchidos os requisitos do art. 28-A do CPP.
d) O chamado “racismo reverso” é admitido pela legislação penal brasileira, desde que a ofensa por motivo de cor seja dirigida contra pessoa branca.
e) Compete à Justiça Federal processar e julgar crime de injúria racial praticado por meio de postagem em rede social, quando dirigido a uma coletividade e com potencial real de propagação internacional.
Gabarito: E.
Comentário:
A e está correta: quando a conduta é direcionada a uma coletividade e tem potencial de propagação internacional, a competência é da Justiça Federal (CF, art. 109, V).
A alternativa a está errada porque, segundo o art. 28, II, do CP e a teoria da actio libera in causa, a embriaguez voluntária não exclui dolo nem culpabilidade (AgInt no REsp 1.548.520/MG).
A b está incorreta, pois a injúria racial é espécie do gênero racismo e, portanto, imprescritível e inafiançável (CF, art. 5º, XLII; AgRg no AREsp 686.965/DF).
A c está errada: o STF, no RHC 222.599, vedou o ANPP para crimes raciais.
A d está incorreta: o art. 20-C da Lei n. 14.532/2023 e a jurisprudência rejeitam o conceito de “racismo reverso”, que não se aplica a grupos historicamente privilegiados.
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