Juíza revitimiza mulher ao obrigá-la a ver agressor e pedir para deixar de mimimi

Juíza revitimiza mulher ao obrigá-la a ver agressor e pedir para deixar de mimimi

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu

Uma magistrada, em um processo de guarda, acabou obrigando a mulher a ver seu ex-agressor, e ainda disparou que ela deveria crescer, voltar a falar com ele e parar de “mimimi”, mesmo tendo medida protetiva.

A jornalista Cris Fibe, do blog “Metendo a colher”, deu apoio à vítima, e foi incisiva:

“A juíza está fazendo tudo errado, e te revitimizando, te violentando outra vez. Eu sinto muito por isso e eu sei que, infelizmente, o que você está passando não é caso isolado no Brasil, acho que pressionar e procurar o CNJ é uma ferramenta mesmo importante, boa sorte”.

A atuação da magistrada não foi a mais adequada para o caso, haja vista que o CNJ publicou, em 2022, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, que deve ser adotado por todo judiciário brasileiro. Ele impõe ao julgador uma série de determinações voltadas ao combate à discriminação e à violência sofrida pelas mulheres.

Dessa forma, a atitude constrangedora da magistrada pode ser enquadrada como quebra do dever funcional e acabar gerando uma punição disciplinar.

Análise jurídica

Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero

O CNJ, através da Recomendação nº 128/2022, aprovou a recomendação aos órgãos do Poder Judiciário para a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, aprovado pelo Grupo de Trabalho instituído por intermédio da Portaria CNJ nº 27/2021, para colaborar com a implementação das Políticas Nacionais relativas ao Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e ao Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário.

Assim, o Protocolo está estruturado em 3 partes:

1ª) Traz informações teóricas sobre questões de gênero;

2ª) Um guia para a magistratura, apontando o passo a passo processual; e

3ª) Traz ainda questões de gênero específicas dos ramos da Justiça, com destaque para os temas transversais.

Posteriormente, a Resolução CNJ nº 492/2023 estabeleceu a obrigatoriedade das diretrizes da norma em âmbito nacional. 

A adoção, pelo judiciário, do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero tem por objetivos principais:

  • Modificar padrões socioculturais, com vistas a alcançar a superação de costumes que estejam baseados na ideia de inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos;
  • Promoção de capacitação de todos os atores do sistema de justiça a respeito da violência de gênero, bem como de adequar medidas que contribuam para a erradicação de costumes que alicerçam essa modalidade de violência;
  • Zelar para que autoridades e instituições públicas atuem em conformidade com o dever de todos se absterem de incorrer em ato ou prática de discriminação, em todas as esferas, para fins de alcance da isonomia entre mulheres e homens; e
  • Promoção de conscientização e capacitação a todos os agentes do sistema de justiça para eliminar os estereótipos de gênero e incorporar a perspectiva de gênero em todos os aspectos do sistema de justiça.

Igualdade de gênero

Ademais, o ordenamento jurídico pátrio é claro ao garantir a igualdade de gênero, o que inclui a atuação do juiz no exercício da atividade jurisdicional.

A CF/88, em seu artigo 3º, IV, prescreve que constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, dentre outros, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.  

Já no artigo 5º, I, a Carta Magna determina que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.

A igualdade de gênero constitui expressão da cidadania e da dignidade humana, princípios fundamentais da República Federativa do Brasil e valores do Estado Democrático de Direito.

Dando aplicação concreta à essa política de combate à discriminação de gênero, o STF (Supremo Tribunal Federal) julgou parcialmente procedente a ADPF 779. Declarou inconstitucional a tese da legítima defesa da honra, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção da vida e da igualdade de gênero.

Nesse mesmo julgamento, a Suprema Corte proibiu que a defesa, a acusação, a autoridade policial e o juízo utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante o julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.

Assim, constou no acórdão da referida ADPF:

A “legítima defesa da honra” é recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra a mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões. Constitui-se em ranço, na retórica de alguns operadores do direito, de institucionalização da desigualdade entre homens e mulheres e de tolerância e naturalização da violência doméstica, as quais não têm guarida na Constituição de 1988.

Referido recurso viola a dignidade da pessoa humana e os direitos à vida e à igualdade entre homens e mulheres (art. 1º, inciso III, e art. 5º, caput e inciso I, da CF/88), pilares da ordem constitucional brasileira. A ofensa a esses direitos concretiza-se, sobretudo, no estímulo à perpetuação do feminicídio e da violência contra a mulher. O acolhimento da tese teria o potencial de estimular práticas violentas contra as mulheres ao exonerar seus perpetradores da devida sanção.

Na ADC nº 19, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade dos arts. 1º, 33 e 41 da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que prevê mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Já na ADI nº 4424 o STF considerou que a ação penal relativa a lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada.

Direito internacional

No âmbito do direito internacional, podemos citar o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nº 5. Ele consta da Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU), que preconiza “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.

Portanto, não faltam dispositivos normativos, nacionais e internacionais, para embasar uma política robusta de combate à discriminação de gênero.

Importante não confundir, nesse contexto de combate à discriminação, os conceitos de sexo e gênero. Vejamos a diferença.

Mulher revitimizada

Conclusão

No Brasil e no mundo, a discriminação contra a mulher vem de muito tempo, estando enraizada em uma cultura machista e paternalista, que teima em relegar a mulher ao segundo plano.

Por isso que é tão importante ter, não só um arcabouço normativo preparado para o combate à discriminação de gênero, mas também um conjunto de políticas públicas voltadas à concretização da igualdade entre homens e mulheres. Isso inclui a atuação do magistrado nos diversos processos envolvendo a violência contra a mulher (divórcio, guarda, agressão doméstica, reclamações trabalhistas).

A atuação da magistrada que obrigou a mulher a ver seu agressor contraria toda a política de igualdade de gênero adotada pelo CNJ e pelo poder judiciário nacional. Isso pode ainda acarretar a sua punição disciplinar.

Tema espinhoso, mas que pode ser cobrado em provas de direitos difusos, direito constitucional e direitos humanos.


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