Juíza sofre ataque racista de advogado: “resquícios de senzala”

Juíza sofre ataque racista de advogado: “resquícios de senzala”

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu

Um advogado do Rio de Janeiro praticou, de forma covarde, ataque racista a uma juíza pelo simples fato dela ter indeferido seu pedido. A vítima foi Helenice Rangel, titular da 3ª Vara Cível de Campos dos Goytacazes.

Em petição anexada aos autos, o advogado escreveu:

“…Magistrada afrodescendente com resquícios de senzala e recalque ou memória celular dos açoites…”

“…decisões prevaricadoras proferidas por bonecas admoestadas das filhas das Sinhás das casas de engenho…”
Ataque racista

O Tribunal de Justiça do Rio afirmou que, de acordo com a própria juíza, o advogado já vinha apresentando comportamento inadequado, com e-mails “debochados, irônicos e desrespeitosos“, dirigidos especialmente a magistradas e servidoras.

A magistrada ressaltou: “Sua conduta é ameaçadora. Temos que dar um basta a essa sensação de impunidade”.

Ademais, a juíza declarou-se suspeita no processo, e a petição foi encaminhada à 4ª vara, tendo o novo juiz responsável, Leonardo Cajueiro D Azevedo, oficiado diretamente ao procurador-Geral de Justiça para instauração de procedimento criminal pelos possíveis crimes de racismo, injúria racial e apologia ao nazismo.

Reação das instituições

A Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro manifestou apoio a magistrada, e repudiou o ataque racista do advogado. Em nota, a entidade alega que José Francisco Abud manifestou conduta discriminatória, usando palavras injuriosas.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro classificou as declarações de Abud como incompatíveis com o respeito necessário às relações institucionais. Em nota, a Corte afirma que as ofensas configuram violação dos princípios éticos e legais da advocacia, destacando, ainda, que o ataque atinge a honra pessoal e profissional da magistrada.

A Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional RJ, através da Corregedoria, pediu a exclusão do advogado dos quadros da Ordem, sob a justificativa de que o advogado praticou “conduta incompatível com a advocacia“, tornou-se “moralmente inidôneo para o exercício” da profissão e cometeu “crime infamante que gerou comoção na sociedade“.

O Tribunal de Ética e Disciplina da Seccional julgará o caso, e em caso de condenação, Abud terá o registro profissional cassado.

Análise jurídica

Primeiramente, vamos entender a diferença entre injúria simples e injúria racial.

Injúria racial

A injúria simples é uma ofensa à dignidade ou ao decoro de alguém, por meio de palavras, gestos ou outros meios que expressem desprezo, menosprezo ou desrespeito, enquanto a injúria racial é uma ofensa à honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem.

A injúria racial é considerada um crime contra a igualdade, e não mais contra a honra de uma pessoa. Desde janeiro de 2023 (Lei nº 14.532/2023), no Brasil, o racismo e a injúria racial recebem tratamento legal similar.

A Lei nº 7.716/89 define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. O artigo 2º-A trata da injúria racial:

Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.     

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.       

Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.

...

Art. 20-B. Os crimes previstos nos arts. 2º-A e 20 desta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando praticados por funcionário público, conforme definição prevista no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las.

Injúria simples

Por outro lado, o artigo 140, do Código Penal, trata da injúria simples:

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

§ 1º - O juiz pode deixar de aplicar a pena:

I - quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria;

II - no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria.

§ 2º - Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência:        

Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Racismo

A Lei nº 7.716/89 é conhecida como a Lei do Crime Racial, pois ela define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.

Já a Lei nº 14.532/2023 equiparou a injúria racial ao crime de racismo, alterando a Lei do Crime Racial e o Código Penal para tipificar como racismo a injúria racial. A mudança aprofunda a ação de combate ao racismo, criando elementos para interpretação dos contextos e evidenciando algumas modalidades de racismo que não eram evidentes.

O Brasil sofre desde a sua fundação com o racismo, em especial no período de vigência da escravidão, que teve oficialmente sua abolição em 13 de maio de 1888, quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea.

Mas os efeitos nefastos da discriminação racial em nosso país se arrastam até hoje, o que motiva e reforça a necessidade da luta contra essa prática que insiste em nos envergonhar, e que acaba se consolidando como um racismo estrutural.

O que é o racismo estrutural? Então vejamos:

O racismo estrutural consiste em uma cultura enraizada de discriminação racial por toda a sociedade, relegando os negros a uma situação de inferioridade social, econômica, política. Ou seja, é o racismo que está impregnado em todas as estruturas da sociedade, tais como instituições, consciente coletivo, arte, academia, esporte. O racismo estrutural não se manifesta, necessariamente, através de atos isolados de discriminação ou de preconceito, mas decorre de um processo histórico discriminatório que é alimentado pela falta de políticas públicas voltadas a inclusão de pessoas negras no protagonismo social.

Essa luta contra o racismo se intensificou após a Constituição Federal de 1988, quando foi incluído o crime de racismo como inafiançável e imprescritível.

CF/88

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

...

VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;

...

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

...

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

Caráter racial da petição do advogado

No caso concreto, o ataque proferido via petição pelo advogado ofensor tem nítido caráter racial, o que justifica a aplicação do artigo 2º-A, da Lei nº 7.716/89, ao invés do artigo 140, do código penal.

Atitudes racistas já são, por si só, detestáveis. Mas quando praticadas por agentes que são essenciais e indispensáveis à administração da justiça, conforme artigo 133, da Constituição Federal, é ainda mais grave, haja vista que o advogado deve lutar pela garantia da justiça e da igualdade.

Que o episódio nos sirva, portanto, de lição para não tolerarmos mais gestos, piadas, olhares, condutas, que, mesmo sem percebermos de forma consciente, sejam discriminatórios, vexatórios ou humilhantes contra quem quer que seja.

O tema não poderia ser mais atual, e pode ser cobrado em provas de direito constitucional, direitos humanos e direito penal. Fiquem atentos!


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