Jurisprudência defensiva? STJ reavalia exigência de data anterior à interposição do recurso em procurações (AREsp 2.509.244)

Jurisprudência defensiva? STJ reavalia exigência de data anterior à interposição do recurso em procurações (AREsp 2.509.244)

Análise jurídica sobre a decisão do STJ (AREsp 2.509.244) que reavalia se procurações devem ter data anterior ao recurso.

Jurisprudência defensiva

Introdução

Imagine a seguinte situação hipotética:

Um advogado, representando seu cliente em um complexo processo judicial, prepara cuidadosamente um recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça (STJ). 

No entanto, ao protocolar o recurso, o advogado percebe que a procuração que o cliente lhe outorgou está datada um dia após a interposição do recurso. 

Ou seja, suponha que ele protocolou o recurso no dia 06/09/2024, mas o cliente passa no seu escritório e assina a procuração datada do dia 07/09/2024.

O cerne é: essa simples questão formal poderia resultar na não admissão do recurso, independentemente de seu mérito?

Esta situação, aparentemente “trivial”, está no cerne de um debate significativo no STJ. 

A 1ª Turma do STJ está reavaliando a necessidade de barrar o trâmite de um processo quando a procuração outorgada pela parte ao advogado tiver data posterior àquela em que o recurso especial foi interposto. 

Nessa linha, aproveitamos o assunto que será levantado durante o julgamento do AREsp 2.509.244 para colocar em evidência o delicado equilíbrio entre “formalismo processual” e/ou “efetividade da justiça”.

Perceba: a questão toca diretamente no princípio constitucional do acesso à justiça, previsto no art. 5º, XXXV da Constituição Federal, que estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. 

Além disso, envolve a interpretação do art. 104 do Código de Processo Civil (CPC) de 2015, que trata da representação em juízo, e do art. 76 do mesmo código, que permite a correção de vícios processuais.

Vamos lá que eu vou te explicar cuidadosamente.

Interpretação das Normas da CF/CPC sobre Representação Processual

No fundo, o tema também aborda o que chamamos de “representação processual”.

Somente para que você tenha noção, antigamente, o Código de Processo Civil de 1973 adotava uma postura mais rígida quanto à representação processual, consolidada na Súmula 115 do STJ, que considerava inexistente o recurso interposto por advogado sem procuração nos autos. 

Por outro lado, o CPC de 2015, no entanto, trouxe uma abordagem mais flexível, em consonância com o princípio da primazia do julgamento de mérito, expresso em seu art. 4º, que determina que “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”. 

Neste contexto, destacamos do CPC os dispositivos:

Art. 76, § 2º: Possibilita a correção de vícios de representação, estabelecendo que "o ato não será repetido nem sua falta será suprida quando não prejudicar a parte".
Art. 932, parágrafo único: Determina que o relator conceda prazo de cinco dias para correção de vícios antes de considerar o recurso inadmissível, afirmando que "antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível".

Em outras palavras, a busca pela solução do mérito, e a possibilidade de sanear vícios sempre foi algo muito expresso do CPC e patente pela intenção do legislador.

“Jurisprudência defensiva”

Informalmente, a chamada “jurisprudência defensiva” refere-se à prática dos tribunais de criar obstáculos formais à admissibilidade de recursos, visando reduzir o volume de processos. 

Atenção: Não coloque isso em provas subjetivas ou fale em prova oral. 

Segundo Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha, em seu “Curso de Direito Processual Civil” (DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 13. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 316), esta prática muitas vezes privilegia aspectos formais em detrimento do mérito das causas, afirmando que “a jurisprudência defensiva consiste em um conjunto de entendimentos judiciais que criam obstáculos ao conhecimento de recursos, dificultando a análise do mérito do recurso e, consequentemente, o acesso à justiça”.

O ministro Humberto Martins, em decisão no AgInt no AREsp 957.821/RS (2017),  já afirmou que “a jurisprudência defensiva não pode prevalecer a ponto de afastar o cumprimento da garantia constitucional de acesso à Justiça”. 

Ou seja, a declaração reflete uma crescente preocupação no judiciário com os efeitos potencialmente nocivos de uma aplicação excessivamente rígida das regras processuais.

É como se quiséssemos dizer que por uma “besteira” o mérito não seria examinado. Entretanto, é necessário, obviamente, entender que há algumas questões formais que são fundamentais para que o processo tenha um rito, sob pena de extinguir as formalidades cabíveis que dão segurança jurídica.

Vejamos alguns exemplos de jurisprudência defensiva em recursos especiais e extraordinários, citadas pela doutrina:

1. Exigência de ratificação do recurso interposto antes do julgamento dos embargos de declaração (Súmula 418 do STJ, posteriormente cancelada).

Esta súmula, antes de ser cancelada, estabelecia que “É inadmissível o recurso especial interposto antes da publicação do acórdão dos embargos de declaração, sem posterior ratificação”. Na prática, isso significava que se uma parte interpusesse um recurso especial após a publicação do acórdão principal, mas antes do julgamento de embargos de declaração opostos pela parte contrária, esse recurso seria considerado prematuro e inadmissível, a menos que fosse ratificado após o julgamento dos embargos.

2. Não conhecimento de recurso por divergência jurisprudencial quando o recorrente não realiza o cotejo analítico entre o acórdão recorrido e os paradigmas (art. 1029, §1º, do CPC/2015).

O recurso especial pode ser interposto com base em divergência jurisprudencial, ou seja, quando o acórdão recorrido dá interpretação à lei federal diferente da que lhe haja atribuído outro tribunal. O art. 1029, §1º do CPC/2015 exige que o recorrente faça a prova da divergência com a certidão, cópia ou citação do repositório de jurisprudência.

O “cotejo analítico” mencionado refere-se à necessidade de o recorrente demonstrar, de forma clara e específica, como o acórdão recorrido diverge dos acórdãos paradigmas citados. Não basta apenas citar decisões diferentes; é preciso explicar detalhadamente como os casos são similares e como a interpretação da lei foi diferente.

Muitos recursos não são conhecidos porque os tribunais consideram que este cotejo não foi feito adequadamente, mesmo quando a divergência pareça evidente. 

3. Inadmissibilidade de recurso por ausência de prequestionamento, mesmo quando a questão federal surge apenas no acórdão recorrido (Súmula 282 do STF).

O prequestionamento é a exigência de que a questão federal ou constitucional que se pretende discutir no recurso especial ou extraordinário tenha sido debatida e decidida pela instância inferior.

A Súmula 282 do STF diz: "É inadmissível o recurso extraordinário quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada".

O problema surge quando a própria decisão recorrida introduz uma questão federal nova, que não havia sido discutida anteriormente no processo. Nestes casos, alguns tribunais ainda aplicam rigidamente a exigência de prequestionamento, não admitindo o recurso mesmo quando a parte não teve oportunidade de suscitar a questão anteriormente.

4. Exigência de comprovação de feriado local no ato de interposição do recurso (art. 1003, §6º, do CPC/2015).

O art. 1003, §6º do CPC/2015 estabelece que "O recorrente comprovará a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso". 

Esta regra se aplica quando o último dia do prazo recursal cai em um feriado local, e a parte interpõe o recurso no dia útil seguinte.

A jurisprudência defensiva se manifesta quando os tribunais exigem que esta comprovação seja feita no exato momento da interposição do recurso, não permitindo que seja feita posteriormente, mesmo que dentro do prazo recursal. Isso pode levar à não admissão de recursos por uma questão puramente formal, mesmo quando é evidente que o prazo foi cumprido considerando o feriado local.

Inclusive, esse tema de alguma maneira provocou um “overriding legislativo”, como já analisamos aqui:

Em síntese, essas práticas, embora baseadas em interpretações de dispositivos legais, muitas vezes resultam em uma barreira significativa ao acesso aos tribunais superiores, privilegiando aspectos formais sobre a análise do mérito das questões jurídicas apresentadas, conforme a doutrina que chama de “jurisprudência defensiva”

Logo, o debate atual no STJ sobre a data da procuração se insere neste contexto mais amplo de discussão sobre os limites da jurisprudência defensiva e a necessidade de equilibrar eficiência processual com acesso à justiça.

O que será decidido pelo STJ

O ministro Gurgel de Faria levantou a seguinte questão central: 

“se o CPC de 2015 autoriza a correção do vício de representação, faz sentido exigir que a procuração tenha data anterior à da interposição do recurso”? 

Este questionamento está diretamente relacionado à interpretação do art. 104 do CPC/2015, que trata da representação em juízo, e do já mencionado art. 76, que permite a correção de vícios processuais.

Além disso, o ministro mencionou que a procuração é um documento particular, confeccionado pelo advogado e assinado pelo cliente. A data nele constante pode ser livremente escolhida, o que dificulta a verificação do momento real de sua confecção. 

Assim, esta característica do documento levanta questões sobre a eficácia e a razoabilidade de se utilizar a data da procuração como critério para admissibilidade de recursos.

Ademais, o CPC/2015 permite a regularização de vícios processuais, incluindo questões de representação. Logo, o ministro Paulo Sérgio Domingues questionou se, dada esta possibilidade, faz sentido manter a exigência de data anterior ao recurso. Como vimos, está em linha com o princípio da instrumentalidade das formas, previsto no art. 188 do CPC/2015, que estabelece que “os atos e os termos processuais independem de forma determinada, salvo quando a lei expressamente a exigir, considerando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial”.

Por fim, o Min. Gurgel de Faria alertou para o risco de burla, uma vez que a parte pode colocar a data que desejar na procuração, dada sua natureza de documento particular. Esta preocupação toca em questões de segurança jurídica e boa-fé processual, princípios fundamentais do processo civil brasileiro, expressos nos artigos 5º e 6º do CPC/2015, respectivamente.

Conclusão

O debate em curso no Superior Tribunal de Justiça sobre a validade de procurações com data posterior à interposição do recurso reflete uma importante evolução na interpretação das normas processuais brasileiras. Esta discussão se insere em um contexto mais amplo de busca pelo equilíbrio entre o necessário formalismo processual e a efetiva prestação jurisdicional, princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.

Retomando os pontos principais que tratamos:

1. A questão central gira em torno da admissibilidade de recursos quando a procuração do advogado está datada posteriormente à interposição do recurso, uma situação que, embora pareça trivial, pode ter implicações significativas no acesso à justiça.

2. O Código de Processo Civil de 2015 trouxe uma abordagem mais flexível em relação à representação processual, priorizando a primazia do julgamento de mérito e permitindo a correção de vícios processuais.

3. A discussão se insere no contexto mais amplo da chamada “jurisprudência defensiva”, uma prática que, embora vise à eficiência processual, muitas vezes cria barreiras formais ao acesso aos tribunais superiores.

4. Os ministros do STJ levantaram questões cruciais sobre a razoabilidade de se utilizar a data da procuração como critério para admissibilidade de recursos, considerando a natureza particular do documento e a possibilidade de regularização de vícios processuais prevista no CPC/2015.

5. O debate toca em princípios fundamentais do processo civil, como a instrumentalidade das formas, a segurança jurídica e a boa-fé processual.

É importante ressaltar que o tema ainda será decidido pelo STJ, e o desfecho desta discussão poderá ter impactos significativos na prática processual e na interpretação das normas de admissibilidade recursal no âmbito dos tribunais superiores. 

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